Sentidos de família construídos com profissionais de saúde na Estratégia de Saúde da Família

Meanings of Family constructed with health professionals in the Family Health Strategy

  • Luiza Campos Menezes
  • Carla Guanaes-Lorenzi
A participação da família no cuidado em saúde tem ganhado destaque na construção das políticas públicas no Brasil. Neste estudo, buscamos compreender sentidos construídos com profissionais de saúde sobre famílias e suas implicações na produção de práticas de cuidado na Estratégia Saúde da Família. Realizamos um estudo qualitativo, cujo corpus foi composto pela transcrição de áudio-gravações de 16 reuniões de “discussão de famílias”, realizadas no cotidiano de duas equipes de saúde da família. A análise foi feita com base no referencial das práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano, sendo explicitados quatro sentidos: família como pessoas que moram juntas; como responsável pelo cuidado; como problema; e como rede de relações. Concluímos que há esforços dos profissionais em focalizar a assistência na família, porém ações centradas no indivíduo e ainda pouco pautadas na análise do contexto e das condições de vida dos familiares são mais comuns em suas práticas discursivas.
    Palavras chave:
  • Família
  • Programa Saúde da Família
  • Profissionais de saúde
The participation of the families in health care has been emphasized in the construction of policies in Brazil. In this study, we aim to understand meanings constructed with health professionals about families and the implications of these meanings for the production of health care practices in the Family Health Strategy. We conducted a qualitative study, whose corpus was composed by the transcription of 16 meetings of “Family discussion groups”, helded as part of the routine of two Family Health Program´s teams. The analysis of the transcriptions was based on the theoretical perspective of the discursive practices and production of meanings in everyday life. As a result, four meanings were constructed: Family as people who live together; as responsible for the care; as a problem; and as a network of relationships. We conclude that there are efforts of professionals to consider the family in their practice, however, actions centered on the individual, and still not guided by the analysis of the context and living conditions, are more common in their discursive practices.
    Keywords:
  • Family
  • Family Health Program
  • Health professionals

1 Introdução

Neste estudo, buscamos contribuir com a compreensão sobre o lugar da família nas práticas discursivas desenvolvidas no contexto da Atenção Primária em Saúde, em especial na Estratégia Saúde da Família (ESF). Para tanto, nesta introdução, situamos rapidamente a Estratégia Saúde da Família no contexto do Sistema Único de Saúde, refletindo sobre como a família, como objeto de atenção, emerge no discurso oficial da ESF e sobre as implicações dessa compreensão para as práticas de saúde desenvolvidas nesse campo.

A Estratégia Saúde da Família foi implementada com o intuito de impulsionar a transformação do modelo de atenção à saúde, permitindo atender melhor às necessidades de saúde das comunidades, reduzir gastos no setor e efetivar os princípios e diretrizes do SUS (Viana & Del Poz, 2005). Respeitando as diretrizes que orientam a Atenção Primária em saúde – e, portanto, tendo em vista o desenvolvimento de ações voltadas à promoção de saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação – a ESF busca deslocar o cuidado do indivíduo para a família, atuar a partir de equipes multidisciplinares, pautada na lógica de saúde ampliada, entendendo-a contextualizada em um território e nas condições de vida das pessoas (Ministério da Saúde, 1997). Assim, o trabalho na ESF pressupõe uma série de mudanças, as quais vão desde a transformação do objeto da atenção, perpassando as atitudes e práticas de cuidado em saúde. Tais mudanças não se conformam sem grandes esforços.

Um dos desafios para a efetivação da ESF é o desenvolvimento de ações que sejam pautadas na família como objeto de atenção, e não apenas nos indivíduos de maneira isolada. Foi buscando melhor compreender a escolha da família como central no cuidado em saúde na ESF, que construímos a proposta deste estudo.

Em nosso cotidiano, circulam diferentes discursos sobre família – alguns dos quais bastante naturalizados em seu uso como verdades sobre o que é família, suas funções e papéis sociais. Na Constituição brasileira, a família é entendida como a base da sociedade (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988), dividindo com a comunidade, sociedade e Estado a responsabilidade pelo cuidado dos seus membros, principalmente no que diz respeito a crianças, adolescentes e idosos. A família também é concebida como um grupo primário, cumprindo um papel fundamental no processo de socialização, proteção social e educação formal e informal de seus membros, transmissora de valores, ética e moral, sendo, assim, mediadora entre os indivíduos e a sociedade (Carvalho & Almeida, 2003; Moimaz, Fadel, Yarid, & Diniz, 2011). Como “instituição”, a família é considerada fundamental no desenvolvimento emocional dos seus membros, podendo ser fonte de segurança, mas também de inseguranças e desequilíbrios (Szymanski, 1995). Como sistema, a família é vista como um todo interligado, podendo ser compreendida em sua dinâmica e modo de funcionamento (Galera & Luis, 2002).

No entanto, se partirmos de uma orientação construcionista social, não existe uma melhor descrição de família. Diferentes sentidos emergem do intercâmbio social, sendo circunscritos histórica e culturalmente, cumprindo determinadas finalidades nas interações em curso. Nesta perspectiva, a família pode ser compreendida como uma “realização discursiva” fruto das negociações, momento a momento, desenvolvidas pelas pessoas em suas interações sociais (Martins, McNamee & Guanaes-Lorenzi, 2014). Deste modo, ao falarmos de família recorremos a diferentes discursos socialmente construídos e, em nossas conversas cotidianas, diferentes versões de família tornam-se possíveis (Martins, et al., 2014). Para a finalidade deste artigo, é especialmente interessante compreender como foi construída socialmente a centralidade da família nas atuais políticas públicas de saúde.

