Discursos e consumos das sexualidades – tramando novas possibilidades para atuação nas psicologias

Speeches and consumption of sexualities - plotting new possibilities for action in psychologies

  • Danielle Jardim Barreto
  • Bethania Cabrera de Souza
  • Danilo Gomes da Silva
  • Izabella de Castro Guelfi
  • Susy de Oliveira Pereira
Atualmente experimentamos aquilo que muitos autores nomeiam de período de transição das sociedades disciplinares para as de controle, neste cenário complexo, os processos de subjetivação são atravessados por linhas molares e moleculares, micro e macro políticas dentre diversos outros fenômenos compostos por dispositivos de poder e situações de controle que produzem verdades e discursos normativos acerca das sexualidades e gêneros. Diante da desvalorização e inviabilização de subjetividades vistas como dissidentes, da naturalização do biopoder e da crise identitária, as ciências ditas psicológicas enfrentam o desafio de não se transformarem em mais um dos dispositivos normatizadores e padronizadores que produzem corpos reprodutores e favorecem a manutenção do sistema de produção de subjetividades capitalísticas.
    Palavras chave:
  • Sexualidades
  • Subjetividades Capitalísticas
  • Estudos Queer
Currently we experience what many authors call transition’s period from disciplinary societies to control societies, in this complex scenario, the subjectivation’s processes are crossed by molar lines and molecular lines, micro and macro political and many other phenomenas composed by device of power and control situations that produces truths and normative discourses about sexualities and genders. In the face of the devaluation and impracticability of subjectivities considered to be dissidents, the naturalization of biopower and the identity crisis, the psychological sciences are challenged not to turn into another one of the normative and standardizing devices that produces reproducing bodies and to favor the maintenance of the production system of capitalistic subjectivities.
    Keywords:
  • Sexuality
  • Capitalistic’s Subjectivities
  • Queer Studies

1 Introdução

Os saberes produzidos pela Psicologia sobre e para homens e mulheres não estão desconectados de um contexto sócio econômico cultural, permitindo que nos indaguemos sobre a produção de quais verdades sobre sexualidades e gêneros estão sendo enunciadas nos cursos de formação em Psicologia?

A formação em Psicologia enquanto campo de saber dito autônomo advém da racionalização engendrada na modernidade através do projeto de afastamento da filosofia e aproximação das ciências médicas positivistas. Esta aproximação permitiu à construção e uso de saberes sobre as pessoas fortemente vinculadas as dicotomias saúde/doença, indivíduo/sociedade, a identificação psicodiagnóstica e cura das ditas anormalidades nos modos de viver contemporâneos. Esta formação psi pautada na medicina produziu ao longo da história práticas e saberes estigmatizantes, desconectados do contexto histórico e da realidade social. Desta forma, este artigo, visa aproximações com autores da Filosofia como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault, Beatriz Preciado, dentre outros, para dar visibilidade à relação entre Filosofia e Psicologia na desconstrução da patologização dos gêneros.

Partindo de uma visão foucaultiana, saberes e verdades produzem e são produzidos em relações de poder que agenciam discursos, entendido por Michel Foucault (1979, p. 10) como “aquilo porque e pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar”, ou ainda, como “um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva” (Foucault, 1969/1986, p. 135). A fim de capturar o entendimento de si e do outro, gerando desta forma, processos de subjetivação que mantém um controle da produção dos modelos identitários que limitam as possibilidades dos corpos, de experimentações, de desejos, e de outras formas inventivas.

Os “dispositivos disciplinares” enquanto mecanismos de subjetivação foram aos poucos (minunciosamente) aprisionando a existência em um regime normativo e homogêneo (Foucault, 1987), por dispositivos, Foucault compreende

Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. (Foucault, 1979/2000, p. 244)

Gilles Deleuze (1990), a partir da problematização dos trabalhos de Foucault, assim discorre sobre o dispositivo:

Mas o que é um dispositivo? Em primeiro lugar, é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear. É composto por linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo não abarcam nem delimitam sistemas homo

gêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras. Cada uma está quebrada e submetida a variações de direção (bifurcada, enforquilhada), submetida a derivações. Os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vetores ou tensores. Dessa maneira, as três grandes instâncias que Foucault distingue sucessivamente (Saber, Poder e Subjetividade) não possuem, de modo definitivo, contornos definitivos; são antes cadeias de variáveis relacionadas entre si. (Deleuze, 1990, p. 155)

Os territórios disciplinares agenciados, encontram-se em crise e a disciplina vem perdendo espaço para novas formas de controle da vida, um contínuo controle em meio aberto. Situações de controle que visam um monitoramento da vida têm como peças fundamentais de sua eficácia o medo, o desejo e o consumo, agenciando assim o que Félix Guattari & Sueli Rolnik (1986/2005) denominam de subjetividades capitalísticas.

O corpo, e aqui o compreendemos de acordo com Jardel Sander (2011, p. 132) como um dispositivo, sendo possível assim estuda-lo em sua história (linhas de estratificação e sedimentação), também torna-se efeito e a sexualidade ganha caráter normativo, os padrões de beleza e as expectativas idealizadas pelo marketing em larga medida inviabilizam a experimentação e reduzem as possibilidades de conexão/relação.

Neste sentido, nos remetemos aqui ao corpo educado, definido em Guacira Lopes Louro (1999/2000) como “várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente [...] elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas” (p. 4), nesta visão da sexualidade como algo natural (homem ou mulher) não cabem outras composições de identidade.

Segundo Sander (2009) as pessoas têm medo de que seus corpos se tornem invisíveis, excluídos socialmente, ou seja, medo de que seus corpos possam ser nomeados como seres bizarros, esquisitos, exóticos.

O corpo tem vários vieses de experimentação, porém, limitados devido a implementação das ordens, regras referentes à utilização do corpo, o qual não deve ser exposto de forma diferente ao que deve seguir. Assim, culmina em uma impossibilidade de ter um conhecimento maior do corpo e seus prazeres de tal forma que, quem busca o mesmo, acaba sendo patologizado, impossibilitando a potencialização desses corpos.

