Contribuições do conceito de Heterogeneidades Enunciativas a uma Psicologia Social Crítica

Contributions of the concept of “Enunciative Heterogeneities” to a Critical Social Psychology

  • Renata Patricia Forain de Valentim
Que contexto epistemológico permite que a psicologia, que se dedica ao estudo de questões sociais e coletivas, questione o conhecimento que é discursivamente construído em seu interior? É neste espaço de encontro que gostaria de propor esta análise sobre o tema da alteridade. Pensar o que a singularidade desta relação com os estudos da linguagem traz para a psicologia social e para o campo epistemológico que se define a partir daí. Pensar o papel que eles podem desempenhar na construção de um conhecimento psicológico não apenas plural, mas também auto-reflexivo, que retorna e exerce em si mesmo, na forma de um processo metalinguístico, a análise dos gêneros discursivos que rondam e determinam sua própria produção. Para operar esta discussão trago o conceito de Heterogeneidades Enunciativas, desenvolvido pela linguista Jacqueline Authier-Revuz a partir da década de 1980, como importante aporte teórico e metodológico da análise dos elementos interdiscursivos.
    Palavras chave:
  • Alteridade
  • Psicologia Social
  • Estudos do Discurso
  • Heterogeneidades Enunciativas
Which epistemological context allows the psychology, dedicated to the study of social and collective issues, to question the knowledge that is discursively constructed inside? It is in this meeting space that I would like to propose that analysis on the topic of otherness. To think that the uniqueness of this relationship to the study of language brings to the social psychology and the epistemological field that is defined from there. Think the role they can play in building a psychological knowledge not only plural, but also self- reflective, which returns and exerts itself in the form of a metalinguistic process, the analysis of genres that are around and determine their own production. To operate this discussion I bring the concept of “Enunciative Heterogeneities”, developed by linguist Jacqueline Authier - Revuz from the 1980s, as an important theoretical and methodological approach of the analysis of interdiscursive elements.
    Keywords:
  • Otherness
  • Social Psychology
  • Studies of Speech
  • Enunciative Heterogeneities

1 Introdução

Quais são os caminhos de implicação entre uma psicologia social de caráter crítico e os estudos da linguagem? Melhor falando: que contexto epistemológico permite que a psicologia, que se dedica ao estudo de questões sociais e coletivas, questione o conhecimento que é discursivamente construído em seu interior? Ou, por outro lado, que permite que os estudos da linguagem passem a costurar palavra e história, conceituando o discurso como prática social em movimento?

É neste espaço de encontro que gostaria de propor esta análise sobre o tema da alteridade. Pensar o que a singularidade desta relação com os estudos da linguagem traz para a psicologia social e para o campo epistemológico que se define a partir daí. Pensar o papel que eles podem desempenhar na construção de um conhecimento psicológico não apenas plural, mas também auto-reflexivo, que retorna e exerce em si mesmo, na forma de um processo metalinguístico, a análise dos gêneros discursivos que rondam e determinam sua própria produção.

A ideia de “crítica”, que pretendo circunscrever para a psicologia e que penso ser indissociável da análise dos discursos sociais, parte daí e apoia-se na premissa, oferecida por Eni Orlandi (2012), dos indivíduos, dos grupos, das culturas e da própria ciência como construções significantes afetadas pela história. Partindo desta definição - e em diálogo com Lupicinio Iñiguez-Rueda (2003)- três condições se destacam na produção de um conhecimento psicossocial que queira romper com as formas universalizadas e naturalizantes características do a-historicismo: a inevitabilidade de suas condições e consequências sociais e políticas; o diálogo necessário e constitutivo com o outro com o qual dialoga empiricamente, seja em seu campo de trabalho, seja nas relações acadêmicas; e finalmente, no questionamento ininterrupto do conhecimento produzido em seu interior. Como nos lembra Teun Van Dijk (2009/2010), levando em conta os inúmeros mecanismos discursivos que atravessam a constituição desse conhecimento e fazem, por exemplo, caracterizar seu outro como tal.

Para operar esta discussão trago o conceito de Heterogeneidades Enunciativas, desenvolvido pela linguista Jacqueline Authier-Revuz a partir da década de 1980, como importante aporte teórico e metodológico da análise dos elementos interdiscursivos, como nos informam Diana Pereira de Mesquita e Ismael Ferreira Rosa (2010). Segundo Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2004), através dele é ressaltada a impossibilidade de um discurso homogêneo, que não misture os diversos tipos de sequências textuais e onde não seja identificada a presença de discursos “outros”, atribuíveis a outras fontes enunciativas.

