A construção do problema social da violência no futebol brasileiro: dominação e resistência

The construction of the social problem of violence in brazilian football: domination and resistance

  • Felipe Tavares Paes Lopes
Neste trabalho, busquei responder a seguinte questão: como os claims-makers do problema social da violência no futebol brasileiro constroem simbolicamente as condições desse problema, os atores nele envolvidos e suas soluções e como essas construções simbólicas reforçam ou, pelo contrário, minam relações de dominação? Para tanto, apoiei-me em resultados de pesquisas que tenho desenvolvido desde 2008 e nas minhas vivências ao longo da minha participação no debate público sobre o problema. Entre outras coisas, conclui que algumas dessas construções simbólicas têm mantido os torcedores organizados, em particular, e os pobres, em geral, sob uma situação de dominação. Ao mesmo tempo, indiquei que elas têm ensejado práticas de resistência, como a criação de entidades representativas de torcidas organizadas.
    Palavras chave:
  • Violência
  • Futebol
  • Problemas sociais
  • Dominação
In this paper, I aimed to answer the following question: how the claims-makers of the social problem of violence in Brazilian football symbolically construct the conditions of this problem, the actors involved in it and their solutions and how these symbolic constructions reinforce or, on the contrary, undermine relations of domination? Therefore, I referred to research findings that I have been developing since 2008. Besides, I considered my experiences during my participation in the public debate about violence in Brazilian football. Among other things, I concluded that some of these symbolic constructions have kept the organized group of supporters and the poor supporters under a condition of domination. At the same time, I indicated that they have motivated practices of resistance, such as the creation of representative associations of organized group of supporters.
    Keywords:
  • Violence
  • Soccer
  • Social problems
  • Domination

1 Introdução

Nas últimas décadas, a violência no futebol brasileiro tem recibo amplo destaque nos meios de comunicação, suscitando a indignação da opinião pública e a busca de soluções (nem sempre eficazes) entre as autoridades públicas e os(as)1 dirigentes esportivos. Apesar de frequentemente a imprensa adotar uma narrativa saudosista, que clama pela volta dos “tempos de paz”, quando as relações no universo do futebol teriam sido harmônicas e amistosas, estudos em perspectiva histórica indicam que os conflitos violentos relacionados a esse universo existem desde os primórdios do futebol brasileiro. Mauricio Murad (2007), por exemplo, mostra que o começo do século XX registrou diversos casos de violência – física e simbólica – contra torcedores e jogadores negros, mulatos e brancos pobres. Por sua vez, Bernardo Buarque de Hollanda (2008, p. 380) destaca que, no mesmo período, os torcedores dos times da zona sul carioca já causavam transtornos quando se deslocavam para assistir a partidas nos subúrbios da cidade. Nas suas palavras: havia “inúmeras brigas e apedrejamentos, em uma recepção pouco amistosa por parte dos moradores da localidade”.

Embora sem a mesma frequência de hoje, essas brigas e tumultos já recebiam a atenção da imprensa. Nos anos 1940, por exemplo, o Jornal dos Sports fez uma série de matérias criticando a infraestrutura dos estádios brasileiros, além de ter veiculado uma ampla campanha pela “moralização” do nosso futebol, avaliando que as soluções para a violência no esporte passariam pelo fim da impunidade e pelo estabelecimento de punições exemplares (Hollanda, 2008). Ao longo das décadas, os conflitos no futebol brasileiro foram se transformando. Nos anos setenta – quando o Campeonato Brasileiro começava a ser disputado, tornando os deslocamentos coletivos de torcedores para outras cidades e estados mais frequentes, e quando o Brasil enfrentava a brutal repressão da ditadura civil-militar – esses conflitos tornaram-se menos localizados e ganharam uma dimensão mais militarizada (Murad, 2007). Assim, se, num primeiro momento, a maior parte deles tendia a ser mais “espontânea”; num segundo momento, muitos deles passaram a ser previa e coletivamente planejados e a assumir um caráter competitivo – por exemplo, fazer o grupo de torcedores rivais sair em retirada é considerado uma vitória entre os chamados “pistas” (categoria nativa utilizada para se referir aos torcedores que se engajam em ações violentas).

No final da década de 1980, a violência no futebol brasileiro passou a, de fato, se notabilizar como conteúdo noticioso e, com isso, a mobilizar mais fortemente a opinião pública. Inicialmente, no começo da década, era a violência em âmbito internacional – principalmente aquela praticada pelos hooligans ingleses – que recebia maior atenção da imprensa nacional (Hollanda, 2008). Entretanto, em meados da década, esta se voltou para a violência praticada no Brasil, passando a associá-la a um grupo específico de torcedores: os integrantes de torcidas organizadas. Isto se deu sobretudo a

partir de 1988, quando um dos dirigentes e fundadores da torcida organizada Mancha Verde (extinta e reinaugurada com o nome Mancha Alviverde), do Palmeiras, foi brutalmente assassinado (Toledo, 1996).

Em meados da década de 1990, a violência no futebol brasileiro ganhou uma visibilidade pública ainda maior, entrando para a pauta das decisões políticas. Um episódio em especial parece ter chamado a atenção da imprensa e das autoridades públicas: a chamada “batalha campal do Pacaembu”, quando torcedores do Palmeiras e do São Paulo invadiram o gramado e se enfrentaram com paus, pedras e outros artefatos, resultando na morte de um torcedor e numa centena de feridos (Lopes, 2013). Nos anos seguintes, devido à forte repressão das forças de segurança dentro dos estádios e nos seus arredores, a maior parte dos confrontos entre torcedores passou a ser realizada em áreas distantes dos estádios (e, até mesmo, em dias em que não havia jogos). Em 2012, por exemplo, centenas de torcedores do Palmeiras e do Corinthians se enfrentaram numa avenida na zona norte de São Paulo, horas antes da partida entre os dois clubes, deixando dois baleados que vieram a falecer. No entanto, no ano seguinte, novamente um confronto nas arquibancadas – desta vez entre torcedores do Atlético-PR e do Vasco da Gama – teve enorme repercussão midiática, suscitando o debate público em torno da violência no futebol.

Este debate, todavia, tem, com muita frequência, ocorrido somente após acontecerem graves incidentes de violência, o que é indicativo de que a cobertura jornalística sobre o tema é reativa: espera a violência eclodir para ocorrer. Contudo, tão ou mais grave quanto isto é o fato de, em geral, o referido debate não garantir a pluralidade dos pontos de vista, passando por cima das controvérsias estabelecidas sobre o problema em questão (Lopes, 2013). Diante disto, considero fundamental o desenvolvimento de pesquisas que tomem esse problema como objeto de estudo. Desde os anos 1990, o campo científico tem se debruçado sobre ele, mas a maior parte dos estudos, ainda hoje, busca compreender as suas causas “objetivas” e as melhores formas de solucioná-lo, deixando de lado a análise de quando, como e por que ele passou a ser incorporado como um tema de relevo pela nossa sociedade.

Sendo assim, neste artigo, optei por descrever e analisar o processo de construção do problema social da violência no futebol brasileiro, focalizando as reivindicações e alegações feitas por seus claims-makers, ou seja, por aqueles que buscam persuadir os outros a considerar a referida violência seriamente e a responder a ela como um problema social (Best & Loseke, 2003). Mais exatamente, busquei responder a seguinte questão: como esses claims-makers constroem simbolicamente as condições desse problema, os atores nele envolvidos e suas soluções e como essas construções simbólicas reforçam ou, pelo contrário, minam relações de dominação? Para responder a essa questão, assumi o conceito de dominação de John B. Thompson (1995/2000, p. 80), que entende que uma situação pode ser descrita como de dominação quando relações de poder são sistematicamente assimétricas, ou seja,

Quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessível a outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a qual tal exclusão é levada a efeito (1995/2000, p. 80).