A família nuclear burguesa, tida ainda hoje como modelo hegemônico, não era a principal forma de organização em outros períodos históricos, sendo esse modelo uma construção moderna. Na Idade Média, tal configuração não se fazia presente, não havendo grandes distinções entre o espaço da família e do público (Ariès, 1986, citado por Campos & Matta, 2007). A falta de distinção entre essas esferas favorecia a sociabilidade e vínculos de solidariedade (Ribeiro, 2004). No entanto, em função de demandas de saúde, sobretudo referentes à necessidade de maior controle sanitário, visando redução de taxas de mortalidade infantil e produção de mão de obra saudável para atuação nas indústrias, o modelo nuclear burguês se consolidou como hegemônico (Costa, 1989). Como sinaliza Mônica Campos e Gustavo Matta (2007), é neste contexto histórico que a ideia de família como “unidade central na formação da sociedade” passa a ser pensada, construída como um “modo privilegiado para inserção dos indivíduos na sociedade” (p. 128).

Entretanto, a separação do espaço da família da comunidade gerou consequências para as famílias de classes populares, uma vez que esse isolamento levou ao empobrecimento, e a comunidade, antes vista como protetora, passou a mostrar-se desagregada, emergindo uma massa de pessoas em condição de vulnerabilidade na sociedade capitalista (Ribeiro, 2004). Para conter a desagregação do Estado, foram criadas políticas públicas para garantia de direitos no âmbito da proteção social, a partir dos Estados de Bem-Estar Social (Mioto, 2014). No entanto, diante de um contexto de crise econômica, o Estado de Bem-Estar Social teve dificuldades de cumprir seu papel na proteção social e a família reaparece como importante nesta circunstância.

Especificamente no contexto brasileiro, apesar de um Estado de Bem-Estar Social nunca ter se consolidado de maneira contundente, o Brasil também passava por um período de estagnação e crise econômica no período pós-ditadura militar. Dessa maneira, nos anos de 1990, assim como no contexto internacional, houve no país uma redução dos gastos públicos em setores sociais, o que agravou a dívida social que já existia no país (Aguiar, 1998). As atitudes para conter a pobreza se davam em grande parte por meio de intervenções assistencialistas e tutelares, e o foco das políticas sociais recaía sobre o indivíduo de modo fragmentado e setorizado (Carvalho, 1994). Nesta época, as práticas desenvolvidas com as famílias se davam no âmbito da sociedade civil, das Igrejas, ou das escolas. Muitas dessas práticas recebiam críticas por serem normativas, autoritárias e descontínuas. A questão da família começou a ser envolvida nas discussões políticas de maneiras distintas apenas depois da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, iniciando avanços em um trabalho pautado na abordagem familiar (Vasconcelos, 1999).

Neste contexto de crise econômica, a Organização das Nações Unidas, em 1994, elegeu a família como temática central a ser discutida, entendendo-a como unidade básica da sociedade e devendo ser dedicado a ela proteção e assistência, para que pudesse assumir seu papel junto aos seus membros (ONU, 2014). As temáticas eleitas pela ONU tiveram grande repercussão no desenvolvimento de políticas públicas (Costa, 1994). O que podemos entender é que houve, com base nestas ações, uma explícita valorização da família como modo de contribuir com o Estado no cuidado junto aos seus membros (Ribeiro, 2004). Assim, de um discurso pautado na necessidade de controlar a família, passa-se a um discurso no qual a família é posicionada como “parceira” no cuidado dos seus membros.

É nesse contexto de produção de um discurso de proteção e cuidado da família que a política de saúde, pautada na ESF, se constituiu. A ESF posiciona a família como objeto central de sua atenção, deslocando o foco das ações de cuidado do indivíduo para a família, sendo esse deslocamento considerado um marco que diferencia a ESF de outros modelos de atenção à saúde (Sarti, 2014). Como se apresenta em documento do Ministério da Saúde:

Essa perspectiva faz com que a família passe a ser o objeto precípuo de atenção, entendida a partir do ambiente onde vive. Mais que uma delimitação geográfica, é nesse espaço que se constroem as relações intra e extrafamiliares e onde se desenvolve a luta pela melhoria das condições de vida – permitindo, ainda, uma compreensão ampliada do processo saúde/doença e, portanto, da necessidade de intervenções de maior impacto e significação social (Ministério da Saúde, 1997, p. 8).

Analisando documentos do Ministério da Saúde sobre a ESF, Nair Silva (2010) identificou uma falta de clareza sobre a concepção de família adotada pela ESF e as ações propostas. Edilza Ribeiro (2004) aponta que a falta de consenso sobre as ações voltadas para a família gera diversas abordagens de atuação dos profissionais. Segundo a autora, isso pode gerar uma impressão errônea de que “se cuida do mesmo objeto” (Ribeiro, 2004, p. 663).

Compreendendo que os profissionais de saúde apresentam diferentes concepções sobre família no desenvolvimento de suas práticas, alguns estudos buscaram analisar tais concepções, explicitando como estas fundamentam diferentes expectativas profissionais no desenvolvimento de seu trabalho (Oliveira & Marcon, 2007; Pereira & Bourget, 2010; Prata, Rosalini & Ogata, 2013; Silva, 2010). É comum, nos estudos que abordam essa temática, uma visão da família por parte dos profissionais como unidade de apoio, suporte e escuta entre os membros (Oliveira & Marcon, 2007; Pereira & Bourget, 2010; Silva, 2010). Pautados nesta visão idealizada de família como solidariedade, os profissionais têm dificuldade de compreender e trabalhar questões existentes dentro da família como relações de poder e questões de dominação de gênero (Sarti, 2014). Para Edilza Ribeiro (2004), as concepções de família estão intimamente relacionadas às abordagens de trabalho desenvolvidas pelos profissionais. Na análise realizada pela autora, grande parte das abordagens de trabalho junto às famílias na ESF parece perder a complexidade do sistema familiar e de suas relações, sendo que ora o foco do cuidado recai sobre o indivíduo, ora sobre a comunidade.