A presença desses “outros” no discurso será identificada por Authier-Revuz em duas formas de relação com a alteridade, a heterogeneidade que explicitamente se mostra no discurso e aquela que não se explicita, mas que é constitutiva do discurso. Estes planos representariam duas ordens diferentes de relação com a palavra: a dos processos reais de significação acerca do que quer que seja e a dos processos não menos reais do espaço de sua própria instauração, que se dá independentemente de qualquer forma de alusão ou citação.

Neste estudo as questões propostas por Authier-Revuz são então recolocadas, procurando refletir sobre essas duas possibilidades no campo que se forma pela psicologia social em diálogo com a análise das formações discursivas.

Em primeiro lugar, como heterogeneidade mostrada, na pesquisa das engrenagens que possibilitam o encontro, constituindo e movimentando o diálogo; como presença localizável de um discurso no fio de outro. Neste primeiro momento, parto do princípio de que no estabelecimento nestas “travessias de fronteiras disciplinares” (Van Dijk, 2003/2004, p. 8) se erige um campo hermenêutico específico. E que esta constituição necessariamente predispõe uma primeira diferença, uma imagem autoconstituinte, que de um interior formulará contornos determinados e posicionará rupturas ou continuidades a serem demarcadas na relação a outras teorias e práticas de psicologia social. Neste caso, a construção de um discurso que, entre outras características, mantém nos campos teóricos, metodológicos ou políticos (Iñiguez-Rueda, 2003/2004), uma abordagem anti-representacionista, não causal, desnaturalizada, descentralizadora do sujeito e da palavra e que deposita nestas características a “singularidade de sua enunciação”. (Charaudeau e Maingueneau, 2004, p. 260)

Em segundo lugar, como heterogeneidade constitutiva, trazendo um debate com a alteridade “que se faz independentemente de qualquer traço visível de citação, alusão” (Charaudeau e Maingueneau, 2004, p. 260) e que se dá muito mais como um estranhamento, não a um outro definido imaginariamente, mas sim como estranhamento justamente às formações discursivas que constituem essa nossa identidade e que se pretendem como as mais próprias. Na perspectiva de Mikhail Bakhtin (1929/2013), autor amplamente utilizado por Authier-Revuz, como uma expressão da dialogicidade generalizada a que estamos expostos, na medida em que as palavras que utilizamos, as construções discursivas com as quais nos denominamos e procuramos compreender e organizar o real, são urdidas em um meio simbólico que nos antecede.

A discussão sobre o conceito de heterogeneidade constitutiva e sua relação com a construção deste campo epistêmico que se quer definir, marca de forma coerente às lições construcionistas, a inviabilidade das totalizações discursivas e o naufrágio crônico do que Michel Foulcault vai definir como a “vontade de verdade” (1970/2015). Ainda segundo Authier-Revuz (1982), a presença do outro, neste caso, emerge no discurso, precisamente nos pontos em que se insiste em quebrar a continuidade, a homogeneidade, fazendo vacilar o domínio de significações estratificadas e desfazendo a possibilidade de um enunciador onisciente, onipresente e de um sujeito/discurso absoluto. A presença da alteridade, neste caso, evidencia um enunciador alienado pelo que fala por ele ou através dele, seja através de alguma coisa que o antecede e o determina; seja através das infinitas possibilidades de significação que podem se constituir à sua revelia.

Essa inviabilidade totalizante do discurso que a heterogeneidade constitutiva denuncia é trazida por Authier-Revuz através de dois outros conceitos. Em primeiro lugar pelo conceito bakthiniano de dialogicidade, particularmente através da discussão sobre os componentes “extralinguísticos” do discurso; bem como da impossibilidade da “formação dialética de um espírito uno”. Limite, neste caso, imposto pelas próprias características históricas das inter-relações de acontecimentos e, segundo Paulo Bezerra (2013), pela inserção de valores do cotidiano e do tempo da enunciação/narração, que se objetivam interdiscursivamente nas estâncias multiplanares dos universos sociais. (Bakthin, 1929/2013).