Ao tomar as reivindicações e alegações dos claims-makers do problema social em questão como meu objeto de estudo, não tenho nenhuma pretensão de comparar essas reivindicações e alegações com a “verdade” a seu respeito, uma vez que parto do pressuposto de que não existe uma verdade em si, independente dos enunciados que a linguagem nos permite construir para representar o mundo (Ibañez, 2004/2005). Trata-se, na verdade, de uma opção política, já que, ao fazer isto, concebo que suas ideias e opiniões não devem ser entendidas como verdades inquestionáveis, mas como algo que deve ser desconstruído e problematizado. Com isto, busco colocar em xeque a hierarquia de credibilidade do universo do futebol, em particular, e da sociedade, em geral, questionando o monopólio da verdade dos grupos dominantes. Afinal, adotar uma postura crítica diante dos rótulos empregados e definições adotadas pelos referidos claims-makes significa apresentar uma nova interpretação às suas interpretações, não oferecendo “uma isenção convencional de nossas indagações profissionais a ninguém, por mais respeitáveis ou altamente situáveis que sejam” (Becker, 1963/2008, p. 206).

2 Método

Antes de começar a análise das reivindicações e alegações supracitadas, cabe destacar que, para alcançar o objetivo proposto, apoie-me em resultados de pesquisas que tenho desenvolvido desde 2008. Entre outras coisas, nestas pesquisas, analisei livros, artigos, teses e dissertações sobre torcidas organizadas e/ou violência no futebol; colunas e textos opinativos veiculados pela Folha de S. Paulo e pelo diário esportivo Lance! em 2009 e 2010; entrevistas realizadas com torcedores organizados, jornalistas, dirigentes esportivos e acadêmicos; o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei no 10.671) e o relatório da Comissão Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos (CONSEGUE), dos ministérios do Esporte e da Justiça.

A opção por analisar esse relatório deveu-se ao fato da CONSEGUE ter como finalidade apoiar e acompanhar a implementação da Política Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos. Já a opção por analisar o Estatuto de Defesa do Torcedor deveu-se ao fato de ele ser o principal instrumento legal brasileiro de proteção e defesa do torcedor. Por sua vez, a opção por analisar colunas e textos opinativos veiculados em jornais de grande circulação deveu-se ao fato de a chamada “grande imprensa” constituir um lócus privilegiado para o debate em torno de problemas sociais. Afinal, conforme observam Joel Best e Donileen Loseke (2003, p. 41, tradução minha), a maioria das pessoas “obtém a maior parte das informações sobre o mundo assistindo à televisão, surfando na Web, lendo revistas e assim por diante”.

Finalmente, a opção por analisar a produção científica sobre torcidas organizadas e/ou violência no futebol me facultou não apenas me aprofundar nessas duas temáticas, mas, também, saber como o próprio campo científico constrói o problema social em questão. Campo que costuma ocupar o topo da hierarquia de credibilidade na construção de qualquer problema social, já que o conhecimento científico é habitualmente visto como algo objetivo e desinteressado, imune aos valores e ambições políticas e pessoais dos cientistas, ainda que saibamos, há tempos, que esse ideal de ciência é insustentável (Loseke, 2003/2008).

Além de me amparar nas análises supracitadas, apoiei-me nos resultados parciais da minha pesquisa de campo que vem sendo realizada desde 2015 em protestos de torcedores dentro e fora dos estádios. Também me baseei nas observações feitas ao longo da minha participação nos últimos anos no debate público acerca da violência no futebol brasileiro. Entre outros eventos dos quais participei, destaco uma reunião da Comissão Especial de Regulamentação do Estatuto do Torcedor, outra da CPI das Torcidas da Câmara Municipal de São Paulo, uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e os diversos seminários, regionais e nacionais, promovidos, em 2013 e 2014, pelo Ministério do Esporte sobre torcidas organizadas e violência no futebol. Nestes eventos, tive a oportunidade de debater essa violência com operadores do direito, autoridades policiais, lideranças de torcidas organizadas, acadêmicos, dirigentes de federações e representantes do Governo Federal e, com isto, conhecer melhor suas opiniões sobre o tema e como esse debate está socialmente estruturado.

3 A construção de problemas sociais

Para analisar o problema social da violência no futebol brasileiro, assumi a perspectiva construcionista, que está preocupada em entender o processo que leva, em certos momentos, determinadas condições a serem considerados problemas sociais (Spector & Kitsue, 1987). Poderíamos argumentar, ingenuamente, que a entrada de uma questão na agenda pública e na pauta das ações políticas é o resultado direto de sua extensão e gravidade. No entanto, existe uma infinidade de fenômenos com efeitos devastadores para uma parte expressiva da população que não entra na agenda das políticas sociais (Rosemberg & Andrade, 2007). Podemos questionar, por exemplo, por que a questão do trânsito nas grandes cidades tem recebido muito mais atenção dos meios de comunicação e do poder público do que a da inserção das pessoas com deficiência mental no mercado de trabalho. Além do mais, as próprias noções de extensão e gravidade são problemáticas, já que, diferentemente do que se poderia crer num primeiro momento, não constituem indicadores objetivos. Afinal, o que é grave e extenso para uns pode, simplesmente, não ser para outros.

Isto não significa, no entanto, assumir que os problemas sociais sejam necessariamente imaginários, mas enfocar o processo social pelo qual as pessoas delineiam e aplicam categorias para dar sentido a eles. Assim, do ponto de vista construcionista, ao invés de nos perguntarmos sobre o que causa problemas sociais ou sobre o que deveria ser feito para eliminar suas condições, nos perguntamos por que nos preocupamos com certas condições e não com outras e como que a forma como essas condições são simbolicamente construídas podem modelar elas próprias (Best & Loseke, 2003). Diante disto, ao assumir o referido ponto de vista, voltei minha atenção para como a violência no futebol brasileiro tem sido publicamente definida e demarcada como um problema social e com quais efeitos.

Essa mudança de enfoque é significativa, pois a questão é redirecionada do torcedor rotulado de violento para aqueles que debatem e formulam as pautas sobre segurança nos eventos de futebol. Debate que ocorre num universo socialmente estruturado, ou seja, marcado por assimetrias, divisões e diferenças coletivas relativamente estáveis (Thompson, 1995/2000). A distribuição e o acesso às oportunidades e possibilidades de ter voz não são, de modo algum, iguais para os diferentes grupos sociais que participam dele. Por exemplo, os torcedores organizados não são utilizados como fontes jornalísticas, mas sim as autoridades públicas e policiais, que não apenas fornecem informações detalhadas sobre essa violência, mas também emitem opiniões e explicações sobre o assunto (Toro, 2004). Prova disto é que, entre 2009 e 2010, encontrei 62 artigos opinativos sobre o assunto na Folha de S. Paulo e no Lance!, mas nenhum assinado por torcedores organizados. Esta exclusão desses torcedores dos meios de comunicação constitui uma espécie de censura, ao mesmo tempo, invisível e brutal – que, em última instância, acaba silenciando as controvérsias e diferenças sobre o tema, conforme veremos adiante.