Em consonância com estes estudos, buscamos, nesse artigo, compreender os sentidos construídos com profissionais de equipes de saúde da família sobre famílias, com foco em como estes sentidos configuram diferentes possibilidades de cuidado em saúde para as famílias atendidas na ESF. No entanto, de maneira distinta dos estudos já realizados, buscamos compreender estes sentidos em movimento, como parte de uma atividade já existente na rotina das equipes de saúde. Para tanto, elegemos como contexto de nossa investigação uma atividade prática inserida no cotidiano de serviço dos profissionais de saúde – as reuniões de “discussão de família”. Estas reuniões são espaços de diálogo criados em algumas equipes visando construir ações conjuntas e interdisciplinares, voltadas ao cuidado do grupo familiar (Guanaes & Mattos, 2011). Estas discussões constituem-se espaços potenciais para uma compreensão de como, nas práticas discursivas desenvolvidas no cotidiano do serviço, os profissionais de saúde transitam por diferentes sentidos de família, a partir disso fundamentando suas ações de cuidado na ESF (Guanaes & Mattos, 2011).

2 Método

Adotamos em nosso estudo uma abordagem qualitativa, tendo como referencial teórico-metodológico o discurso construcionista social. Como propõem Kenneth Gergen (1985), o foco de uma investigação construcionista social reside na compreensão de como as pessoas, em suas práticas discursivas, constroem relacionalmente sentidos sobre si mesmas e sobre o mundo em que vivem.

De maneira mais específica, neste estudo adotamos a perspectiva teórico-metodológica das práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano (Spink, 2013). Partimos, assim, do entendimento de linguagem como prática social, tomando-a em seu caráter performático, com vista à análise dos efeitos de nossas descrições de mundo na criação de realidades e formas de vida. Em suas práticas discursivas – isto é, nos momentos ativos de uso de linguagem – as pessoas transitam por diferentes sentidos, como forma de lidarem com as situações e fenômenos em sua volta. Seus enunciados são compostos por repertórios interpretativos, os quais podem ser reconhecidos como um conjunto de termos, expressões ou figuras de linguagem, usados na construção de versões sobre as ações e eventos de acordo com recursos culturais disponíveis (Potter, Wetherell, Gill & Edwards, 1990; Spink & Medrado, 2013), e também por determinados discursos sociais - formas institucionalizadas da linguagem, que remetem à permanência de determinados conteúdos e versões de mundo ao longo do tempo (Spink & Frezza, 2013). A abordagem das práticas discursivas nos leva a compreender que o processo de produção de sentido se dá nas negociações entre interlocutores, por meio de um processo dinâmico em que repertórios interpretativos e discursos sociais são postos em movimento.

Com base nestes norteadores teóricos, nosso estudo elegeu como fonte primária de informação o registro das conversas desenvolvidas por profissionais de saúde sobre família nas reuniões de discussão de família. Partimos da compreensão de que as discussões de família são marcadas por um enorme dinamismo, que permite que diferentes sentidos sobre família, problema e cuidado sejam negociados entre os participantes a partir de uma situação concreta, dificultando que estas noções sejam discutidas de maneira vaga e abstrata. Assim, ao conversar concretamente sobre uma família, com o objetivo de se planejar uma intervenção para ela, os profissionais articulam os sentidos que sustentam suas práticas.

O projeto de pesquisa do qual este artigo é derivado seguiu a Resolução 466 de 2012, que regulamenta a ética em pesquisa em seres humanos, tendo sido encaminhado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE nº 30438414.6.0000.5407).

Participaram da pesquisa 26 profissionais de saúde, que compõem a equipe mínima da ESF (médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde (ACS), auxiliares de enfermagem), e estagiários de cursos da área de saúde, de duas equipes de uma unidade de saúde da família localizada em um município do interior de São Paulo. Todos os participantes foram esclarecidos sobre os procedimentos da pesquisa, registrando seu aceite em participar através de assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Com estes participantes, construiu-se uma relação estreita de diálogo, respeito, proximidade e colaboração.

O corpus da pesquisa foi formado pela observação e pela gravação em áudio de 16 reuniões de “discussão de família”, oito em cada equipe, desenvolvidas ao longo de dois meses, entre agosto e outubro de 2014. As equipes realizavam reuniões duas vezes por semana para a organização de aspectos do cotidiano de trabalho e também para discutir casos das famílias que compunham a população adscrita de suas áreas de abrangência. Nestas reuniões, as equipes elegiam o caso de uma ou mais famílias para analisarem, estruturando, desse modo, um momento de diálogo interdisciplinar em torno de situações geralmente vividas como por eles como desafiadoras.

Realizamos a análise deste material a partir dos seguintes passos: 1) Transcrição literal das conversas desenvolvidas nas reuniões de discussão de família, mantendo a linguagem coloquial; e 2) Leitura intensiva como recurso para familiarização com o material; 3) Sistematização do material em quadros de análise, de maneira a explicitar sentidos de família, repertórios interpretativos e discursos sociais presentes nas conversas com a equipe; 4) Produção de uma análise descritiva, resultado da interação das pesquisadoras com o material de análise, e que permite a explicitação de alguns sentidos de família, os repertórios interpretativos que dele participam e possíveis implicações ou convites para ação na ESF derivados do uso destes sentidos.