Será trazida também pelo conceito lacaniano de “Grande Outro” (A). Conforme nos lembra Antônio Quinet (2012, pp. 20-21), lugar onde se acomodam as determinações sociais como “arquivo dos ditos de todos os outros que foram importantes para o sujeito” e onde o “sujeito é mais pensado do que efetivamente pensa” (Quinet, 2012, pp. 20-21). Determinações e ditos, arquitraços culturais e simbólicos que se impõem inclusive naquilo que o discurso define como sendo um espaço próprio, singular. Determinações que se atualizam a cada aquisição individual da linguagem e que marcam, através desta aquisição, a entrada definitiva do sujeito no mundo das trocas simbólicas.

Este Grande Outro, que na teoria psicanalítica de matriz lacaniana acaba por constituir o lugar do inconsciente, possui uma força de determinação que se impõe como uma força a que o sujeito precisaria acatar para poder se definir. Na perspectiva Bakhtiniana, como nos lembra Daniel Faïta (1997), esta força a ser acatada poderia ser localizada nas motivações e designações da própria atividade de linguagem, nas estruturas simbólicas em função das quais o enunciado ganha sentido. Formas sociais, gêneros pré-estabelecidos do discurso, com os quais forçosamente é necessário estabelecer um primeiro diálogo.

Nestas interlocuções entre autores e conceitos, questões que fazem refletir sobre o lugar ocupado por estes gêneros discursivos ou por estas estruturas simbólicas na constituição e disseminação do sentido que é conferido à experiência. Neste caso, a experiência cotidiana de um fazer acadêmico que é também social e histórico, fazendo pensar na forma como a palavra que constitui esta experiência é atravessada por outras, vindas das interações sociais e dos enunciados que a antecedem. Segundo Bakhtin, lugar onde o olhar e a palavra do outro me nomeiam, me constituem e me impregnam de valores, balizando através de seus sentidos e mesmo da entonação com que me são apresentadas, as configurações de minha própria interioridade (Bakhtin, 1929/2013).

No caso destas “fronteiras disciplinares”, que disciplinarmente se ordenam e que supostamente se estabelecem no diálogo entre os estudos da linguagem e a psicologia social, seria pensar o que as faz claudicar. Pensar o que rompe com a imagem autoconstituinte e narcísica de um campo epistemológico específico e as lança na impossibilidade de uma unidade natural e de uma vez por todas estabelecida. Pensar naqueles diálogos mais radicais nos quais estão igualmente inseridas e que demandam um contínuo posicionamento crítico frente às construções de sentido, que, do exterior, atuam ininterruptamente sobre os pontos desta junção.

2 A Heterogeneidade Mostrada: Psicologia Social e Estudos do Discurso

A heterogeneidade de um discurso é um tema cada vez mais discutido pelas diferentes escolas que o analisam. Seja na análise de discurso, na pragmática, ou na teoria dos signos, o discurso é sempre desconjunto, atravessado pela mistura de diversos tipos de “sequências textuais” (prefácios e conclusões; abertura e moral final); de gêneros (cotidianos, institucionalizados, literários); modalizações (a atitude do sujeito falante com relação ao seu próprio enunciado frente à recepção encontrada); registros de língua; entre inúmeros outros “fatores de heterogeneidade” (Charaudeau e Maingueneau, 2004, p. 261).

Como já foi falado, a distinção proposta por Authier-Revuz localiza dois grandes grupos destas heterogeneidades, destas exterioridades múltiplas com as quais um discurso/ sujeito precisa a todo o momento negociar na constituição de seus próprios domínios e mecanismos: a Heterogeneidade Mostrada (marcada ou não) e a Constitutiva.

No caso da Heterogeneidade Mostrada, trata-se da construção de um domínio identitário, do lugar a partir do qual se enuncia e se delimita um corpo. Marcação, neste caso, constituída pelos inúmeros balizamentos exteriores que ininterruptamente o identificam e o definem a partir de tudo que lhe é externo, a partir daquilo que ele não é, daquilo que ele não comporta. Uma forma identitária não estabilizada, incessantemente reconstruída nas referências ao outro com o qual negocio.

Estes balizamentos podem ser ou não explicitamente demarcados no interior do discurso. No caso da Heterogeneidade Mostrada Marcada, estes conteúdos da exterioridade são assinalados de maneira unívoca. São as aspas no interior do discurso, são o “como disse fulano ou sicrano”, o “como eu diria”, o “se me permitem a expressão” (Charaudeau e Maingueneau, 2004, p. 261) uma alteridade que se apresenta no interior do discurso do sujeito como uma importação do discurso do outro. Um fragmento que foi extraído da sua cadeia enunciativa original e remetido a outro lugar (Authier-Revuz, 1990, p. 29).