Os torcedores organizados também estão sub-representados no processo de elaboração de leis e documentos para a prevenção da violência no futebol. Na reunião da qual participei da Comissão Especial de Regulamentação do Estatuto do Torcedor, por exemplo, não havia nenhum representante de torcida. Não à toa, temas caros às torcidas organizadas, como a reformulação do item VII do Art. 13-A do referido estatuto (Lei n ͦ 10.671), que proíbe a entrada de fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos no estádio, sequer foram debatidos, exceto quando pedi a palavra e defendi que deveriam ser liberados aqueles artefatos que não oferecessem risco, o que foi sumariamente rechaçado pelos outros integrantes da comissão. Na verdade, o debate acabou se centrando em questões caras a outros atores, como clubes e federações, que contavam com representantes na comissão.

No entanto, conforme ficou definido em reunião da qual participei com duas colegas pesquisadoras, lideranças de torcidas organizadas e representantes do Ministério do Esporte, no III Seminário Nacional de Torcidas Organizadas, realizado em Belo Horizonte (MG), essa realidade pode começar a mudar. Afinal, há uma proposta de criação de uma câmara temática de organização e associação de torcedores na CONSEGUE, que contaria com a participação de lideranças de torcidas organizadas. Essa medida serviria para fortalecer essas torcidas na referida comissão, que, a partir de 2012, passaram a contar com uma representante: a advogada (e também integrante) da torcida Mancha Alviverde. Fortalecimento que é fundamental para atingir seus interesses. Afinal, ao serem incluídos nos espaços de enunciação legítima do discurso, como em comissões oficiais, esses torcedores têm mais chances de serem escutados e, portanto, de intervir no curso do debate sobre violência no futebol e em suas consequências.

Outro ponto a se destacar em relação à construção de problemas sociais é que eles não entram necessariamente ao mesmo tempo nas agendas dos diferentes campos sociais. No caso do problema da violência no futebol brasileiro, foi na segunda metade da década de 1990 que o campo científico começou a enfocar esse problema. Esta defasagem temporal em relação à sua veiculação na mídia – que se intensificou no final da década de 1980 – nos sugere que, no momento de constituição da agenda do problema em questão, ou não houve participação de pesquisadores ou, no caso de ter ocorrida essa participação, foi sem sustentação em pesquisas. Também nos sugere certa morosidade do campo científico brasileiro em antecipar sua atenção a temas de mobilização social. É possível, inclusive, que a atenção dada por ele ao problema em questão tenha, em certa medida, sido uma resposta a uma demanda imposta pelo campo jornalístico, o que nos apontaria para certa influência da produção midiática sobre a produção acadêmica.

4 A construção das condições

Conforme acabei de sugerir, há uma espécie de mercado de problemas sociais, que competem entre si para chamar a atenção de suas audiências. Mas, além dessa competição entre problemas sociais, há uma segunda competição: uma competição interna dentro de um mesmo problema social. Uma competição entre seus claims-makers para fazer valer suas reivindicações e alegações como as mais legítimas, ou seja, como as mais justas e dignas de apoio (Loseke, 2003/2008). Uma competição que é realizada num espaço assimétrico de posições, onde, no caso específico da realizada em torno do problema da violência no futebol, as torcidas organizadas possuem menos chances de intervir no curso dos acontecimentos do que outros claims-makers. O resultado dessa assimetria é que o diagnóstico feito por eles do futebol brasileiro raramente é levado em consideração. Para eles, a violência não é apenas física, mas, também, estrutural, presente, por exemplo, na injustiça social (Galtung, 2003). Prova disto é que, em diversas ocasiões, já exibiram faixas com dizeres como: “ingresso caro também é uma violência”.

As torcidas organizadas também costumam opor-se às inúmeras proibições vigentes hoje em dia no futebol brasileiro – como a de utilizar elementos pirotécnicos ou, no caso específico de São Paulo, a de entrar nos estádios com bandeiras com mastros. Fundamentalmente, seu diagnóstico é muito similar a de outros grupos organizados de torcidas ao redor do mundo – como os grupos ultras da Europa –, que defendem que o principal problema do futebol atual é o processo de mercantilização agressiva pelo qual ele atravessa. Processo rotulado por essas torcidas de “futebol moderno”. Todavia, questões como a importância da manutenção de uma cultura torcedora vibrante raramente são colocadas em pauta pelos meios de comunicação.

Da mesma forma, a questão do preço (abusivo) dos ingressos raramente recebe atenção. E, quando recebe, é habitualmente apresentada a partir de números e estatísticas, que dificilmente conseguem despertar reações emocionais mais intensas. Assim, estratégias habitualmente utilizadas para chamar a atenção para um problema social são deixadas de lado, tais como o uso de histórias de vida. Histórias que poderiam mostrar em detalhes como a elitização do futebol afeta individualmente o torcedor pobre. Inclusive, algumas matérias jornalísticas chegam a ser favoráveis ao alto valor cobrado, pois eles seriam uma fonte de renda para os clubes. Essa percepção de que o preço (abusivo) dos ingressos não é um problema social reflete-se, inclusive, nas políticas públicas. Por exemplo, o relatório da CONSEGUE limita-se a chamar essa questão de “simplória”, legitimando a manutenção de uma das principais barreiras de acesso à cultura e ao lazer para milhões de brasileiros.

Mas se a violência estrutural raramente é tida como um problema social, os embates corporais e armados entre torcedores costumam mobilizar a atenção pública. A estratégia mais recorrente utilizada pelos claims-makers para persuadir outros atores a definir esses embates como um problema social, que precisaria urgentemente ser solucionado, é a dramatização do fenômeno. Nas palavras de Stephen Hilgartner e Charles Bosk (citado por Rosemberg & Andrade, 2007, p. 261), “o drama é a fonte de energia que dá vida ao problema social e sustenta o seu desenvolvimento”. É ele que cria uma “auréola de dignidade e moralidade” em torno das pessoas prejudicadas e caracteriza os responsáveis por tal prejuízo como personagens detestáveis (Losecke, 2003/2008). É ele que faz, portanto, com que as pessoas avaliem um problema social como algo errado, inaceitável e moralmente intolerável. Dramatizar um problema serve, assim, para revesti-lo da urgência da mobilização e indignação social na competição com outros problemas (Rosemberg & Andrade, 2007), estimulando as audiências a sentirem a sua gravidade e inaceitabilidade.

No entanto, a dramatização também pode servir a outros propósitos. Pode, por exemplo, ajudar a aumentar a audiência jornalística. Não à toa, a televisão costuma exibir em detalhes as brigas nas arquibancadas. Imagens como a de torcedores sendo pisoteados (inclusive na cabeça) por vários outros – como ocorreu na briga supracitada entre torcedores do Vasco da Gama e do Atlético-PR – foram exibidas inúmeras vezes pelos telejornais e programas esportivos. Essas imagens contribuem para evidenciar o sofrimento humano provocado por tais brigas, ao mesmo tempo em que ajudam a vilanizar seus protagonistas. Os jornais impressos também costumam publicar fotos com cenas de violência explícita. Conforme destaca Donileen Loseke (2003/2008), o uso de imagens visuais é um instrumento poderoso na construção de problemas sociais, pois elas “imprimem” esses problemas diretamente na cabeça das pessoas.