3 Resultados e discussão

Conforme enunciamos, em nossa análise buscamos dar visibilidade a como alguns sentidos foram construídos na interação com os profissionais de saúde participantes de nossa investigação, de maneira a refletirmos sobre os possíveis efeitos desses sentidos para configuração de práticas de cuidado. A Tabela 1 apresenta os sentidos de família e um detalhamento de como a família era posicionada a partir destes. Embora esta tabela seja apresentada de maneira linear e estática, lembramos que estes sentidos são construções das pesquisadoras que buscaram extrair, do dinamismo das práticas discursivas desenvolvidas no contexto das reuniões de discussão de famílias, elementos para uma reflexão generativa sobre o trabalho com famílias na ESF (Ver Tabela 1).

Sentidos Família posicionada como
Família como pessoas que moram juntas Sinônimo de moradia
Informante
Pessoas que coabitam
Família como responsável pelo cuidado Suporte
Sobrecarregada
Tendo o dever de cuidar
Família como problema Em situação de risco
Estressor
Causa do problema
Família como rede de relações Estrutura
Configuração
Dinâmica

Tabela 1

Sentidos de família

3.1 Família como pessoas que moram juntas

O sentido de família como pessoas que moram juntas era usado nas conversas de diferentes maneiras. Uma delas se dava a partir do posicionamento da “família como sinônimo de moradia”, circunscrevendo os modos de ser família a partir do ambiente em que ela vive. Este tipo de descrição era comum quando os profissionais começavam a apresentar os casos a serem analisados, referindo-se às famílias pelo número de cadastramento; “qual o número da família”; “família número...”. O uso desses repertórios parecia ter a função de localizar a família sobre a qual se conversava, onde ela estava na área de abrangência da equipe e identificar o ACS responsável por este acompanhamento. Em muitos momentos, mesmo com o intuito de falar de um usuário específico, trazia-se para a discussão a família pelo número do cadastro. Este repertório interpretativo está intrinsecamente relacionado ao discurso proposto pela ESF, uma vez que o cadastramento da população é feito a partir da moradia (Ministério da Saúde, 2012).

Em suas conversas, os profissionais também posicionavam a família como “pessoas que coabitam”. Neste caso, eram usados repertórios como: “ela mora sozinha fica mais complicado ainda”; “os filhos trouxeram ele pra cá, para cuidar porque ele morava sozinho”, “ela veio para ajudar a filha”. Quando se olha para com quem a pessoa mora junto ou se ressalta o fato de uma pessoa morar sozinha, os profissionais buscam nestes familiares que coabitam uma possibilidade de contribuir para o cuidado dos usuários:

Lúcia1: Só morava os dois?

Maria: Não, tem um neto. Então, assim, eles estão, ele estava até lá, foi a primeira vez que eu conversei com ele.

Fátima: É, é uma companhia.

Maria: Mas assim, tá dando bastante... é ele que tá dando suporte, pra falar a verdade, apesar de tanto o seu Augusto ter os filhos dele e ela ter as filhas dela, quem tá dando suporte mesmo é esse neto. (Segunda Reunião de Discussão de Família realizada pela Equipe de Saúde da Família 2, em agosto de 2014)

A família também foi posicionada “como informante dos membros”, sobretudo quando as profissionais traziam informações sobre as famílias advindas de visitas domiciliares feitas pelas ACS. Ao compartilharem as informações obtidas junto à família, os demais profissionais podiam conhecer melhor as questões referentes aos moradores da área e acompanhar de maneira longitudinal os usuários do território.

A abordagem da família pelas equipes a partir deste sentido assemelha-se ao que é proposto por Edilza Ribeiro (2004) nas categorias que nomeou como família/indivíduo e família/indivíduo/moradia. A família é vista como cuidadora de um membro, e esse olhar pode se dar a partir do domicilio onde as famílias vivem. As críticas com relação a essa compreensão se dão pela possível perda da complexidade do cuidado às famílias, uma vez que o cuidado se volta, predominantemente, apenas sobre o indivíduo doente (Oliveira & Marcon, 2007; Prata et al., 2013; Ribeiro, 2004). Ao atermos o foco na família como pessoas que moram juntas, podemos perder a dimensão das relações que extrapolam o ambiente de moradia. Algo fundamental para os profissionais da ESF seria ter um olhar para as redes de relacionamento que contribuem para o desenvolvimento e para o cuidado das pessoas, que se tornam uma rede de suporte social (Resta & Motta, 2005).

3.2 Família como responsável pelo cuidado

O sentido de família como responsável pelo cuidado se deu a partir do posicionamento da família de diferentes maneiras. Uma delas era o posicionamento da família como fonte de suporte e apoio. Nas discussões nas quais eram trazidas situações em que um membro da família passava por alguma dificuldade de ordem médica ou referente à adaptação a novas fases da vida, a construção dessa posição se dava no uso de repertórios como: “antes andava sozinha, agora sempre sai com um neto junto”; “a tia falou que vai ajudar”; “tá dando apoio”; “eles tão com paciência com ela”; “ela tava preocupada com ele”.