A problemática pauta-se na desconstrução de ideais vigentes e normativos, onde os corpos são capturados por uma sociedade capitalística que normatiza e regula os próprios desejos e prazeres humanos em prol do sistema. Essa sociedade dita capitalística e molar (agenciamentos sociais) é o terreno que precisa ser irrigado para plantarmos mais humanidade nas relações geridas por uma classe dominante, onde a minoria estigmatizada é mantida em muitas das margens da sociedade. Segundo Félix Guattari & Suely Rolnik (1986/2005, p. 386), “a ordem molar corresponde às estratificações que delimitam objetos, sujeitos, representações e seus sistemas de referência. A ordem molecular, ao contrário, é a dos fluxos, dos devires, das transições de fases, das intensidades”.

Para os coniventes a essa marginalização das minorias, tais questionamentos não passam de um cientificismo que precisa ser combatido. Já para Michel Foucault (1975/1987) a problemática concerne no fato de que o poder atinge a realidade mais concreta do ser humano – o corpo. O autor ainda alerta para a infinidade de dispositivos de poder usados no processo de aprisionamento do corpo, este por sua vez refere-se a uma real proibição da vivência corporal em desacordo com o binarismo – modelo predominantemente aceitável.

O conceito de verdade qualifica o mundo como verídico, este mundo supondo um homem verídico que é como seu centro. Entretanto, é claro que a vida quer o engano, que visa iludir, seduzir, cegar. Querer o verdadeiro é querer antes de mais nada depreciar esse poder do falso, ao fazer da vida um erro, uma aparência. (Deleuze, 1962/2001, p. 32)

Uma grande dificuldade ao tratar desta temática, evidencia-se na dissociada e perturbada ideia de que muitos “apontam para a normalização como passo supostamente inevitável para se alcançar a igualdade política, a qual, no presente, tende a ser confundida com a obtenção de direitos” (Souza, Sabatine & Magalhães, 2011, p. 59).

Não nos cabe, enquanto psicólogos e psicólogas capturar e classificar o sujeito enquanto unidade pré-determinada socialmente. A compreensão de sujeito para os autores até aqui referenciados é elemento das diferenças de classes, etnias, cores, – como sendo seres sem começo e fim, assim como a produção do conhecimento que quando disseminada, espalha-se por meio de fluxos interligados.

Na sociedade molar que determina padrões de ser no mundo, pensar em diferença/dissidência é considerá-la como um modo de resistir a esta molaridade, onde através da linha de fuga é possível desterritorializar-se e reterritorializar-se para a criação de devires, conexões e agenciamentos que nos levam a desestabilizar as raízes de um sistema molar e potencializar as possibilidades de recriações de si. As linhas moleculares desconectam do modelo molar e reconecta-nos ao desconhecido, criando um campo de multiplicidades de vir a ser no mundo. Tais fenômenos transcendem as ciências, a história, a ciência psicológica, bem como psicólogos e psicólogas enquanto pessoas e/ou profissionais que estão impregnad@s1 e atravessad@s por todas as questões supracitadas, por meio de revisões literárias e cartografias buscaremos refletir e problematizar a atuação d@ profissional de Psicologia em um contexto caótico e mutante.

2 Nem completamente instável, nem completamente estável: tudo está em movimento, inclusive as pessoas

Para falarmos um pouco sobre as sociedades de controle e disciplinares podemos pegar como ponto de partida a ideia de um emaranhado de sistemas ou mecanismos que se organizam de forma complexa e, ao mesmo tempo, minuciosa a fim de exercer o poder, ou melhor, fazer com que este transite pelas pessoas, homogeneizando-as e aprisionando suas possibilidades de existência, em um sistema objetivado e repleto de verdades cristalizadas que visam o sucesso da indústria e a perpetuação de uma espécie de monopólio do capital perante o corpo e a vida (Foucault, 1975/1987).

Associamos o exercício de poder, a produção de saberes, a institucionalização da verdade e a manutenção dos corpos a um estado que dita as normas e regras a serem seguidas, ao qual Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980/1996) denominam como macropolítico, este, por sua vez, é uma organização molar, dura, inerte, binária (branco/negro, heterossexual/homossexual, rico/pobre, etc), que nos atravessa constantemente, instituindo padrões e normas sobre a vida, a macropolítica, ou linha molar, é demarcada socialmente pelas instituições que determinam nosso modo de existir, são elas: o estado, os partidos políticos, as igrejas, os casamentos, os sexos, os gêneros, entre outras.

Em oposição à macropolítica, temos a micropolítica que é flexível, é movimento, é plural, voltada para minorias em potência, e embora cada uma tenha sua forma de atuação, micro e macro políticas se atravessam o tempo todo, coexistem nos mesmos territórios, pois em toda flexibilidade há centros de poder, e “onde há poder há resistência” (Foucault, 1976/1988, p. 91) , corpos que fogem, linhas que circulam flexíveis entre a molaridade do poder e da norma, a política atravessa todas as coisas, ela é micropolítica e macropolítica simultaneamente (Deleuze & Guattari, 1980/1996).

Para melhor compreendermos a visão dos autores sobre estas linhas que circundam entre molar e molecular, Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980/1996) esclarecem que os agenciamentos micropoliticos se dão sobre um plano molecular, este por sua vez se compõe por uma infinidade de agenciamentos e ligações (relações), de forma que se faz impossível medir a quantidade e velocidade os elementos que o compõem e se interligam Júnior (2012, p. 89) ao citar Gilles Deleuze & Félix Guattari, esclarece que os autores “afirmam que cada ser, sobre essa superfície infinita, é composto de uma infinidade de agenciamentos e partes, cujas relações não param de ser modificadas pelo fora, pelos encontros que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir”. Esta potência podemos ler como o desejo que nos move, A palavra desejo abrange diversos sentidos, aqui a utilizamos segundo a concepção trabalhada por Gilles Deleuze & Félix Guattari (1972/1976), que pressupõem a realidade enquanto pura produção, constituída por singularidades e sustida pelo desejo, desta forma, o desejo da vazão a possibilidade de criação e invenção de novos modos e formas de existir. Assim a realidade representaria a produção desejante e o desejo seria a força que move a máquina subjetiva, ou seja, que impulsiona o ser humano em suas produções potencialmente singulares – em devires, em vir a ser.