Na heterogeneidade não marcada, por outro lado, esta exterioridade aparece de forma mais diluída nos discursos indiretos, nas alusões, paródias, pastiches, estereótipos e ironias (Charaudeau e Maingueneau, 2004, p. 261). Contrariamente à forma marcada, aqui não há ruptura sintática e o fragmento designado como um outro é integrado à cadeia discursiva (Authier-Revuz, 1990, p. 29).

Estas duas formas, segundo Authier-Revuz (2011), reforçariam as discussões sobre o conceito de “dialogismo”, propostas pelo círculo bakthiniano, como uma “reflexão multiforme, semiótica” dirigida também à constituição de uma teoria da “dialogização interna do discurso” (Authier-Revuz, 1990, p. 25). No caso da Psicologia Social e dos Estudos do discurso, a emergência das predisposições que antecedem e preparam este encontro pode ser reconhecida em alguns momentos. Como, por exemplo, na “virada discursiva", expressão que Richard Rorty (1991/1999, p. 75) atribui a Gustav Bergmann e define como uma tentativa desesperada da filosofia de delimitar um espaço próprio para o conhecimento, assegurando uma temática “ideal”, “um substituto para o “ponto de vista transcendental de Kant””: a linguagem.

Desta “temática ideal”, os estudos da linguagem migram, ao longo do século XX, para a análise das estruturas lógicas de sua composição, para o exame de seu uso cotidiano, público e objetivado e a análise das lógicas ambíguas, imperfeitas e imprecisas de suas formas. Segundo Van Dijk (2003/2004) neste deslizamento, um progressivo afastamento da tradição cartesiana e a percepção de que a linguagem faz muito mais de que representar o mundo. Isso porque, segundo Tomás Ibáñez-Gracia, a linguagem “ é basicamente um instrumento de fazer coisas. A linguagem não só “faz pensamento” como também ‘faz realidades’”. (2003/2004, p. 33) e o papel atribuído a ela nas grandes variedades de correntes sociológicas e psicossociais paulatinamente se configura como uma perspectiva específica, “onde a “linguisticidade” e o “linguístico” ocupam um lugar central” (Iñiguez-Rueda, 2003) na forma de poderosos instrumentos de desnaturalização das formas sociais.

Em meados do século XX, este “giro” na direção dos estudos da linguagem formará a base concreta, transdisciplinar _ junto da teoria dos atos de fala, da linguística pragmática, das obras do círculo bakthiniano, da escola de Frankfurt, de alguns conceitos de Michel Foucault, de Benveniste e de Saussure, entre outros _ do conceito de discurso. A partir destas diversas e heterogêneas vertentes, esta categoria progressivamente passa a ser utilizada para definir uma unidade linguística, que extrapola as análises formais e que deve ser analisada em seu uso mundano: como “traço de um ato de comunicação sócio-historicamente determinado”, orientado e contextualizado; regido por normas e interativo, polifônico, assumido no interdiscurso, além da já mencionada capacidade de se constituir como ato, como forma de ação (Charaudeau e Maingueneau, 2004, p. 169-170).

Desde os anos 80 observa-se então uma proliferação incontornável do termo discurso nas ciências da linguagem e uma progressiva aproximação das ciências sociais, chegando, nos primeiros anos do século XXI a se constituir o que Conceição Nogueira vai definir como um “termo da moda” (2008, p. 235), uma “panaceia”, que poupa o exercício de exploração do conceito. Nesta generalização, fica muitas vezes adormecido o questionamento histórico de sua emergência, possível graças ao distanciamento das abordagens positivistas nas ciências sociais e à consequente revisão de seus paradigmas epistemológicos. Fica adormecido também o processo de sua filiação crítica, que orienta suas construções hermenêuticas.

Antes disso, porém, no campo da Psicologia Social, a virada linguística leva a uma crítica interna de seus pressupostos e práticas, problematizando as formas de conhecimento produzidas no que Michel Pêcheux (1966/2011, p. 27) denomina como sua “estrutura histórica global”. Uma “linha de ruptura” que se estabelece no momento em que não apenas a Psicologia Social, mas as Ciências Sociais como um todo pretendem deixar de lado as causalidades naturalizadas, historicamente vinculadas às práticas de higienização física e moral das populações, e se voltam para os estudos do discurso, como forma de análise de um sistema articulado, que “reflete as práticas sociais complexas” (p. 35).