Mas não são apenas por meio de imagens que a violência no futebol é dramatizada. Eis algumas manchetes que Carlos Alberto Pimenta (1997) selecionou em um dos primeiros estudos sobre o tema: “Ações adversárias ameaçam e seqüestram seus inimigos”, “Até papa ameaçado pela torcida”, “A torcida inspirada no crime”, “Terror uniformizado ameaça encanto do futebol”, “Massacre no Pacaembu! Corpos destroçados no gramado”, “Vitória dos marginais”, “Pacaembu vira uma Bósnia”, “PM nunca viu tanta violência”, “Futebol paulista é refém do vandalismo”.

O “drama” da violência no futebol é construído na imprensa escrita através de uma série recursos linguísticos. Por exemplo, nos textos opinativos publicados na Folha de S. Paulo e no Lance!, pude notar o uso recorrente de adjetivos e advérbios – tais como, “covardemente”, “deprimente, “chocante”, “preocupante” e “degradante” – que operam como avaliadores, com conotação negativa latente. Também notei o uso de hipérboles, que apresentam os estádios de futebol e seus arredores como sendo “faixas de ódio”, de “covardia coletiva”, do que de “mais sombrio pulsa na alma humana”. Outra estratégia notada foi a do deslocamento, que transfere a conotação negativa de outros conflitos – como os ocorridos na Faixa de Gaza – para os estádios de futebol, como se tratasse de uma mesma coisa. Além disso, termos como “selvageria”, que sugerem “irracionalidade”, como se a violência no futebol fosse sem propósito, foram amplamente empregados (Lopes, 2013).

No entanto, talvez, a principal estratégia utilizada para construir o “drama” da violência no futebol seja a metáfora, que implica a aplicação de um termo ou frase a um objeto ou ação à qual ele literalmente não pode ser aplicado (Thompson, 1995/2000). Entre os diversos tipos de metáforas observadas, tanto nos textos opinativos analisados quanto no relatório da CONSEGUE, destaco a da “guerra”. Esta reveste os eventos de futebol com a imagem da hostilidade e do perigo, ao mesmo tempo em que oculta outras características tradicionalmente imputadas a eles: como a festa, a alegria e a celebração (Lopes, 2013). Tal metáfora é explicitamente evocada por meio de expressões como “guerra entre torcedores”, “aparato de guerra montado pela polícia”, “cenário de guerra”, “praça de guerra” e “campo de batalha” ou, menos diretamente, através de vocábulos usualmente utilizados para descrever ou evocar esse tipo de situação, tais como: “mortes”, “agressão”, “emboscada”, “grupos armados”, “invasão”, “cânticos guerreiro”, “batalhas”, “comportamento belicoso”, “ataques”, “tiros”, “bombas”, “feridos”, “vandalismo”, “terror”, “depredação”, “vítimas”, “violência”, “confrontos” etc.

Além de dramatizar a violência no futebol, esse tratamento dado ao tema o simplifica demasiadamente. A violência no futebol é um fenômeno complexo, multidimensional e que suscita diversas controvérsias – como as presentes nas discussões entre Richard Giulianotti (2002) e Eric Dunning (1994/2006) sobre as causas do hooliganismo. Todavia, os meios de comunicação habitualmente simplificam o problema, apontando explicações muito limitadas. Entre elas, a “falta de interesse das autoridades em resolvê-la”, o “comportamento de massa”, que seria intrinsecamente irracional e potencialmente violento, e principalmente a impunidade. Esta explicação aparece na boca dos mais diversos claims-makers, como jornalistas, autoridades públicas, acadêmicos e até mesmo de algumas lideranças de torcidas organizadas.

Evidentemente, não se trata aqui de negar que a impunidade exista e de que ela possa de fato alimentar a violência. Mas de destacar, em primeiro lugar, que ela é supervalorizada como elemento explicativo, o que leva à defesa do endurecimento penal – seja através do enrijecimento da lei, seja através de sua aplicação mais rigorosa. Defesa que, por sua vez, indica uma sobrecarga de expectativas dos claims-makers em relação à força da lei e coloca, de certa forma, a solução da violência no futebol nas mãos dos legisladores e daqueles que devem aplicar as leis (Becker, 1963/2008). Diante disto, a solução passaria necessariamente por esses agentes, pela burocracia especializada dirigida pelo Estado. Nesse sentido, a referida solução viria “de cima para baixo”. Perspectiva que parece coincidir, em larga medida, com a ideia moderna de que o combate ao crime deve ser levado a cabo por “especialistas”, isto é, de que tudo o que se necessita é um marco legal abstrata e logicamente erigido e uma resposta reativa ao delito (Garland, 1955/2008).

Em segundo lugar, que a impunidade frequentemente aparece como um fenômeno permanente e recorrente no Brasil, como pura repetição e não como um devir, o que reafirma a imutabilidade da situação. Alguns trechos dos textos analisados são emblemáticos: “Mas não pensem que algo mudará depois desses episódios. O rapaz assassinado será mais um na estatística e o assunto estará em pauta por semana [sic.] e depois cairá no esquecimento, como de praxe.” (Back, 2010, p. 27). “Torcedores de todas as equipes já mataram e morreram em todos os grandes centros do futebol brasileiro. E tudo continua do mesmo jeito que está!” (Benato, 2009, p. 2). “A morte do torcedor do Atlético-MG quando se dirigia ao Mineirão é mais uma que vai se somar a tantas outras já ocorridas. Lamentavelmente, não vejo luz no fim do túnel em se tratando de covardias e violência” (Wright, 2009, p. 28). Ao reafirmar a imutabilidade da situação, esses discursos podem provocar certa resignação, o que, por sua vez, contribui para manter tudo do jeito que está.

Também cabe destacar que tanto os meios de comunicação quanto o relatório da CONSEGUE constroem o passado do futebol brasileiro como um período de paz, como uma espécie de paraíso perdido, diagnosticando a violência como um fenômeno recente. O trecho abaixo, retirado do referido relatório, é ilustrativo:

Brigas entre torcedores ou torcidas nos termos que as entendemos nos dias de hoje – simplesmente não aconteciam. Vandalismo? Impensável. Agressões e depredações pelo caminho ou nas vizinhanças? Qual nada. Mortes? Jamais. Palavrões? Sim, mas, raros em relação aos costumes atuais e especialmente dedicados, desde sempre, ao árbitro (Klein, 2005/2006, p. 19).

Ao mesmo tempo em que apaga os vestígios de atos de vandalismo e violência que ocorreram em outras épocas, essa (re)construção do passado indica-nos que tanto os meios de comunicação quanto as políticas públicas para eventos de futebol não têm incorporado a produção científica brasileira sobre as origens da violência no futebol, já que esta aponta para esses vestígios. Não à toa, tal produção praticamente não aparece nas referências bibliográficas do relatório da CONSEGUE.

Ainda que não exista um consenso dos estudiosos em torno das razões para o engajamento de torcedores em ações violentas, argumenta-se com frequência que esse engajamento, além de ser prazeroso, estaria relacionado a um ideal de “masculinidade agressiva”, que diz que, para ser “homem de verdade”, é preciso demonstrar resistência à dor. Esse “ideal de macho” seria observado também em outros segmentos da sociedade brasileira, como em certos grupos de praticantes de jiu-jítsu (Monteiro, 2003). Ao analisar o contexto argentino, José Garriga Zucal (2010) observa, assim, que a violência no futebol faculta a participação numa comunidade moral, que teria nesse ideal seu principal valor e princípio orientador. Ao fazer isto, ela seria uma importante fonte de posicionamento identitário, e não apenas uma forma de inserir pessoas em uma rede de favores e de conseguir dinheiro, conforme alegam alguns jornalistas e autoridades públicas, devido às relações obscuras entre algumas lideranças de torcidas com os dirigentes de seus clubes.