Podemos afirmar que molar (Macropolítica) e molecular (Micropolítica) correspondem a duas formas de individuação, duas políticas que implicam dispositivos de poder diversos, que sobrecodificam os agenciamentos em grandes conjuntos, identidades, individualidades, sujeitos e objetos (Carneiro, 2013), assim nossa subjetivação é construída de forma homogeneizada, são estados definidos e dominantes que perpassam por nossos corpos, manipulando-nos (Deleuze & Guattari, 1980/1996).

Esta manipulação Michel Foucault (1976/1988) compreende como o poder situado e exercido ao nível da vida, o biopoder, como nos explana Paul Rabinow & Nicolas Rose (2006):

O conceito de biopoder serve para trazer à tona um campo composto por tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais da existência humana. As características vitais dos seres humanos, seres viventes que nascem, crescem, habitam um corpo que pode ser treinado e aumentado, e por fim adoecem e morrem. (Rabinow & Rose, 2006, p. 28)

De acordo com Paul Rabinow & Nicolas Rose (2006), as estratégias e questionamentos acerca das práticas interventivas eficazes no coletivo, como resolubilidade de problemas relacionados à mortalidade, morbidade, dentre outras, dá-se o nome de biopolítica. Então retornamos aos dispositivos, já explanados anteriormente, que funcionam como “decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (Foucault, 1979/2000, p. 244) que regem a vida, ferramentas da biopolítica.

Pensando com Michel Foucault (1975/1987) esses estados dominantes formam discursos heteronormativos falocêntricos, que estão cristalizados nas armadilhas do biopoder, formando identidades que compõem corpos dóceis e reprodutores, tanto reprodução de regras como também cabe aqui os discursos voltados às sexualidades (a sexualidade e os discursos acerca da mesma são dispositivos da biopolítica), onde as práticas sexuais têm apenas caráter reprodutor e não abrange vias de prazer. Sobre o Biopoder, Foucault descreve que

Essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um nome, de biopoder (Foucault, 1961/2008, p. 3).

Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980/1996) nos mostram que a micropolítica é composta de movimento, as linhas que atravessam esta segmentaridade são chamadas pelos autores de linhas de fuga, são linhas que produzem novos modos de singularização, que se move de um estado fixado para outras possibilidades (uma desterritorialização), a linha de fuga proporciona a criação, o novo.

Correlacionando com a formação em Psicologia, compreendemos que @s acadêmic@s chegam a graduação subjetivados, cada qual a sua maneira, fixados a um estado, e através das linhas de fuga podem (ou não) compor-se de novas singularizações, ampliando as fronteiras de seus conhecimentos, ou mesmo descontruindo estereótipos que antes se mostravam cristalizados (molarizados, imutáveis).

De acordo com Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980/1996, p. 95), “As fugas e os movimentos moleculares não seriam nada se não repassassem pelas organizações molares e não remanejassem seus segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de classes, de partidos”. E em virtude de uma transpassar a outra, e todas coexistirem, torna-se quase impossível viver-se totalmente fora da norma, ou totalmente dentro dela, nós andamos até a margem, voltamos, andamos com um pé na norma e outro na criação, mas é praticamente impossível viver em apenas uma.

Altair Carneiro (2013) afirma que por não obter a capacidade de se desvincular totalmente do domínio molar, resta-nos lutar para estarmos em constante movimento, aumentando nossa resistência e tornando-nos mais hábeis em reconhecer e escapar da molaridade, quando nos percebermos mais uma vez dentro dela. Adiantamos que seria utopia pensar em uma Psicologia completamente fora da norma, entretanto, é importante problematizar, quais os meios de chegar a essa margem no intuito de dar-lhe potência e visibilidade.

3 Um breve pensar sobre a constituição histórica dos modos de (re)existir perante as artimanhas do biopoder

O poder não é exclusividade de ninguém, como bem disse Michel Foucault (1979), ele se exerce em uma espécie de rede onde as pessoas estão, ele transita pelos corpos, a partir da linha de pensamento deste autor, podemos pontuar que, experimentamos transgressões ou transcendências das sociedades de controle para as sociedades disciplinares, os mecanismos de subjetivação/singularização foram se aperfeiçoando por meio de novos dispositivos de controle, como também com situações de controle.

Estes processos de subjetivação normatizadores estariam a serviço da manutenção do poder, porém como esclareceu Michel Foucault (1979), todo poder traz consigo um contra poder, um movimento de resistência, de enfrentamentos que se manifestam através das linhas de subjetivação singularizadoras, as quais, em contradição às linhas de subjetivação normatizadoras, dão passagem para novos afetos e novas possibilidades de criação e potencialização, efetivando-se em outros modos de existir. As linhas de subjetivação singularizadora possibilitam a expressão da potência criadora, do novo, promove a abertura para novas conexões e intensidades do desejo.

De acordo com Gilles Deleuze (1992) e Michel Foucault (1979), não cabe mais apenas às instituições fechadas a manutenção da ordem social, as redes de poder ultrapassam os muros das escolas, indústrias, hospitais, prisões, famílias etc, resultando em um contínuo controle em meio aberto, a própria noção de indivíduo acaba sofrendo distorções e as ditas identidades cristalizadas da era disciplinar perdem seu valor nas sociedades de controle.

Edson Passeti (2003) percebe na sociedade de controle, uma ausência da noção de chefia, com a transcendência do exercício do poder para além dos cerceamentos institucionais, a compreensão de chefe atinge um patamar metafísico, sendo assim, igualmente ao poder o exercício da chefia não tem início, meio ou fim estabelecido, ocorre em todos os lugares, qualquer um pode ou não ser o chefe, ou mesmo, a chefia não mais se restringe ao humano podendo estar agregada a um dispositivo eletrônico e/ou simbólico. Até a nós mesmos, como bem descreve Foucault ao abordar sobre a arte do cuidado de si, explicando que

Estas devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também buscam transformar-se. Modificar-se em seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo (Foucault, 2004, p. 198-199).