Posicionar as famílias como cumprindo sua função de dar suporte ou apoio parecia convidar as equipes a também se engajarem no cuidado dos usuários. Este repertório reconhece a função da família como responsável pelo cuidado e se aproxima a uma descrição comum de família na literatura em saúde (Oliveira & Marcon, 2007; Pereira & Bourget, 2010; Silva, 2010), e tem sido usado na implementação das políticas públicas, nas quais o Estado busca na família um aliado para contribuir com as ofertas de cuidado por ele oferecidas. Por outro lado, este mesmo sentido, também sustenta o posicionamento da família como “sobrecarregada”, justamente pelo peso que oferecer este suporte pode acarretar. Eram comuns caracterizações da família e suas problemáticas a partir de repertórios como: “o foco tá todo nela”; “ela tá preocupada, e ela tá sobrecarregada”; “é um problema que tá incomodando todo mundo”. Esses repertórios pareciam convidar os profissionais a olhares mais empáticos para a família, sustentando o desenvolvimento de ações sensíveis ao impacto da doença nas relações e vivências da família.

Em alguns momentos da discussão, o foco era colocado em um usuário específico, o qual se mostrava sobrecarregado por seus familiares e pela situação vivida. Em outros, o foco da sobrecarga aparece na família como um todo:

Teresa: Então o Rafael Silva, o hygia é X, certo? Então, tá, ele veio em consulta, ele falou com a doutora da vontade dele de parar de usar drogas, né? Que ele usa cocaína e maconha. E a doutora encaminhou ele para o CAPS, ai eu fiquei de passar em visita, e não encontrava ele em casa, nem a família, agora eu encontrei a mãe, falei com a mãe. (...) E...a mãe assim, acredita que ele tá piorando cada vez mais, que ele chegou a ouvir vozes, fala que tá sentindo coisas estranhas, né? E a mãe pede muita ajuda, em relação a saúde da família num geral, né? Além dele, de tratar ele, e pede ajuda pro psicológico da família, né? Que o pai diz que assim, que ele fala que tá, “eu preciso de ajuda, eu não aguento mais, eu vou entrar em depressão”. A mãe fala “como que eu vou te ajudar se eu tô passando a mesma coisa junto com você, eu não sei o que fazer”.

Samara: Ô Teresa, tem um grupo de família lá no CAPS (...)

Teresa: Entendi, vou falar pra eles, tá bom. E também tem o filhinho menor, de 14 anos, o Leandro que também tá com essa, dificuldade, na escola. É a família como um todo, sofrendo junto, né? (Segunda reunião de Discussão de Família realizada pela Equipe de Saúde da Família 1 em setembro de 2014)

No trecho apresentado, os membros da equipe buscam encaminhamentos para o caso, pensando no cuidado para a família ofertado em outros serviços, mas pouco refletem sobre as possibilidades de ação dos próprios profissionais ali presentes. Diante da complexidade dos casos apresentados na ESF, que envolvem aspectos sociais, econômicos e com os quais as profissionais convivem de maneira mais próxima, cresce entre eles um sentimento de impotência (Guanaes & Mattos, 2011; Matumoto, Mishima, Fortuna, Pereira & Almeida, 2011; Prata et al., 2013). Assim, mesmo tendo um sentimento de empatia, ao reconhecerem a sobrecarga da família, os profissionais encaminham o caso para especialistas ou outras redes de cuidado, em especial quando estão envolvidas situações de saúde mental (Ribeiro, Caccia-Bava, Guanaes-Lorenzi, 2013).

A família também foi posicionada como “tendo o dever de cuidar”, o que se deu no uso repertórios como: “ela tem pouco suporte familiar”; “nessas horas é filho mesmo”; “o problema é a mãe dela, é quem a gente acha que está dificultando acessar a filha”; “você vê que ela não está bem, mal cuidada”. Em alguns casos, sobretudo naqueles que envolvem pessoas em condição de vulnerabilidade (por exemplo, crianças, idosos ou pessoas dependentes de cuidados médicos), essa responsabilização da família pelo cuidado aparece atrelada à sua culpabilização. Entendendo que as famílias têm dificuldade ou não querem assumir o seu dever de cuidar, os profissionais tendem a estabelecer uma relação de vigilância com a família. Nestes momentos, os principais recursos pensados para a intervenção são legais, baseados no discurso jurídico que reforça a obrigação da família de cuidar de seus membros (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988).

Este sentido mostra como as profissionais dialogam com discursos sociais mais amplos sobre famílias, a partir de um entendimento de que a família é o local de proteção e cuidado dos seus membros. Em alguns momentos, as diferentes maneiras como a família é posicionada cria uma tensão na relação público-privado, nos permitindo questionar se essa cobrança não passa a ser uma vigilância do Estado sobre as famílias (Mioto, 2014). Além disso, quando a família é colocada nesta posição de cuidadora, como sendo algo intrínseco ao seu papel, muitas vezes, ela se sobrecarrega, e podemos questionar até que ponto o Estado faz a sua parte de responsabilização no cuidado (Trad, 2014).

3.3 Família como problema

Nas reuniões que acompanhamos, a família foi construída como um problema de diferentes maneiras, seja pelo uso de repertórios que a descrevem como em uma situação de risco, seja a responsabilizando pelo problema de saúde dos seus membros. A família era posicionada como em risco em momentos nos quais se ressaltava sua condição de vulnerabilidade, ou quando a avaliação do risco familiar era usada como forma de organização do trabalho com as famílias. Isso se dava pelo uso de repertórios como: “família vermelha”, “mais uma de risco”, “família difícil”.

O discurso social de família como aquela que protege os seus membros também parece estar atrelado à noção de família em risco. As famílias, ao apresentarem dificuldades em cumprir este papel de proteção, passam a ser configuradas como em risco, discurso esse que parece contribuir para um entendimento de que as famílias falharam em cumprir o seu papel legal (Costa, 2014). Algo de grande relevância é que o posicionamento da família como em risco parece ser um aspecto apenas avaliativo, o qual determina processos de trabalho das equipes vinculados a visitas domiciliárias e à territorialização. A caracterização da família como em risco para os profissionais parece não extrapolar esta dimensão de avaliação, não configurando intervenções pautadas nas condições de vida da população.