5 A construção dos envolvidos

Conforme vimos no tópico anterior, uma das principais estratégias utilizadas pelos claims-makers para fazer com que a violência no futebol seja avaliada como um problema social é a sua dramatização. Essa dramatização opera frequentemente criando uma polarização simbólica, nitidamente maniqueísta, que desperta a compaixão por aqueles que são considerados as vítimas do problema e o sentimento de reprovação em relação àqueles que são apontados como sendo seus culpados. As principais vítimas, conforme pude notar nos textos analisados, seriam o “torcedor comum” (não pertencente à torcida organizada), a “família”, o “consumidor” e a “sociedade”. Enfim, qualquer um de “nós”. Esta generalização possui um efeito retórico notável. Afinal, ela encoraja os atores que compõem a audiência do problema em questão a sentir medo (dado que eles e as pessoas que amam podem ser vítimas dessa violência a qualquer momento), e o medo é uma motivação poderosa para levar realmente a sério um problema social (Loseke, 2003/2008).

Além de fazer crer que qualquer um de nós pode ser uma vítima potencial, outra estratégia empregada para provocar o sentimento de empatia e simpatia com as (supostas) vítimas do problema da violência no futebol é construí-las como sendo puras e moralmente virtuosas, ou seja, como não sendo responsáveis pelo sofrimento que (supostamente) lhes é infligido (Loseke, 2003/2008). Tanto é que a “família” – que é habitualmente representada através de figuras que inspiram fragilidade, como a das mulheres e crianças – é apontada como uma das principais vítimas desse problema. Apontamento que parece pressupor a crença de que “gente de família não pratica delito”. Crença que, por sua vez, prevê que o entorno afetivo familiar funciona como um mecanismo de controle, ou seja, que a família é o pilar fundamental da sociedade. Conforme observa Richard Giulianotti (2002), essa preocupação com a família também parece ir ao encontro das necessidades da indústria cultural, uma vez que a socialização das crianças em eventos esportivos é importante para o estabelecimento de um futuro mercado consumidor e reprodução do consumo esportivo.

Mas se, por um lado, as vítimas são habitualmente construídas como sendo puras e frágeis; por outro, aqueles que são apontados como os culpados pelo problema são retratados como a encarnação da maldade. Tratar-se-iam de indivíduos perigosos, ameaçadores e contra os quais somos convocados a enfrentá-los coletivamente ou a expurgá-los (Thompson, 1995/2000). Ainda que alguns claims-makers reconheçam que atores como a polícia, os dirigentes esportivos e até mesmo os jornalistas contribuam para a eclosão do problema, é praticamente unânime o discurso que afirma ser o torcedor organizado o principal “vilão” da violência. Discurso que parece influenciar fortemente a opinião pública. Não à toa, de acordo com pesquisa feita pelo Instituto Stochos Sports & Entertainment (citado por Gonçalves, 2015), 84,2% dos torcedores das cidades com clubes na primeira divisão do Campeonato Brasileiro apontam as torcidas organizadas como responsáveis pela violência no futebol.

Estas torcidas, todavia, nem sempre estiveram presentes nos estádios brasileiros. Elas surgiram num momento em que o futebol já era uma paixão nacional, massificada pelo rádio (Pimenta, 1997). Os primeiros agrupamentos organizados de torcedores surgiram nos anos 1940, como a Charanga do Flamengo e a Torcida Uniformizada do São Paulo, a TUSP. Estes agrupamentos, todavia, diferiam significativamente das torcidas organizadas atuais, já que eles não tinham uma estrutura burocrática, vinculando-se diretamente com o clube de futebol, e estavam muito associados aos seus “torcedores símbolos”. Eles também dispunham de prestígio junto à imprensa e raramente se envolviam em distúrbios e desordens. Além disso, a identificação de seus integrantes era apenas com o clube do coração e não com o próprio agrupamento, como ocorre hoje em dia (Pimenta, 1997; Teixeira, 2003).

As primeiras torcidas organizadas nos seus moldes atuais foram fundadas no fim dos anos sessenta – inclusive, algumas delas são dissidências dos agrupamentos anteriores. Assim, incorporando o estilo de comportamento rebelde da época, muitas passaram a se autodenominar “torcida jovem” e adotar um comportamento crítico em relação ao comportamento dos dirigentes esportivos (Teixeira, 2003). Nas palavras de Carlos Alberto Pimenta (1997), neste período,

As massas passam a ter um comportamento diferenciado nas arquibancadas dos estádios e começam a cobrar dos clubes, dos jogadores e dos dirigentes um melhor desempenho. A identificação desses grupos é percebida pela vestimenta, pela virilidade, pelos cânticos de guerra, pelas transgressões das regras legais, pelas coreografias, pelo sentimento de pertencimento ao grupo etc. As restrições sócio-econômicas às pessoas que desejam fazer parte parece que não existem, dependendo apenas de formalizar e contribuir mensalmente, como é ao se tornar sócio de um clube de lazer (p. 66).

Ao longo dos anos, as torcidas organizadas foram se tornando mais profissionais, burocráticas e empresariais (Teixeira, 2003). Prova disto é que muitas delas vendem material em suas lojas e/ou pela internet e formam entidades jurídicas – com estatuto, diretoria, conselho deliberativo e eleições periódicas para presidente (Toledo, 1996). Algumas delas também são escolas de samba. Por exemplo, as torcidas Gaviões da Fiel, do Corinthians, Mancha Alviverde, do Palmeiras, e Dragões da Real, do São Paulo, têm participado do Grupo Especial do desfile das escolas de samba de São Paulo. E, ainda que muitas vezes as torcidas organizadas façam protestos contra os diretores dos clubes, alega-se com frequência que algumas delas recebem ingressos gratuitos e auxilio financeiro. Esta seria inclusive uma das razões apontadas para as disputas internas.

Nos anos 1990, as torcidas organizadas cresceram significativamente e, hoje em dia, algumas chegam a ter dezenas de milhares de associados. Tais torcidas costumam acompanhar o clube onde quer que ele vá e planejar o espetáculo nas arquibancadas com antecedência. São elas – com seus instrumentos musicais, bandeiras, coreografias etc. – que transformam os eventos de futebol numa experiência estética altamente estimulante. Muitas delas também realizam ações sociais – como campanhas para doação de sangue e curso de inclusão digital. Ao mesmo tempo, são elas as acusadas de causarem desordens e tumultos dentro e fora dos estádios, provocando o temor dos demais torcedores. Sem negar a existência dessas desordens e tumultos, os estudos de Mauricio Murad (2007) sustentam, todavia, que apenas entre 5 a 7% desses torcedores engajam-se em ações violentas.