A estas técnicas de governo do outro Michel Foucault (1975/1987) atribui o nome de governamentalidade, ou seja, a articulação de diversas artes de governo para dar coesão ao seu exercício sobre a população, esboçando uma biopolítica que se ramifica e se introduz pelos rizomas da vida, disciplinando-a e regulando-a. Tal governamentalização supõe uma gestão da população. O estabelecimento normas e padrões por sua vez, produzem fixações identitárias, ou ainda, subjetividades capturadas (Souza, Sabatine & Magalhães, 2011).

Os rizomas aqui são um analogia as ramificações da raiz das arvores, citada por Gilles Deleuze & Félix Guatarri (1980/1995, p. 01) onde explicam que “um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e... e... e..." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.” Gilles Deleuze & Félix Guattari (1980/1996, p. 111) nos instiga a pensar sobre essa nova forma de subjetivação onde “aatribui-se a qualquer um a missão de um juiz, de um justiceiro, de um policial por conta própria”, da não necessidade de um espaço centralizado de poder, ou formação técnica. Dessa forma a produção de subjetividades ganha um novo elemento, o medo que somado a precariedade das relações e da vida diante do aumento da possibilidade de conexão com realidades outras acaba por reduzir os encontros convertendo assim a possibilidade de contato em observação, julgamento e construção de pré-conceitos mediante a diferença.

Para Michel Foucault (1974/1999), o poder é o detentor da vida na sociedade moderna, um biopoder que controla a vida da população, a gestão biopolítica, como exposta anteriormente, é uma herança das “sociedades disciplinares” que visava à saúde dos sujeitos em prol do aumento da produção e da redução de gastos do estado, Michel Foucault (1976/1988) nos diz que “o investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo” (p. 133).

Com a naturalização do biopoder, Gilles Deleuze (1992) fala sobre novas liberdades e possibilidades nas sociedades de controle, entretanto, os mecanismos de manutenção e consumo de uma subjetividade capitalística podem ser comparados aos mais rígidos confinamentos presentes nas sociedades disciplinares.

Em virtude dos inúmeros avanços e transformações globais ocorrendo em uma velocidade imensurável, os sujeitos se vêem obrigados a darem conta de múltiplas facetas de sua vida, a fim de se adaptarem a qualquer ambiente que lhes for requerido, o corpo se torna produto a ser comercializado/consumido, os corpos dóceis de Michel Foucault (1975/1987) perdem sua eficiência na sociedade contemporânea, pois só é possível produzir-se com corpo dócil através de arranjos onde cada sujeito tenha sua função estabelecida e de o máximo de si, ligações ordenadas, como cada aluno em seu lugar, cada operário em sua posição, etc. Quais seriam então as novas exigências impostas aos corpos e aos modos de subjetivação em uma sociedade capitalista?

Beatriz Preciado (2008) relata que com a queda do fordismo (que começou a degradar-se por volta de 1970) e das indústrias de cadeias de montagem, os anos que se seguiram foram de intensa busca por novos setores que agenciariam transformações na economia global, assim, iniciou-se uma exploração acerca das indústrias bioquímicas, eletrônicas, informáticas e de comunicação como os novos suportes do capitalismo, porém estes discursos ainda não eram suficientes para explicarem questões como produção de valor e da vida na sociedade atual, ao delongar das transformações industriais do último século é perceptível que progressivamente o negócio do novo milênio se torna a gestão política e técnica do corpo, do sexo e da sexualidade, passando a fala a Beatriz Preciado (2008, p. 20) “resulta hoje filosoficamente pertinente levar a cabo uma análise sexopolítica da economia mundial” (tradução nossa). Por sexopolítica Beatriz Preciado (2008) compreende como uma forma de dominação da ação biopolítica que atua no capitalismo contemporâneo, através dela tudo o que se associa ao sexo (práticas sexuais, órgãos biológicos, masculinidades e feminilidades, identidades sexuais...) está inserido nos discursos e práticas de controle da vida (dos corpos, da sexualidade) visando à normatização/padronização social.

A tecnologia e a indústria do marketing atravessam a existência capturando as formas de comunicação, tudo está tomado pelo capital (Deleuze, 1992), este mesmo autor acredita que os corpos também tornam-se produtos e as sexualidades ganham caráter normativo, os padrões de beleza e as expectativas idealizadas pelo marketing em larga medida inviabilizam a experimentação e reduzem as possibilidades de conexão e de relação. No mundo ideal, o marketing articula e manipula os discursos de forma que alguns aspectos da vida como a morte, os conflitos dentre outros, não tenham aparecimento, tudo que fica é o desejo de sair do anonimato, de ser feliz e de ser pertencente a algo. Maria de Fátima Vieira Severiano, Mariana Oliveira do Montefusco Rego & Vila Real Érica (2010) ao citar Debord (1992) discorre que o que importa nas relações cotidianas são as formas como exibimos nossos sucessos, nossas perfeiçoes e nossa suposta vida feliz. Esta exposição acontece diariamente nas redes sociais, sejam virtuais ou em eventos coletivos, fazendo de nós atores de um espetáculo ininterrupto.

Gilles Deleuze (1992, p. 224) pensa uma vida atravessada pelo consumo e pelo desejo de possuir aquilo que ele nomeou “alegrias do marketing”, nas sociedades de controle, todo e qualquer sentimento é capturado e estimulado pelo capital, mas a mídia, embora distribua estímulos que resultam na captura de desejos e na criação de expectativas, essas só serão supridas por uma pequena parcela da população, aquela que é portadora de recurso monetário, perante isso o autor pontua que o controle terá de enfrentar variações na fronteira e movimentos dos guetos e favelas, uma explosão da minoria que deseja ser ouvida/vista.