Essa análise parece ir ao encontro da análise proposta por Edilza Ribeiro (2004), ao propor uma categoria família/risco social. Para autora, neste tipo de compreensão, o olhar do profissional recairia sobre um grupo específico de famílias, caracterizada a partir de condições de vida precárias ou por situações que se configuram dentro do processo saúde-doença, como quadros de patologia. A autora ressalta que os profissionais de saúde parecem ficar impactados diante das contradições impostas pela complexidade de problemáticas sociais destas famílias. Concordamos com a autora, uma vez que, em nossa análise, muitas vezes, os profissionais se sentiam paralisados diante da avaliação de risco, não conseguindo extrapolar da avaliação para a proposição de ações de cuidado nestas situações.

Também configurando o sentido de família como problema está o posicionamento de família como um estressor, isto é, geradora de estresse, construído a partir de descrições marcadas por um caráter individual. Os repertórios comumente associados são: “ele tá muito passivo e isso tá incomodando essa mãe”; “ela tá com agressões psicológicas em cima da sogra”; “o filho tá dando muito trabalho”. Nos casos nos quais esses repertórios são usados, parece fundamental estar atento em não apenas responsabilizar a família por algo, mas entendê-la nas suas relações. Isso reforça conclusões de outros autores que apontam que, apesar de explorar questões relacionais, muitas vezes, por falta de ferramentas, os profissionais da ESF não conseguem desenvolver um trabalho mais voltado para as famílias em seu conjunto (Guanaes & Mattos, 2011; Matumoto et al., 2011) ou, ainda, tendo uma visão que permita a análise de como contextos culturais e sociais mais amplos participam da construção desse estresse.

A família como “causa do problema” foi outra posição que identificamos nas conversas entre os profissionais. Esta se constrói atrelada ao uso de repertórios que relacionam à responsabilidade que os membros da família teriam no desenvolvimento de hábitos individuais: “ela tem a bebida à disposição, que tá sempre na casa dela”, “na verdade é a família inteira não é só a menina não”. Também há descrições que responsabilizam a família pelos problemas dos membros, em situações nas quais esses parecem não contribuir para o cuidado ofertado pela equipe: “não tem atenção dos filhos, da família”; “sua mãe não te dá atenção”; “as filhas dela não fizeram nada?!”.

Laura: É da família 87, eu estive lá ontem e a mãe tá muito preocupada com o peso da filha, tá muito gorda.(...) Eu perguntei até pra ela como é que tava, se tinha algum motivo pra ela tá engordando desse jeito, como é que tá o relacionamento dela com o marido, e a mãe desconversou. Quer dizer, não quis falar sobre isso. Ai eu falei pra ela assim, tem alguma coisa atormentando, a sua filha, né? Ai ela ‘Ah, eu não sei, não sei o que fazer, eu só sei que eu olho pra ela e que eu vejo ela cada vez mais gorda, não sei o que faço.’ Então, é complicado.

Lúcia: Agora, olhando para a mãe, não sei porque ela tá tão espantada, porque ela é obesa! O que que ela espera da filha dela, entendeu? Provavelmente a culpa é da mãe, foi a mãe que ensinou a menina a comer errado.(...)

Laura: Tem consulta marcada.

Lúcia: Porque tem que avaliar se realmente tem alguma doença associada ou se é só erro alimentar.

Maria: 150 quilos

Lúcia: Olhando pra família a impressão que dá é erro alimentar, mas não dá pra ter certeza.

Laura: É, e ela falou que ela tá comendo demais, né? (Segunda Reunião de Discussão de Famílias realizada pela Equipe de Saúde da Família 2, em agosto de 2014)

Nessa conversa entre os profissionais, a família é posicionada como a causa do problema, ocasionando o ganho de peso da paciente, visto predominantemente como associado a maus hábitos alimentares da família. Algo que surpreende ao fim da discussão do caso é que apesar da hipótese de o problema da obesidade ser relacional, isto é, estar vinculada a uma questão familiar, a intervenção proposta é individual – uma consulta individual para avaliação médica.

3.4 Família como rede de relações

Esse sentido foi constituído predominantemente na análise da família a partir das noções de estrutura, da configuração e de sua dinâmica ou modo de funcionamento. Essas descrições aparecem de forma integrada nas conversas. A família como rede de relações era um sentido construído na discussão de casos nos quais as equipes tinham que lidar com situações complexas, como de violência intrafamiliar, abuso de substâncias ou quando a demanda trazida pelos próprios usuários estava centrada na relação que estabelecem uns com os outros na família.

Uma das formas usadas pela equipe profissional para análise das relações familiares se deu a partir da noção de estrutura familiar. A estrutura aqui é entendida a partir de Adriana Wagner, Cristina Tronco e Ananda Armani (2011) como um conjunto de padrões a partir do qual a família interage, construindo padrões de relacionamento. Essa noção caracteriza-se por descrições de família a partir de repertórios como: “relação patológica”, “desestruturada”, “esse é o funcionamento da família” ou ainda dos “pais como espelho dos filhos”. Essas descrições convidam a ações a partir de olhares que patologizam as relações entre os membros da família e também responsabilizam as famílias pelas problemáticas que enfrentam. Os profissionais, ao lidarem com relações familiares que fogem a um padrão estabelecido, mas que se configuram como um padrão para aquela família, tendem a nomeá-la como desestruturada (Prata et al., 2013; Szymanski, 1995).