Ainda que o referido sociólogo seja uma figura presente nos meios de comunicação, é interessante observar que muito raramente esses meios enfatizam se tratar de uma minoria, indicando que eles (e outros claims-makers) fazem uma apropriação bastante seletiva da produção acadêmica. Conforme pude notar nos textos opinativos publicados na Folha de S. Paulo e no Lance!, as figuras do torcedor organizado e do torcedor violento são frequentemente fundidas. Fusão que, ao mesmo tempo em que coloca na penumbra o torcedor que se envolve em ações violentas e que não é filiado à torcida organizada, contagia a identidade de todos os torcedores organizados com a imagem da violência, apagando as diferenças que existem entre eles e exacerbando sua diferença em relação ao resto da sociedade. Entre outras formas, esta contaminação é realizada através do uso de uma série de categorias depreciativas, tais como: “turma barra-pesada”, “bandidos organizados”, “gangues” e “facções organizadas”.

Assim, os torcedores organizados são quase sempre construídos como vilões extremamente maldosos. Alguém menos humano do que os demais. A fim de desumanizá-los, os meios de comunicação destacam com frequência as (supostas) consequências terríveis de suas ações violentas, ao mesmo tempo em que os vinculam a apenas um de seus comportamentos: aquele que é visto como desviante. Por exemplo, as diversas ações sociais que desenvolvem junto à comunidade quase nunca têm espaço nos meios de comunicação. Tampouco as tentativas, promovidas por eles próprios, de redução de conflito. Já participei, por exemplo, de alguns eventos com esse objetivo e que praticamente não receberam a atenção da imprensa.

Além de dar um tratamento bastante seletivo, os meios de comunicação desumanizam os torcedores organizados identificando-os em termos de ações animalescas e/ou patológicas. Eles seriam a “doença” do futebol brasileiro, seu “lado podre”, uma “excrescência”. Enfim, eles seriam essencialmente ruins. A encarnação da própria violência. De acordo com Erving Goffman (1963/1988), o conceito de estigma designa justamente isto: a redução de uma pessoa ou grupo social a alguma “desvantagem” física, moral ou social que lhe é imputada.

Esse processo de estigmatização dos torcedores organizados contribui para reduzir ainda mais o seu direito à voz. Não é difícil inferir que o descrédito estabelecido em relação à sua imagem leve a um progressivo silenciamento. Vistos como uma fonte de informação e reflexão ilegítima, esses torcedores não são consultados pelos meios de comunicação ou pelo poder público. Ao não serem consultados, suas versões e opiniões acerca do problema da violência no futebol não são consideradas. Consequentemente, a sua imagem, que já era desfavorável, tende a se tornar ainda mais desfavorável, diminuindo ainda mais as chances de serem consultados. Mas, mesmo quando esse silenciamento progressivo parece ser quebrado, a palavra dos referidos torcedores perde em força simbólica, pois vem contagiada pelo descrédito anteriormente lançado sobre ela. Conforme observa Pierre Bourdieu (2003, p. 155), “o que fala nunca é a palavra, o discurso, mas toda a pessoa social”. Com isto, sua capacidade de mobilizar apoio político e de interferir nos processos decisórios acerca dos rumos do futebol brasileiro é significativamente reduzida. Ao fazer isto, esse processo de estigmatização ajuda a manter os torcedores organizados na condição de dominados (Lopes, 2013).

Mais ainda, reforça a própria dominação de classe no interior do universo do futebol. Afinal, as torcidas organizadas são instituições populares, amparadas num modo de vida “de periferia” (Toledo, 2012), que se apresentam como as protagonistas na defesa de uma cultura popular do torcer e da redução do valor dos ingressos. Assim, considerando que essas torcidas possuem demandas que são altamente contestatórias à elitização do futebol, somos levados a perceber que seu enfraquecimento político também fragiliza a luta por um futebol mais popular e democrático. Além do mais, as torcidas organizadas são muitas vezes o único espaço onde o jovem torcedor pobre pode, de fato, participar dos rumos do futebol profissional. Afinal, onde ele pode manifestar, de forma organizada e coletiva, suas insatisfações se não através dessas torcidas? Na verdade, o estigma lançado sobre o torcedor organizado parece contaminar e ser contaminado pelo estigma lançado sobre esse grupo social mais amplo: a juventude pobre. Estigmas que se reforçam mutuamente, gerando um cruel sistema de retroalimentação, que amplia a exclusão social dentro do universo do futebol. Exclusão que, conforme veremos a seguir, vai ao encontro dos interesses do futebol-negócio.

6 A construção das soluções

A disputa social em torno das soluções mais eficazes para um problema social está diretamente vinculada à disputa social em torno de seu diagnóstico legítimo. Assim, o modo como as condições e os envolvidos com um problema são simbolicamente definidos influenciam na configuração dessas soluções (Loseke, 2003/2008). Não à toa, ao mesmo tempo em que se aponta a impunidade como uma das principais razões para a violência no futebol brasileiro, segue-se apostando na repressão e no aumento dos dispositivos de vigilância. Nas últimas décadas, assistimos a uma crescente militarização dos eventos de futebol no Brasil, refletida na adoção de uma série de medidas de segurança, tais como: a segregação das torcidas adversárias através de barreiras físicas e de policiais, o fechamento territorial dos arredores dos estádios, a restrição da circulação de torcedores nas vias de acesso aos estádios e no transporte público, a revista policial no momento da entrada e também nos terminais de ônibus, estação de trens e metrô, a presença ostensiva da Policia Militar dentro e fora dos estádios e o monitoramente do público por imagem – previsto, inclusive, pelo Estatuto de Defesa Torcedor. Em outras palavras, os eventos de futebol operam, cada vez mais, como um panóptico, onde o torcedor é induzido a um estado consciente e permanente de visibilidade (Foucault, 1975/2013).

De acordo com Kimberly Schimmel (2013), essa tendência de militarização dos eventos esportivos segue uma tendência mais ampla de militarização dos espaços urbanos, que, de tão naturalizada, não é mais percebida como uma violência contra o cidadão, mas como parte natural da vida urbana contemporânea. Tal militarização é vista pelas autoridades públicas e do futebol como necessária para controlar o público e principalmente para proteger os interesses do capital. Afinal, os conflitos violentos afastam o público-consumidor dos estádios, trazendo prejuízo para os clubes, federações e patrocinadores. Por esta razão, de acordo com Flávio de Campos (2014), a segurança que se pronuncia é a segurança para o consumo. Tanto é que, em nome dela, tem-se realizado uma verdadeira higienização social do futebol brasileiro. Os lugares populares dos estádios têm sido progressivamente substituídos por setores exclusivos e, portanto, excludentes. Nas palavras do autor: trocaram-se “os pontos cegos dos estádios – aqueles lugares dos quais a visão de determinadas partes do campo é prejudicada ou impossibilitada – por pontos cegos sociais – segmentos da sociedade que não devem mais ser vistos entre os torcedores” (pp. 358-359).

Esse novo modelo de estádio – que agora recebe o nome de “arena” – segue a tendência inglesa de transformar os eventos de futebol num evento para se olhar, onde a liberação da emoção intensa deve ser rigidamente combatida (Giulianotti, 2002). Tal modelo tem exercido forte influência sobre a produção das leis e documentos brasileiros para a segurança nos eventos de futebol, que tem se apropriado dele de forma acrítica, passando por cima das críticas e controvérsias que ele suscita, conforme pude comprovar na análise feita do relatório da CONSEGUE. Hoje em dia, o futebol inglês é altamente pasteurizado e elitizado, além de adotar uma controversa política de gestão do risco, que descarta o princípio da presunção de inocência (Tsoukala. 2014). E, ainda que o fenômeno do hooliganismo tenha perdido força na Inglaterra a partir dos anos 1990, ele ainda existe – especialmente nos deslocamentos para o exterior, nos pubs e nas divisões de acesso (Trejo & Murzi, 2013). No entanto, esses problemas não aparecem no relatório supracitado, assim como o fato de existir outros modelos de prevenção da violência mais inclusivos e democráticos – como são os casos dos adotados na Colômbia, Bélgica e Alemanha.