Félix Guatarri (1992) aborda esta questão midiática ao falar das subjetividades produzidas de forma máquinica, onde assinala que as máquinas provenientes da tecnologia responsáveis pela informação e comunicação atuam diretamente na produção da subjetividade humana. Esta imposição da tecnologia atua de forma a estabelecer uma homogenização universalizante, reduzindo a subjetividade, ao mesmo que reforça a heterogeneidade e a singularização. Esta produção maquínica pode operar visando o melhor ou o pior, dependendo dos agenciamentos que serão feitos.

Michel Foucault (1979) fala da verdade e dos tipos de discursos de cada sociedade, regimes de verdades que leva o sujeito a provar para si e para os outros quem ele é, nas sociedades de controle o consumo e os bens materiais são referências que determinam “identidades” e espaços que os sujeitos podem ou não circular. Gilles Deleuze (1992) discute sobre um discurso atravessado pelo capital, e segundo Beatriz Preciado (2008) o mercado ganha um novo produto que são as formas de vida idealizadas pelo capital, a subjetividade passa a ser consumida pelos sujeitos.

O corpo e a sexualidade passam a ser explorados economicamente, Michel Foucault (1979) fala que tal exploração resultou em intervenções que produziram padrões normativos e verdades que deveriam ser seguidas, “fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado” (Foucault, 1979, p. 147). A sexualidade passou a estar diretamente relacionada à realização pessoal e a um ideal de felicidade.

Concordamos com Beatriz Preciado (2008) que ao discorrer sobre determinantes normativos identitários, nos afirma existir uma lógica de programação do sujeito através da premissa sexo-gênero-desejo. Para explicar como o sexo e a sexualidade se converteram no centro da atividade política e econômica, Beatriz Preciado (2008) faz uma retomada histórica, iniciando com o fato de que durante o período da Guerra Fria os EUA investiram mais dólares na investigação científica sobre sexo e sexualidade que qualquer outro país ao longo da história, a partir daí temos diversas transformações e descobertas relacionadas ao corpo, como o surgimento da pílula anticoncepcional, a comercialização de hormônios, e cirurgia de construção do pênis, o surgimento de expressões como gênero, cirurgias plásticas, lançamento da revista playboy, enfim, gradativamente o corpo foi sendo moldado em um objeto/consumido/consumidor.

Todos, sem exceções, estamos inclusos neste processo de subjetivação capitalística onde ocorrem a produção de saberes e verdades que acabam por cercear a vida das mais diversas formas. Cabe aqui refletir sobre as possibilidades disponíveis, os meios que a ciência psicológica pode utilizar para explorar tais fenômenos em pró da produção de subjetividades outras, meios de atribuir potência aos processos de singularização e de agenciar-se outras vidas, apesar dos “anéis da serpente” (Deleuze, 1992, p. 226), estes anéis são compreendidos pelo autor como as artimanhas dos dispositivos disciplinares, de segregação agenciando a sociedade de controle.

4 Identidades e Gêneros: Normas sem lógica

Os aspectos linguísticos são de riqueza inestimável para análise dos discursos históricos culturais aos quais são embasadas a construção das subjetividades, e são também expressão da lógica heterofalocêntrica do biopoder, é interessante refletir sobre a linguagem que utilizamos em nossa vida, se pararmos para analisar as artimanhas de controle, veremos que ao escrever um texto sobre sexualidades dissidentes por exemplo, estamos ao mesmo tempo falando sobre fugas da norma e, para tal, utilizando de uma linguagem reguladora de corpos. Como já dito neste artigo, não é possível viver totalmente fora da norma, mas podemos encontrar meios de deslizar pelas fendas moleculares que perpassam a dureza da montanha do biopoder.

Ao falar sobre o processo de estabelecimento de relações e de construção de identidades, Louro coloca que,

Na medida em que várias expressões — gays, lésbicas, queers, bissexuais, transexuais, travestis — emergem publicamente, elas também acabam por evidenciar, de forma muito concreta, a instabilidade e a fluidez das identidades sexuais, e isso é percebido como muito desestabilizador e perigoso (Louro, 1999/2000, p. 21).

As pessoas começam a perceber que existem outras possibilidades de vir a ser, que não as pré-determinadas e impostas socialmente, essas falhas de programação desestabilizam o sistema, e o leva a agir desesperadamente para que tudo volte ao seu lugar, àqueles corpos que não retornam para a norma, são subitamente marginalizados, e pontuados para os demais como exemplo a jamais ser seguido.

Antes de ser uma noção geográfica, o território é político, ou seja, esse espaço político pode ser entendido aqui também como espaço onde ocorrem as negociações referentes à forma que cada local deve ser ocupado (Deleuze, 1992), assim surgem às políticas, os discursos normativos fixados, o que fica claro em falácias cotidianas, tais quais: cada coisa deve estar em seu devido lugar - ou ainda para com as pessoas - seu lugar não é aqui, essas verdades impregnam e atravessam as relações cotidianas produzindo sofrimento nas dissidências, que são excluídas de ambientes ou contextos específicos.

Aproveitando a deixa, queremos pontuar a importância deste entendimento para a atuação qualitativa d@ psicólog@, que deve estar atent@ a estas situações, podendo assim buscar meios para desconstrução da visão de uma psicologia elitizada, uma vez que estamos vivenciando a emergência de uma psicologia política, democrática, que seja e esteja plenamente comprometida com a vida.

Guacira Lopes Louro (1999/2000) nos descreve o quanto os processos identitários excluem as diversidades humanas, e assim dá a nos mostrar que a ideia disseminada em várias linhas teóricas da psicologia de identidade enquanto essência, não promove nenhuma forma de problematização, pois, uma vez que já nascemos com ela, não há como conectá-la a outras possibilidades. Para esclarecer o pensamento, por exemplo, a partir naturalização da heterossexualidade, foca-se toda a negatividade ao oposto desta, a homossexualidade, e a todas as outras ‘identidades’ sexuais que fujam ao padrão normativo, e quanto mais os olhares se voltam para as formas dissidentes como algo inimaginável, mais se petrifica a naturalização da heterossexualidade, ou seja, de um padrão de vida tido como correto e natural, onde tudo que se difere é tido como imoral e errôneo.