Segundo Ian Parker, na constituição deste campo há a construção de abordagens críticas, não causalistas e descentralizadoras, que se voltam para as condições ideológicas de possibilidade do próprio conhecimento produzido (Parker, 2007) e que se associam aos estudos do discurso como forma de análise dos campos do conhecimento e da experiência. Segundo Parker (2007), desconstruindo a neutralidade do discurso psicológico e tratando “the psychological jargon as one powerful discurse that circulates in Western culture” (p. 3). Tomando as próprias considerações dos psicólogos como discursos, não como fatos, em uma análise que encoraja os links entre a linguagem, o poder e a resistência.

Neste retorno da linguagem sobre si mesma, a questão fundamental que faz refletir sobre sua presença na construção de um campo de análise social crítica. Mais especificamente, sobre a relação de dialogia que o campo da psicologia social estabelece com estes estudos. Relação de interioridade/exterioridade que é marcada, de um lado, por um diálogo visível, uma presença interiorizada assumida e desejável, que instaura campo de análise, teorias e métodos. Por outro lado também, marcada por um diálogo que questiona ininterruptamente o próprio campo que instaurou, em uma espécie de metalinguagem autofágica, que desconstrói incansavelmente os campos de sentido estabelecidos, remetendo-os sempre a um alhures que, de fora, dialoga com as formações discursivas interiorizadas. Descentramento enunciativo que desfaz constante e ininterruptamente as marcações epistêmicas e as proteções identitárias ilusórias que foram utilizadas para que o discurso pudesse ser mantido. É o corpo do discurso e sua identidade que são questionados e expostos ao risco de um jogo incerto com formas não marcadas e não explícitas de sua própria enunciação e onde “the identty is simply an effect of narrative” (Parker, 2007, p. 6).

3 A Heterogeneidade Constitutiva

Nesta ambivalência que a presença dos estudos do discurso traz para a Psicologia Social é que estaria o conjunto de fissuras e junções que Authier-Revuz denomina de “Heterogeneidade Constitutiva”. Uma fala desdobrada, que funcionando sob a unidade aparente de um discurso, ou de qualquer outra forma identitária que se estabeleça, retira sua possibilidade de autonomia, descentrando-a e deslocado-a em função de uma exterioridade polimorfa e heterônima (Authier-Revuz, 1990, p. 29). Segundo Authier-Revuz, uma forma mais arriscada porque joga com a diluição, com o desvanecimento do outro no um, onde este, precisamente aqui, pode ser enfaticamente confirmado, mas também onde pode se perder.

Ainda segundo Authier-Revuz, o que caracteriza as formas marcadas da heterogeneidade mostrada como formas do desconhecimento da heterogeneidade constitutiva é que as primeiras operam sobre o modo da denegação. Elas manifestariam a realidade desta onipresença do outro precisamente nos lugares onde tentam encobri-lo, negá-lo, delimitando seu um, sua identidade, sua imagem, através destas fronteiras dialógicas. “Compromisso precário que dá lugar ao heterogêneo e, portanto, o reconhece, mas para melhor negar a sua onipresença” (Authier-Revuz, 1990, p. 33). Para Dominique Maingueneau (2005/2012), isso faz com que a unidade de análise pertinente não seja o discurso em si mesmo, mas o sistema de referência aos outros discursos através do qual ele se constitui e se mantém: “cada discurso constituinte é inseparável da gestão dessa pluralidade, dessa impossível coexistência, aparecendo assim ao mesmo interior e exterior aos outros, os quais ele atravessa e pelos quais é atravessado” (p. 7). Nestas formas da heterogeneidade constitutiva, o que está em jogo é o interdiscurso e a constituição desse um, que se dá por exclusão de todas as demais hipóteses enunciativas.