Neste último país, por exemplo, investe-se, desde o início dos anos oitenta, nos chamados Fanprojekte, que apostam no diálogo e na educação. Tais projetos possuem sedes, que servem de ponto de encontro dos torcedores, e contam com assistentes sociais e educadores engajados com a cultura torcedora local. Estes acompanham os torcedores em todos os jogos (inclusive os fora de casa), fazendo o trabalho de mediação com a polícia, quando necessário. Assim tentam evitar que qualquer relação ambígua e problemática com ela se converta em desordem e detenção policial. Além disso, conversam com os torcedores no dia-a-dia, oferecendo apoio psicossocial, e desenvolvem uma série de atividades com eles – especialmente com os mais jovens. Entre elas, promovem campeonatos de futebol, acampamentos e oficinas de arte. Tais atividades buscam educá-los para lidar com questões como o racismo, a homofobia e o sexismo (Gilulianotti & Millward, 2013).

Cientes das possibilidades abertas pelos Fanprojekte, Richard Giulianotti e Peter Millward (2013) propõem implementar esse modelo no nível internacional. Obviamente, sua implementação em outros países, como o Brasil, depende de adaptações, uma vez que se trata de realidades diferentes. De qualquer forma, alguns claims-makers começam a alegar que esse pode ser um caminho a ser trilhado. Isto se deve, em parte, a um intercâmbio promovido pela Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ). No início de 2014, um grupo com lideres de torcidas ultras, jornalistas, pesquisadores, funcionários de Fanprojekte e autoridades alemãs vieram ao Brasil conhecer melhor a realidade do nosso futebol e dos nossos torcedores. Meses depois, um grupo com lideranças de torcidas organizadas, autoridades públicas brasileiras (do Ministério do Esporte e secretarias da juventude de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Governo Federal) e pesquisadores (entre os quais eu) foram à Alemanha conhecer a cultura de arquibancada local, a organização e estrutura dos torcedores de lá e os Fanprojekte. Com isto, começou-se a se discutir a possibilidade de fazer algo parecido no Brasil.

Atualmente, já podemos perceber certa disposição de alguns representantes do governo para trilhar esse caminho. Tanto é que o Relatório Final da CPI das Torcidas da Câmara Municipal de São Paulo (Nelo, 2016, p. 83) sugere “destinar um percentual da renda dos jogos para a manutenção de um serviço socioeducativo para membros das torcidas organizadas, a exemplo do que existe na Alemanha”. Apesar disto, ainda há resistência em se investir dinheiro, energia e tempo nesse tipo de serviço, devido ao “clima cultural” desfavorável. Conforme já foi dito, existe uma crença generalizada de que o problema da violência no futebol será solucionado através da abordagem repressiva, com o endurecimento das leis.

As leis e documentos brasileiros para a segurança nos eventos de futebol datam do começo do século XXI, ou seja, foram elaborados quando a violência nesses eventos já havia sido definida há pelo menos uma década como um problema social, indicando a incapacidade do poder público de se antecipar ao referido problema. Por exemplo, o Estatuto de Defesa do Torcedor foi proposto em 2002, pela Comissão de Educação Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, e sancionado em 2003, pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Já a Lei n◦ 12.299, que modificou o referido estatuto e deu outras providências, entrou em vigor em 2010.

A CONSEGUE, por sua vez, foi proposta em 2003, quando os ministérios do Esporte e da Justiça tiveram a iniciativa de promover o Seminário sobre Segurança nos Estádios e de realizar uma reunião com um grupo de especialistas de diversas áreas do conhecimento. Nestes eventos, debateu-se a violência no esporte, em geral, e no futebol, em particular, e elaborou-se a chamada Carta de Brasília. Esta definiu uma série de ações de responsabilidade do Governo Federal para a redução dos índices de acidentes e criminalidade nos estádios de futebol brasileiros. Entre outras coisas, propôs a criação da CONSEGUE, que foi formalizada por um decreto presidencial dez meses depois da publicação da referida carta (Reis, 2006). Em 2006, a CONSEGUE publicou seu mais importante documento, o relatório Preservar o Espetáculo, Garantido a Segurança e o Direito à Cidadania. Assinado pelo seu então coordenador executivo, Marco Aurélio Klein, esse relatório tem servido de base para várias experiências, a título de projeto piloto, em partidas realizadas no estado de São Paulo, que é habitualmente percebido como um dos mais afetados pelo problema da violência no futebol.

Tal relatório possui dois pilares: o modelo inglês, já analisado, e a teoria da “vidraça quebrada”, que serviu de base para aquela que ficou conhecida como “política de tolerância zero”. Basicamente, essa teoria defende a ampliação do rigor penal, já que a permissividade com os pequenos delitos serviria de estímulo para outros mais graves. Assim, seria combatendo rigorosamente os distúrbios cotidianos que as grandes “patologias criminais” recuariam. De acordo com Loïc Wacquant (2001), a “política de tolerância zero” legitima um aparelho penal intrusivo e onipresente, convocando o “punho de ferro” do Estado penal. Não à toa, o relatório da CONSEGUE situa a solução do problema no incremento dos dispositivos de vigilância e controle. Prova disto é que ele detalha minuciosamente como devem ser as salas de controle dos estádios de futebol enquanto que aborda, de forma bastante vaga e rasteira, as propostas que poderiam ensejar uma transformação cultural mais profunda – como campanhas educativas. De certa forma, essa desatenção a esse tipo de medida parece refletir a forma como o debate público acerca da violência no futebol brasileiro tem sido construído desde meados da década de 1990, quando promotores públicos e autoridades policiais passaram a ditar o referido debate, privilegiando medidas técnicas e de caráter repressivo (Toledo, 2012).

No que diz respeito às torcidas organizadas, o relatório da CONSEGUE, embora apoie a realização de um fórum dessas torcidas, não prevê a sua participação nos grupos de trabalhos que devem dar seguimento às suas propostas, excluindo-as do processo de elaboração de políticas públicas destinadas a elas próprias. Ao mesmo tempo em que elas são excluídas desse processo por tal relatório, o Art. 39-B do Estatuto de Defesa do Torcedor determina que elas respondam “civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento” (Lei n ͦ 10.671). Tal artigo é amplamente criticado pelas lideranças de torcidas organizadas, conforme pude comprovar nas entrevistas que realizei e nos eventos dos quais participei. Afinal, ele é percebido como abusivo, já que responsabiliza toda a instituição pela ação de apenas alguns de seus integrantes. Imaginemos, por exemplo, se o mesmo valesse para outras instituições: será que alguma delas sairia ilesa?