Richard Miskolci (2009, p. 278) fala sobre violências invisíveis, que se materializam segundo ele “entre o saber determinista e o poder social da mídia”, onde se associam desejos dissidentes a uma sexualidade improvável, exacerbada, perigosa, esses discursos acabam por criar imagens corporais desviantes, que surgem como uma ameaça social, consideradas subjetividades descontroladas, o medo de que estes corpos possam influenciar mais corpos, e que se multiplicando possam destruir o padrão social imposto, acaba por instituir de forma cada vez mais severa e sutil, um modelo cultural normativo e individualista, no intuito de manter o controle das subjetivações.

O sujeito, com todas as suas características e sua identidade, é o produto de uma relação de poder que se exercem sobre corpos, multiplicidade, movimentos, desejos, forças (Foucault, 1979). Ou seja, somos produtos e produtores das relações de poder, nós a exercemos, nós fazemos o sistema funcionar, estamos cada vez mais dependentes do sistema e dos dispositivos dele, é notável nas relações sociais cotidianas, por exemplo, estamos buscando sempre classificar, nomear e identificar tudo, temos internalizada essa necessidade de divisão imposta pela sociedade capitalista, e por vezes, perceber-se alienad@ não significa sair instantaneamente da captura do sistema, porém é o primeiro passo para articular-se dentro dele e questionar-se sobre suas vivências/verdades, enquanto psicólog@s podemos ser agenciadores destes questionamentos, incitadores desta percepção de um sistema dominante e esmagador.

Trazendo as problematizações ditas até aqui, também para o campo da atuação d@ psicólog@, pensamos que talvez o que falte nesta busca em relação às novas formas de se fazer psicologia, seja uma desorganização do viver, a entrega aos encontros, estar aberto às relações espontâneas, aos afetos que potencializam nossa atuação, que nos intensificam enquanto seres humanos, que nos joguem do pedestal da sabedoria e nos possibilite viver os devires, ou seja, experimentar um constante vir a ser, falta-nos talvez superar o medo da incerteza e do não saber o que fazer, como atuar e para quem intervir, e permitirmos inovações a ampliações das possibilidades da atuação da Psicologia.

Articulamos, essa necessidade de ampliação do campo psi as considerações sobre biopoder, biopolítica e sexopolítica realizadas anteriormente, uma vez que estabelecemos enquanto desafio das ciências ditas psicológicas não se transformarem em mais um dos dispositivos normatizadores e padronizadores do biopoder.

Pensando em sexualidades, na importância que estas têm adquirido ao longo da história da humanidade, e na naturalização da lógica heterofalocêntrica, onde, como já nos explicou Guacira Lopes Louro (1999/2000) não há espaço para subjetividades outras, percebemos que necessário se faz rever e problematizar os discursos divulgados em nossa sociedade hoje em relação a estas variações de vivências da sexualidade e subjetividades consideradas dissidentes. E que discursos têm a Psicologia diante destes corpos que fogem a norma estabelecida pelo biopoder? Em que posição nos encontramos enquanto profissionais psicólog@s? Somos potencializador@s da vida e destas dissidências, ou estamos atuando a fim de retorná-l@s aos lugares tido por corretos perante a sociedade? Busquemos melhor compreender estes corpos dissidentes.

5 O que deve um corpo x o que pode um corpo. Problematizações necessárias

Os discursos predominantes em relação às sexualidades que iniciaram-se a partir do século XIX, são discursos hetero-falo-normativos que até hoje sustentam os poderes e saberes voltados aos desejos que nos são permitidos experimentar, ou melhor, internalizar e reproduzir, ou seja, o que devemos fazer com nosso corpo. Podemos entender a partir do ponto de vista de Michel Foucault (1979) que a sexualidade não passa de um dispositivo de poder articulado através de discursos que, utilizam da mesma para ditar um padrão normativo utilizando-se de nossa sexualidade (nosso corpo) para controlar nossos modos de viver. “A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. Regime da verdade” (Foucault, 1979, p. 11).

A mesma sociedade que dita corpos abjetos, ou seja, corpos inviáveis e inomináveis, não quer se responsabilizar por eles, neste caso, abjetos se refere a corpos vitimados pelo preconceito, dissidentes, inclusive os que em sua minoria se fazem pulsantes e criadores, o que por vez os exclui e os destitui de direitos e significados, esses corpos buscam ser mais flexíveis, ou menos endurecidos, corpos que fujam ao discurso falocêntrico e circulem pelas possibilidades do existir. A “naturalização” da ordem heterofalocêntrica está tão articulada a nós, que mesmo alguns destes corpos que fogem a ela, criam espaços de discussão de suas resistências que acabam se adequando ao modelo corporal normativo.

O mundo se divide em objetos e sujeitos, em mulheres e homens. Os homens desejam as mulheres, e o desejo das mulheres não tem importância. Para reabilitar os homossexuais, temos que passar pelo sistema do semelhante e do diferente, o homossexual é por vezes diferente (é o terceiro sexo) e ao mesmo tempo semelhante (se subdivide em homem e em mulher) o discurso sobre a homossexualidade recorre sem cessar a jaula cerrada destas duas possibilidades. (Preciado, 2008, p. 39, tradução nossa)

Nossos corpos são utilizados como demarcação de normas, fronteiras ilusórias fixadas para que a ordem se mantenha, esses corpos são com o passar dos tempos repensados, e o discurso sobre eles é refeito, de forma a justificar as relações sociais em que estamos inseridos. Será que a psicologia, ao invés de questionar essa essencialidade dos corpos, não tem por vezes, contribuído para a manutenção do exercício da norma?

Esta disseminação da verdade pode levar (alguns) corpos considerados por ela dissidentes a um profundo isolamento, um dilema que levam tantos a medidas extremas, uma vivência de sofrimentos, da experiência de compreender o próprio corpo como algo impuro e poluidor (Miskolci, 2009).