Este discurso, que categoriza a família como estruturada ou desestruturada, parece conter uma noção de família ideal, na qual as funções e modos de se estruturar são dadas a priori, desconsiderando os múltiplos modos como as famílias se organizam. Além disso, ao definir um padrão sobre o que é uma família estruturada, cria-se também um discurso de inadequação das famílias que não se encaixam nesse modelo, o que implica na construção de uma avaliação normativa. Estruturas que não se enquadram no que se espera do modelo hegemônico da família nuclear tendem a ser tomadas como um fator de risco (Costa, 2014).

Outra noção que atravessa a produção de sentido de família como rede de relações é a de configuração familiar, isto é, a identificação das pessoas que fazem parte da família e os laços que as unem, permitindo uma dada organização. Em muitos momentos das reuniões de família, os profissionais de saúde se basearam em um discurso de família como pessoas unidas por laços afetivos, acolhendo configurações mais amplas do que as famílias tidas como nucleares.

Maria: Mas assim, tá dando bastante... é ele que tá dando suporte, pra falar a verdade, apesar de tanto o seu Augusto ter os filhos dele e ela ter as filhas dela, quem tá dando suporte mesmo é esse neto.

Lúcia: Os dois era o segundo casamento?

Maria: Isso. É ela sentiu muito, porque assim, o primeiro foi muito sofrido, né? Ela apanhava muito, foi terrível, e esse ai, eles ficaram 21 anos juntos. Ele era viúvo e eles se juntaram, casaram e começaram a cuidar desse neto também. Eles cuidaram desde pequeno, porque a mãe ainda é, a mãe e o pai desse Hugo, que é o neto, é vivo, mora aqui em (cidade), sabe? Mas quem cuida mesmo. (Segunda reunião de discussão de família realizada pela Equipe de saúde da Família 2 em agosto de 2014)

No exemplo, para além dos laços de consanguinidade que o neto tem com um dos avós, o vínculo afetivo existente entre eles é tomado como justificativa para que seja atribuído ao neto o papel de cuidado da avó, que agora ficou viúva. O discurso de família usado nessa conversa está atrelado a afetividade desenvolvida entre os membros, sendo essa forma de entendimento de família comum nas descrições de profissionais de saúde em outros estudos (Pereira & Bourget, 2010; Silva, 2010).

Nas conversas desenvolvidas pelas equipes, também são usadas descrições que valorizam predominantemente laços consanguíneos, que passam a ser tomados como critério de responsabilização pelo cuidado de um membro doente ou em situação de dificuldade:

Fátima: Ela veio aqui buscar uma seringa e desabafou comigo que hoje o filho e a nora brigaram e a nora colocou uma faca dentro do quarto, e disse que na hora que o moço voltar, vai matar ele, falou pra mãe. A mãe veio aqui apavorada, falando isso. E que ela tá sobrecarregada, né, e que ela não tá mais aguentando mais essa situação, e que ela tá pensando em pôr ele para fora de casa, porque ele não quer sair de livre e espontânea vontade, entendeu? E que você já sabe dessa situação dela. E que ela tá fazendo de tudo para esconder do marido, né, bem? Porque o marido não é pai desse moço, ela tá fazendo de tudo, e ela queria que o pai mesmo dele, desocupasse uma casa para ele ir morar, só que ele ofendeu o pai, e o pai não vai dá uma casa pro filho morar, entendeu? (Terceira reunião de discussão de família realizada pela Equipe de Saúde da Família 2 em setembro de 2014)

Na situação descrita, há um entendimento de que a esposa, que não quer problemas no relacionamento conjugal por causa do filho, tenta não expor os problemas para o marido. O profissional de saúde explica que a mãe não quer compartilhar o problema, porque o marido não é o pai do seu filho – entendendo, assim como a mãe, que o problema deveria ser resolvido pelo pai biológico. Nesta e em outras conversas semelhantes, parece haver uma compreensão de que por não se ter vínculo de consanguinidade, parece não haver responsabilidade.

Adriana Wagner et al. (2011) nos lembram a necessidade de desconstruir a ideia de que o modo como se dá a configuração das famílias determina suas estruturas. Com relação ao funcionamento das famílias, mais uma vez, devemos levar em conta o modo como elas se constituem, e não devemos atuar a partir de uma noção de que a sua composição define seus padrões de relacionamento a priori.

Por fim, outra noção usada na composição do sentido de família como rede de relações refere-se à “dinâmica familiar”. Entendemos dinâmica familiar como os diferentes movimentos que as famílias fazem diante das situações do cotidiano (Wagner, et al., 2011). Esta noção configura um olhar dos profissionais para como as mudanças nas dinâmicas familiares influenciam o processo de cuidado do usuário. Nesse caso, o discurso sistêmico de família na qual os subsistemas se relacionam e se influenciam mutualmente parece dar base para os profissionais em sua avaliação das famílias. Nestes momentos, o que parece ficar claro é um esforço das profissionais para compreender as famílias em suas relações, porém há muita dificuldade na condução destas conversas. Tais conversas parecem pouco instrumentadas em teorias e perspectivas que poderiam contribuir para o desenvolvimento dos casos. O uso de instrumentos para a avaliação das famílias, tal como propostos por Gilberto Ditterich, Marilisa Gabardo e Samuel Moyses. (2009), não foram citados ou usados durante as conversas entre os profissionais, mas poderiam, eventualmente, contribuir para um olhar para a família desde sua configuração, até o ciclo de vida familiar.