O Art. 39-B, todavia, é habitualmente visto com bons olhos por boa parte dos outros claims-makers. Isto parece ser uma consequência concreta da estigmatização dos torcedores organizados, que contribui para legitimar mecanismos legais de controle e penalização específicos para eles, convertendo-os em sujeitos com menos direitos e mais deveres do que outros. Para entendermos melhor como esse processo de legitimação é realizado, tomemos outro exemplo: em 2009, o então ministro do Esporte, Orlando Silva, propôs um conjunto de medidas, batizadas de “Torcida Legal”, a fim de garantir mais conforto e segurança para os torcedores que vão aos estádios de futebol. Entre essas medidas, havia uma que determinava a realização de um cadastramento nacional dos torcedores – o que, a princípio, dificultaria a ação dos cambistas. Tal medida foi amplamente criticada pelos meios de comunicação, o que fez com que ela tenha sido descartada. A Folha de S. Paulo (Editorial: Todos fichados, 2009), por exemplo, dedicou um editorial ao tema, em que, entre outras coisas, argumentava que se tratava de uma inversão da lógica: fichar-se-iam todos os torcedores ao invés de fichar apenas os violentos.

No entanto, atualmente, no estado de São Paulo, os torcedores organizados, para entrarem com qualquer peça que faça referência à sua torcida, precisam estar cadastrados na Federação Paulista de Futebol. Esta medida, muito similar à anterior, não tem suscitado, contudo, a mesma indignação da mídia. Pelo contrário, nas raras ocasiões em que é abordada, ela costuma ser aplaudida, ou seja, o que é visto como um absurdo para os torcedores não filiados a torcidas organizadas é visto com naturalidade para os torcedores organizados. O estigma opera justamente desta forma: desumaniza e, ao fazer isto, autoriza o controle social sobre aquele que é desumanizado.

Ao mesmo tempo em que autoriza o controle sobre os torcedores organizados, a mobilização desse processo de desumanização tem ensejado práticas de resistência, provocando a sua contradição. As torcidas organizadas não têm aceitado passivamente sua exclusão dos arranjos institucionais do futebol brasileiro, protestando, dentro e fora dos estádios, contra uma série de coisas, como o jogo das 22h00, que dificulta a volta do torcedor para casa, o preço (abusivo) dos ingressos, as diversas proibições nas arquibancadas e a corrupção nas federações estaduais e Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Temas que extrapolam o universo do futebol também têm sido colocados em pauta, como a abertura de uma Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) para investigar possíveis fraudes em licitações de merenda escolar em cidades de São Paulo.

Além protestar, as torcidas organizadas têm se unido em entidades representativas. No Rio de Janeiro, por exemplo, já existe há alguns anos a Federação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ), que foi criada com a finalidade de promover o diálogo entre essas torcidas e entre elas e o poder público. A FTORJ inspira-se nos trabalhos da Associação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (ASTORJ), criada em 1981 e dissolvida no final dos anos oitenta. De acordo com Bernardo Buarque de Hollanda (2008), a ASTORJ propunha formalizar a relação entre as torcidas organizadas e legitimá-las como uma força corporativa com influência na estrutura de poder do futebol. Além dessas iniciativas localizadas no Rio de Janeiro, observam-se outras iniciativas de diálogo em outras regiões do país, como as estabelecidas há algum tempo entre as principais torcidas organizadas do Ceará e do Fortaleza.

Também se observam algumas iniciativas de abrangência nacional. Por exemplo, no final de 2010, foi fundada a Confederação Nacional das Torcidas Organizadas (CONATORG), que acabou sendo dissolvida, depois de ter promovido e participado de eventos para discutir os rumos do futebol brasileiro – como o I Seminário do Estatuto do Torcedor, realizado em Brasília – e atuado ativamente contra a elitização do futebol e a criminalização do torcedor, além de ter realizado manifestações contra o então presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira.

Mais recentemente, no final de 2014, foi criada a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (ANATORG). Seguindo o movimento de torcidas ultras da Europa, essa associação adotou o lema “fale conosco, não fale sobre nós”. Lema similar a de outros movimentos sociais, como o Movimento de Vida Independente (MVI), de pessoas com deficiência, que defende que nenhuma intervenção sobre eles seja feita sem sua participação (“nada sobre nós sem nós”) (Cordeiro, 2011). Em última instância, tais lemas buscam inverter a lógica normativa, que colocam os estigmatizados de sempre – pessoas com deficiência, torcedores organizados, jovens pobres, homossexuais etc. – na condição de desviantes, daqueles que não devem falar por si mesmos.

Obviamente, a capacidade da ANATORG de reduzir os conflitos violentos entre as próprias torcidas organizadas e dirigir suas forças a outros alvos ainda é uma questão em aberto. De qualquer forma, a criação de entidades dessa natureza parece ser uma forma de empoderar as torcidas organizadas, tornando-as menos fragmentadas e, consequentemente, mais capazes de se transformar num desafio real aos grupos dominantes. Grupos que lucram (e muito) com a festa que elas fazem nas arquibancadas, mas que não estão dispostos a ceder-lhes espaço nas decisões sobre os rumos do futebol brasileiro. Conforme observou um líder de torcida (Torcedor X, comunicação pessoal, 24/12/2015) numa reunião da ANATORG em que estive presente: “eles querem que as torcidas organizadas sejam torcidas, o que não eles não querem é que elas sejam organizadas!”.

7 Considerações finais

Para finalizar, em primeiro lugar, gostaria de destacar que, ainda que predominem alguns discursos claramente estigmatizantes no processo de construção do problema social da violência no futebol brasileiro, não devemos fazer nenhuma generalização abusiva. É claro que existem, por exemplo, alguns jornalistas sinceramente preocupados com a questão do preço dos ingressos e com a crescente pasteurização da atmosfera dos estádios e que não temem manifestar publicamente suas posições. Também existem autoridades públicas dispostas a escutar as torcidas organizadas. O próprio Ministério do Esporte tem se mostrado, em algumas ocasiões, um parceiro. Por exemplo, apesar do custo político, ele tem realizado seminários com essas torcidas, além de se mostrar disposto a incluí-las na CONSEGUE.

Em segundo lugar, gostaria de destacar que, em nenhum momento, quis sugerir que os confrontos no futebol brasileiro sejam uma obra de ficção e que alguns integrantes de torcidas organizadas não tenham concretamente participação nesses conflitos – tão lamentáveis e reprováveis, a meu ver. Há anos, sou frequentador assíduo de estádios de futebol e, infelizmente, levo na memória o medo de ter me visto algumas vezes em situações de risco. Mas é por isso mesmo, porque sou frequentador assíduo de estádios, que conheço, não apenas pelos livros, a complexidade do problema. A covardia policial e o absoluto desrespeito dos organizadores dos eventos de futebol pelos torcedores são outras imagens que levo na memória. Da mesma forma, também tenho bem claro nas minhas retinas o entusiasmo, a dedicação e o engajamento de algumas lideranças de torcidas organizadas com a solução do problema. Lideranças com quem já tive, conforme observei anteriormente, o prazer de viajar, numa experiência inesquecível pela Alemanha.

Assim, ciente da complexidade do problema e das injustiças na forma como ele tem sido tratado, que, com as minhas pesquisas, tenho buscado contribuir para uma mudança a favor dos grupos dominados no universo do futebol, enunciando e denunciando aqueles discursos que se propõem “humanitários” e que se apresentam em prol da paz, mas que, na verdade, estão a serviço da dominação. Nenhuma pesquisa é neutra, as minhas adotam uma atitude explícita de oposição e dissidência contra todos aqueles que querem destruir uma cultura popular de torcer e excluir as torcidas organizadas, em particular, e as classes populares, em geral, dos estádios e dos processos decisórios do futebol profissional. A estes, não temo dizer em alto e bom som: um futebol justo, popular e democrático é inegociável!

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