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (Foucault, 1979, p. 12)

Enquanto ciência psicológica, ainda nos encontramos enraizados em teorias que contribuíram na época em que foram pensadas, mas que não atendem a demanda contemporânea, e se estas teorias surgiram através de problematizações acerca da demanda vivenciada, estamos fazendo/construindo a ciência psicológica a cada questionamento levantado, a cada teoria reavaliada, a cada movimento do pensar.

Seria necessário um processo de desnaturalização da Psicologia, desconstruir as práticas que classificam e diagnosticam os sujeitos, de uma psicologia que se apóia em um discurso essencialista, que se atenta a identidades fixas e imutáveis, para que a partir desta desconstrução, fosse possível pensar uma psicologia política e comprometida com a vida enquanto potência.

6 Como pensar uma Psicologia dissidente?

A ciência Psicológica emergiu no século XIX em meio à sociedade disciplinar, como dispositivo de poder que pudesse e que ainda possa, exercer a norma, estabelecer a ordem, e garantir um padrão identitário que privilegia a homogeneização dos comportamentos, uma psicologia molar, higienista (Patto, 2012). É de extrema importância que se problematize os discursos atuais dia a dia, que façamos o exercício diário da análise crítica das verdades impostas pelo biopoder, pois compreendemos que os discursos produzidos para os sujeitos de hoje, podem não dar conta dos sujeitos de amanhã, a sociedade se transforma a cada minuto, tornando-se cruel a imposição de saberes que não fazem parte da constituição da sociedade em vigência.

Atualmente vem-se discutindo a psicologia enquanto plural, que acolhe em suas práticas e teorias as diversidades imanentes em nossa atualidade, uma psicologia que discurse sobre os corpos considerados dissidentes, sem julgá-los como tal, pois não cabe na diversidade um padrão comparativo de identidades e comportamentos. Porém há ainda em nossa profissão um grande número de profissionais que pautados no discurso heterofalocentrista ao qual tanto questionamos não veem espaço para mudança.

Poucos e poucas conseguem ver que a diferença não se compra, não se busca, não se alcança. Ela acontece, ela surge, é uma linha fugidia no caos, assim como acontece aos artistas que inventam mundos, imagens, poesias, universos diferentes, a diferença, em nós, ou melhor, aparece entre nós, nas multidões, nos coletivos, tudo muito provisório, sem garantias de futuro (Teixeira-Filho, 2013, p. 163).

Com a emergência de novas demandas (moleculares), destes corpos dissidentes que estão ganhando ‘visibilidade’ e clamando pelo direito de ser, de viver, de ser reconhecido como cidadão e ser humano, extremamente urgente se faz que através das linhas de fuga, busquemos meios de deslizar para essa margem, para dar vida e potencia a estes corpos, para exercer uma psicologia pautada nos direitos humanos, e que abranja de fato todos os seres humanos, e não apenas aqueles que a norma dita terem voz e vez.

Subjetivados em um sistema molar, onde quanto mais fixo mais segurança se obtém, muitos certamente não estão abertos ao novo, inovar a psicologia requer esforço e movimento, sem contar que não há garantia alguma, existe muito medo envolvido em relação a este abandono do conforto identitário, poucos são os que se propõe a experimentar esta não identidade, pois nos encontramos viciados demais nela para correr o risco de abandoná-la (Teixeira-Filho, 2013).

Por ser a Psicologia um dispositivo de poder, cabe a psicólog@ ser um dispositivo de criação de potencialidades do existir, estimulad@r de relações intensas, que se permita transitar pelos devires, para produzir uma psicologia que seja diversa, valorizando as subjetividades, e que fundamentalmente não se faça essencialista. A psicologia está atravessada pela molaridade por pautar-se ainda em teorias essencialistas e enraizadas, embora já tenhamos citado que em todo centro de poder há fragmentos de flexibilidade, a psicologia ainda se encontra muito detentora do poder e do saber.

É necessário também, que a psicologia realize mais estudos sobre sexualidades, gêneros e suas infinitas variações, precisamos desmistificar dentro da psicologia este tabu social, onde os discursos sobre sexo e sexualidade são interditados e restritos apenas a alguns. A sexualidade está explicitamente emergindo em nossa sociedade, como não investigar uma demanda atual? Como não falar de algo que todos vivenciamos? Quais são os discursos referentes à sexualidade que se tem abordado nas academias? Se nos referimos à inovação da atuação em psicologia, esta necessita começar justamente na formação dos novos profissionais da área.

Uma Psicologia que queira ser chamada de inovadora, deve se desterritorializar em territórios biopolíticos construídos a partir da lógica heterofalocêntrica e buscar dar visibilidade aos devires que fujam desta norma (Teixeira-Filho, Peres, Rondini & Souza, 2013).

A Psicologia enquanto agenciadora de uma vivência queer, deve buscar levar o indivíduo a problematizar e questionar estas identidades cristalizadas pelas construções culturais e sócio históricas, a fim de potencializar uma existência que seja criativa e molecularizada (Teixeira-Filho, 2013).

Há muitas definições sobre o que seriam a teoria, os estudos, para não falar da política queer. O próprio termo queer não tem um único significado em inglês. Poderia ser traduzido como esquisito, estranho, excêntrico, anormal, como também por uma série de xingamentos dirigidos àqueles e àquelas que transgridem convenções de sexualidade e de gênero – expressões da linguagem comum que, conotando desonra, degeneração, pecado, perversão, delimitam o lugar social estigmatizado da homossexualidade e, por extensão, de tudo que venha representar alguma forma de desvio e ameaça à ordem social estabelecida. (Miskolci & Simões, 2007, p. 9)

Ao falarmos sobre desconstrução de identidades cristalizadas, cabe citar os estudos queer, uma vez que estes são justamente uma não teoria, uma proposta de não identidade, o queer rompe as barreiras da norma, é uma visão inclusiva, aberta, flexível, que aborda a multiplicidade e a marginalidade, ela é um constante devir, sem conceitos fixados e molares. O movimento queer surgiu através das lutas sociais, das buscas por direitos, dos gritos clamando por vida, por reconhecimento das muitas possibilidades de se viver, iniciou-se nas ruas e tornou-se ciência, uma ciência que incomoda, inquieta, que verbaliza os discursos ocultos que não são debatidos no social (Miskolci & Simões, 2007).