Como já foi dito, em Authier-Revuz a proposição desta heterogeneidade fundante, constituinte dos discursos, apoia-se em dois conceitos básicos: no conceito de dialogicidade, presente nas obras do círculo bakhtiniano, e no conceito lacaniano de “grande Outro”. Do primeiro é razoável afirmar que está entre os conceitos-chave do círculo e baseia qualquer desempenho verbal. Em Bakhtin, a locução é necessariamente dialógica por estar desde seu nascimento associada à existência de enunciados anteriores, emanantes dela mesma ou de outros. Não há um primeiro locutor "que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo", o locutor é, por natureza, um respondente. Sua entrada na linguagem é a pressuposição "não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência de enunciados anteriores” (Bakhtin, 1979/1997, p. 291).

Destas relações, por princípio, dialógicas, Bakhtin destaca aquela estabelecida pelos gêneros discursivos, "formas-padrão” relativamente estabilizadas de estruturação do todo, utilizadas na prática com destreza, porém ignorados teoricamente: “Na conversa mais desenvolta, moldamos nossa fala às formas precisas de gêneros, às vezes padronizados e estereotipados, às vezes mais maleáveis, mais plásticos e mais criativos”. Estas matrizes, segundo Bakhtin, introduzem-se em nossa experiência e são indissociáveis da própria aquisição da linguagem: “aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (...). Os gêneros de discurso organizam a nossa fala da mesma maneira que organizam as formas gramaticais (sintáticas)” (Bakthin, 1979/1997, p. 303).

Ainda segundo Bakhtin (1979/1997), desde essa aquisição, aprendemos a moldar nossas falas às falas do gênero e a pressentir sua estrutura, seu volume, seu fim, estabelecendo com ele uma primeira e fundamental relação dialógica. Nas relações cotidianas, a difusão destas formas pré-estabelecidas é tão corrente que o “querer dizer individual do locutor quase que só pode manifestar-se na escolha do gênero” (1979/1997, p. 302), e será em função disso que o enunciado, apesar de sua individualidade ou singularidade não poderá nunca ser considerado como “uma combinação livre das formas da língua” (p. 304).

O segundo ponto no qual Authier-Revuz se apoia para discutir as formas da heterogeneidade constitutiva é a categoria de “Grande Outro” proposta pelo psicanalista Jacques Lacan. Neste autor podem ser reconhecidas duas formas de alteridade. A primeira seria a forma do “pequeno outro” (a, de autre), forma de alteridade unificada, apreensível, com a qual dialogo em minha constituição: “o sujeito humano desejante se constitui em torno de um centro que é o outro, na medida em que ele lhe dá sua unidade” (1981/1985, p. 50). Já o “Grande Outro” (A, de Autre) remete a outra forma de alteridade, a uma palavra que está fora do sujeito e que aponta para um além do que ele próprio pretendia dizer. Lugar onde os mecanismos conscientes da intersubjetividade se dissolvem, rompendo com qualquer ideia de reflexo, de idêntico ou de complementar que aparece na relação identitária.

De forma comparativa, a relação de alteridade que as formas identitárias estabelecem com esse “Grande Outro” mostra-se com muito mais radicalidade (Lacan, 1978/1987), relacionando-se às criações simbólicas, subjacentes, inconscientes, essenciais a qualquer situação subjetiva: “A simbolização do real tende a ser equivalente ao universo, e os sujeitos nela não passam de retrotransmissores, de suportes (...) nós não o inventamos (o universo simbólico), ele vem de longe.” (Lacan, 1978/1987). Neste caso, qualquer posicionamento identitário funcionaria como uma possibilidade dentre todas as (infinitas) hipóteses de significação possíveis. Possibilidades que permanecem em latência, mas nem por isso menos atuantes, realizando-se nas manifestações do inconsciente e, neste caso, apresentando-se com uma força de determinação que se impõe “como uma obrigação a que o sujeito deve acatar” (Quinet, 2012, p. 22).

Segundo Authier-Revuz, à radicalidade presente nas formas da heterogeneidade constitutiva deve-se a sua força de desagregação, de ruptura das bordas que marcavam as formas da identidade. E que surgem no lapso, na emergência “bruta” das “formas desviantes do dito” (Authier-Revuz, 1990, p. 34), que culminam no apagamento do enunciador, atravessado pelas formas não marcadas do “emaranhado da heterogeneidade constitutiva” (Authier-Revuz, 1990, p. 34). Brecha no domínio do discurso mostrado, que demonstra não ser ele o “engodo perfeito produzido por um determinismo sem falhas”. (Authier-Revuz, 1990, p. 36); que retira o conhecimento de sua intencionalidade soberana (Authier-Revuz, 2011, p. 8).