Apesar da relevância do uso de tais recursos avaliativos para a intervenção com as famílias, a depender de como são usados, podem se aproximar do modelo médico hegemônico que cria diagnósticos e faz intervenções clínicas, que podem não se aproximar das questões contextuais nas quais essas famílias estão envolvidas (Spink & Matta, 2010). O olhar para as relações familiares é fundamental para o trabalho com as famílias, mas também é de extrema importância que não se perca de vista a análise das condições de vida das pessoas atendidas e a compreensão que as próprias famílias têm sobre si e sobre o seu contexto (Prata et al., 2013).

4 Considerações finais

Buscamos, em nosso estudo, dar visibilidade para como diferentes sentidos de família pautam a compreensão dos profissionais de saúde em sua prática na ESF, configurando diferentes possibilidades de cuidado nesse campo. Conforme discutimos anteriormente, nas reuniões de família, ao discutirem sobre as famílias na busca por construir planos de ação, diferentes sentidos são postos em movimento, de maneira dinâmica e fluida. Acreditamos que explicitar estes diferentes sentidos é uma forma de desnaturalizar uma concepção realista de que existe um único modo de entender as famílias e, a partir disso, podemos convidar os profissionais de saúde a refletir sobre quais ações são desencadeadas quando um ou outro sentido ganha força nas negociações em curso em suas interações.

A partir do sentido de família como pessoas que moram juntas e seus diferentes repertórios, pudemos perceber como a família, muitas vezes, é vista a partir do ambiente em que vive, e como este olhar está atrelado a práticas de cuidado voltado para o indivíduo adoecido, sendo seus familiares posicionados apenas como informantes ou apoiadores do cuidado individual. Já, nos diferentes repertórios interpretativos que compõem o sentido de família como responsável pelo cuidado, pudemos perceber duas possibilidades. Ou a família é percebida como exercendo apoio para seus membros e, portanto sobrecarregada com as tarefas de cuidado que desenvolve – o que geralmente provoca na equipe um sentimento de empatia e desejo de aliança para o cuidado; ou a família é responsabilizada pelo cuidado de seus membros, o que de alguma forma repercute nas práticas adotadas pelas equipes, que agem a partir de uma postura de julgamento e culpabilização da família.

Nesta mesma direção, chama a atenção o sentido de Família como um problema. Um dos repertórios usado pelas equipes para sustentar esta definição foi o família em risco – o qual era avaliado, sobretudo, a partir da identificação de vulnerabilidades (doenças individuais, fatores contextuais, etc.). No entanto, nas equipes participantes de nosso estudo, a avaliação de risco era feita pontualmente, sendo que o diálogo interdisciplinar desenvolvido em torno desta classificação geralmente não permitia o desenvolvimento de outras ações, para além da própria classificação. A classificação de risco, assim, parecia um fim em si mesmo, o que gerava certa paralisação entre os participantes das discussões de família. Também compõe o sentido de família como problema a identificação da própria família como um estressor ou como responsável por hábitos negativos de cuidado em saúde. Certamente, o principal efeito deste sentido era a responsabilização da família, nem sempre acompanhada de ações voltadas ao cuidado de todo grupo familiar.

Por fim, a análise do sentido de família como rede de relações nos permitiu lançar um olhar para como as equipes compreendem, a partir de repertórios que se sustentam em teorias sobre a psicologia da família, a família como um sistema – rede interdependente de comunicações, relações e afetos. Embora reconhecendo a potência presente na análise relacional de questões inicialmente tidas como individuais, também problematizamos o uso de alguns discursos normalizadores sobre as famílias pelas equipes de saúde, mostrando como esses tendem a se mostrar pouco sensíveis às singularidades das famílias e, mais que isso, à compreensão destas famílias como parte de um contexto mais amplo de outras determinações de saúde.

Com base na análise de como estes diferentes sentidos de família são trazidos nas práticas discursivas dos profissionais de saúde, concluímos que, embora haja grande esforço dos profissionais em focalizar a assistência na “família”, ações centradas no indivíduo e ainda pouco pautadas na análise do contexto e das condições de vida são mais comuns na rotina de trabalho dos profissionais da equipe. Isso nos leva a questionar, mais amplamente, qual o lugar da família na Estratégia Saúde da Família.

Compreendemos que uma série de questões e desafios se fazem presentes no trabalho desenvolvido com famílias na ESF. Como as práticas desenvolvidas com as famílias podem romper com uma lógica assistencialista? Como contribuir com a construção de práticas de cuidado que tenham foco na família, mas que não estejam desvinculadas de um entendimento das condições de vida da população? Como incluir as famílias de modo mais horizontalizado na produção e sentidos e práticas sobre elas? Como as famílias entenderiam as discussões que as equipes de saúde fazem sobre elas e as explicações que criam sobre as situações de suas vidas? A possibilidade de dialogar de maneira mais transparente e horizontal com as famílias sobre as dificuldades que vivenciam poderia se constituir, em si mesma, uma ação que busca romper com alguns movimentos de julgamento e culpabilização das famílias, comuns no cotidiano do cuidado em saúde?

Acreditamos que o desenvolvimento de práticas dialógicas, sensíveis às necessidades de saúde das famílias, promovendo a autonomia dessas, e ainda, respeitando e legitimando as singularidades de seus diferentes modos de organização, de maneira associada à compreensão de tais singularidades em contexto, ainda é um desafio. Mas, acreditamos que este desafio possa ser abraçado por cada equipe de saúde da família, na construção cotidiana de suas práticas. Contar com o apoio das equipes matriciais presentes no NASF (Núcleo de Apoio à Assistência à Família) na construção de ações nessa direção pode ser útil às equipes de saúde da família, lhes permitindo ampliar o espectro de suas ações – do indivíduo para a família em contexto.

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