Portanto, acreditamos que novas psicologias da desconstrução, seja o caminho para torna-la uma ciência dos devires que confronte a manutenção de identidades padronizadas (molarizadas), e atue em prol da produção de potências de vida, atuando e produzindo saberes de forma ética, que façam garantir que todos os humanos, independente da estética de suas existências, sejam humanos de direitos.

7 Fechando nossa conversa:

Deveríamos estabelecer como meta esse movimento de desconstrução de saberes que agenciam verdades imutáveis, desconstruir essa psicologia molar e identitária, realizar o exercício do pensar e não do reproduzir, explorar uma meta psicologia, olhar para além dos conceitos psicológicos, das normas e regras, das verdades, etc.

É preciso movimentar a psicologia, mas sem dar um ritmo harmonioso, nada de reproduções, esse movimento crítico em relação ao pensar as formas de subjetivações existentes, deveria ser um exercício estimulado durante a graduação, ainda que esta se torne contraditória diante do sistema normativo que rege a instituição educacional.

Chega de produção e promoção da saúde e qualidade de vida como referência biomédica, o papel do psicólogo não pode se esgotar na manutenção do biopoder, é preciso romper com os limites dos psicodiagnósticos, deveria fazer parte do processo de subjetivação das psicólogas e dos psicólogos que seu papel é também produzir/promover e agenciar espaços/territórios onde singularizar seja possível, onde as dissidências tenham vez/voz, onde a vida e suas possibilidades múltiplas ganhem potencia.

Precisamos ser polêmicos, pesquisadores e pesquisadoras de uma emergência contemporânea que observam e disseminam saberes do aqui, do agora, que expandam os parâmetros das psicologias, não apenas para além da clínica, que tem sua importância, mas para além dos discursos normatizados, nos policiar cotidianamente para não reproduzir e/ou impor as normas de um sistema que classifica, enumera, transforma-nos em um código, induz-nos a desejos que não nos pertencem, não falamos aqui de um simples rebelar-se contra a lógica social e decidir não segui-la, pois somos capturados mesmo tendo conhecimento de nossas cercas, de nossos muros, mas não podemos deixar que nos roubem a criticidade, a possibilidade de problematizações acerca do modo que vivemos e da forma como o meio social se organiza, a chamada que nos propomos a fazer aqui, é levar a possibilidade de exercitar o pensamento enquanto ruptura, à aqueles que há tempos a deixaram de lado, ou mesmo, que jamais a utilizaram. O pensar que aqui propomos corresponde ao descrito por Altair Carneiro (2013, p. 15-16) quando ao discorrer sobre Deleuze, afirma que “para que pensemos, portanto, é necessário que sejamos atormentados e confrontados por alguma coisa de fora, que este algo seja capaz de tirar nossa tranquilidade de tal forma que nos violente e nos force a encontrar um novo sentido, uma causa para tal incômodo”.

Não pretendemos concluir este artigo estabelecendo uma forma inovadora de atuação em Psicologia, nosso intuito desde o início é deixar problematizações acerca de como vem sendo feita a psicologia, ou como não deveria ser feita. Enquanto acadêmicos, experimentamos os cerceamentos em torno de nossa formação, em relação ao controle e institucionalização, lamentamos ver que ainda hoje, aprendemos na academia a reconhecer e classificar identidades, ou diagnosticar dissidências, tais armadilhas surgem da reprodução e aplicação de teorias descontextualizadas e obsoletas que não atendem a uma demanda contemporânea.

A sociedade contemporânea é regida por ordem e imposições normativas, ou seja, regras de condutas que em suma, não são passíveis de “desobediência”. Um poder instalado de forma sútil, cristalizado, naturalizado, o biopoder atua de forma silenciosa estabelecendo um padrão que vigora sem indagações, pois, os corpos são passíveis de manipulação do sistema capitalista, que por sua vez, produz uma subjetividade a ser consumida e reproduzida pelos mesmos.

Ocorre que para manutenção deste monopólio de corpos padronizados, o sistema precisa estar a todo o momento se reinventando para poder capturar novamente os corpos que tentam fugir das estruturas, já que se precisa manter a ordem da sociedade e, também, o desfalecimento dos processos de singularização, os quais são possíveis ter a realização, experimentação do corpo, novas possibilidades, potencialidades que são vistas como algo totalmente estranho e inaceitável. Isso produz a ideia que vigora de que o sistema precisa adentrar nesta perspectiva e, identificar esses corpos a fim de manter-se o controle absoluto destes.

Boaventura de Souza Santos (1994/1997) insere uma afirmativa que ilustra a nossa proposta neste artigo, de modo que para este autor “a universidade deveria ser uma anarquia organizada, feita de hierarquias suaves e nunca sobrepostas, nas quais fossem valorizados diferentes saberes” (p. 225). Assim, entendemos no decorrer deste artigo, que a academia nos proporciona lugar de enunciação de um saber que precisa ser disseminado partindo do conhecimento para uma prática pautada na ética que move todo o saber psicológico.

Através do discurso teórico podemos concluir que estes corpos que não fogem de toda normatização, de toda captura de singularização que impede a experimentação dos desejos, contribui de forma abusiva para que outros corpos fiquem destinados à sociedade dos invisíveis, à margem da população capitalisticamente obediente, adestrada e regulada.

A sociedade capitalística não consegue por hora, se libertar dos grilhões que aprisionam, que nomeiam, que classificam os diferentes, bem como o fazem com os considerados como iguais. Deste modo, esta vertente do conhecimento nos instiga a problematizar seus conceitos de forma que neste contexto de uma hierarquia organizada, o que deveria prevalecer, seria sem dúvida alguma, a liberdade de devirmos.

As problematizações aqui levantadas não se esgotam neste artigo, procuramos nos embasar em autores da atualidade que constantemente buscam uma nova forma de se fazer/pensar a psicologia, uma psicologia que potencialize a vida tanto daqueles que dela dispõem quanto dos profissionais que a exercem.

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