4 Considerações Finais

Esse trabalho quis pensar as possibilidades de constituição de espaços onde uma determinada forma de psicologia social, identificada a matrizes epistemológicas críticas, e os estudos da linguagem pudessem dialogar. Procurava definir neste lugar uma abertura para possibilidades de significação que se realizassem dialogicamente, que fossem produzidas, como analisa Mario Henrique da Mata Martins, nos “interstícios entre o eu e o outro” (2011, p. 4). Nas palavras de Solange Jobim e Souza e Elaine Albuquerque (2012), em uma implicação que oferecesse possibilidades teóricas e metodológicas de construção de um conhecimento não monológico; polifônico (Martins, 2011).

Partia do princípio de que nesta constituição há a presença localizável de um interdiscurso, que se define a partir de questões comuns e que predispõem uma diferença não apenas metodológica, mas também teórica e política. Engrenagens que possibilitam o encontro, constituindo e movimentando o diálogo social; como presença localizável de um discurso no fio de outro, em um interdiscurso que se constitui fazendo frente a uma interpretação totalizante, naturalizante, universal e a-histórica.

Para discutir essa interdiscursividade, a presença da alteridade do outro na construção do um, foi trazido o conceito de “Heterogeneidade Enunciativa”, proposto por Jacqueline Authier-Revuz, que propõe dois lugares para esta implicação. No primeiro, uma alteridade reconhecível, mostrada, que deixa explícita sua presença no interior do discurso. Segundo Authier-Revuz (1990), um fragmento de estatuto estranho à linearidade da cadeia discursiva, que remete a uma exterioridade, a uma alteridade “inscrita no comparável, no comensurável, na pluralidade” (pp. 31-32).

Este espaço dialógico entre os Estudos do Discurso e a Psicologia Social traz para o primeiro plano a pressuposição de um lugar social para as enunciações e a necessidade de compreender as especificidades históricas que fazem emergir as produções simbólicas; bem como de compreender a organização das práticas e dos sentidos cotidianos pelas instituições; ou ainda pensar os gêneros discursivos que sustentam os rituais, os contratos e as organizações. Espaço de reversibilidade entre a instituição de fala, de discurso e as estruturas que são sua condição e seu produto (Maingueneau, 2005/2012).

O segundo lugar proposto por Authier-Revuz trata de uma alteridade que não se esgota nas significações possíveis oferecidas pela dialogicidade, mas que diz respeito a outro estatuto da exterioridade: aquele “onde o sistema da linguagem fala através do sujeito” (1990, p. 28). Campo de operação onde a linguagem se desdobra e reordena a palavra, seus sentidos e possíveis contornos. Nele, as palavras ocupam um exterior constitutivo, que articula a trama do discurso e faz com que o sentido parta inevitavelmente de um “já dito”, de uma condição interdiscursiva.

Neste desdobramento uma relação com a alteridade e a exterioridade que, paradoxalmente, acaba por apagar estas primeiras definições de “dentro” e “fora”, já que é a partir desse “exterior”, que serão questionadas, julgadas, ordenadas e reordenadas as tramas internas do discurso. Nas palavras de Maingueneau (2005/2012, p. 61): “dispositivos de comunicação sócio-historicamente definidos, sem os quais a comunicação discursiva seria impossível”. Relação de interioridade/exterioridade que é marcada, de um lado, por um diálogo visível, uma presença interiorizada assumida e desejável, que instaura campo de análise, teorias e métodos. Por outro lado também, marcada por um diálogo que questiona ininterruptamente o próprio campo que instaurou.

No retorno da linguagem sobre si mesma, o elemento fundamental que não permite a estratificação de campos de sentido e um descentramento enunciativo que, como já foi dito, desfaz constante e ininterruptamente as marcações e as proteções identitárias que foram utilizadas para que o discurso pudesse ser mantido. Questionamento de padrões de identidade que expõem o discurso ao jogo incerto das formas não explícitas presentes em sua própria enunciação: “repetição de um enunciado que se situa numa rede repleta de outros enunciados (por filiação ou rejeição) e se abre à possibilidade de uma reatualização”. (Maingueneau, 2005/2012, p. 63) Fazendo com que a inscrição discursiva, a alteridade constituinte, persiga o “rastro de um Outro invisível, que enuncia os enunciadores-modelo de seu próprio posicionamento” (Maingueneau, 2005/2012, p. 63).

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