O empresariamento securitário da vida: o complexo tutelar no mercado neoliberal da saúde

The entrepreneurship insurance of life: the tutelary complex in neoliberal market of health

  • Flávia Cristina Silveira Lemos
  • Dolores Cristina Galindo
  • Renata Vilela
Neste artigo, são apresentadas e analisadas práticas de segurança das políticas produtoras de corpos saudáveis. São problematizados os efeitos dessas intervenções, tais como: salvar, moralizar, normalizar e normatizar populações em prol do empresariamento de si e dos outros, no mercado neoliberal de uma nova religião, qual seja, a pastoral da saúde, quer dizer, a salvação da saúde pela tutela ofertada, em um complexo múltiplo de artes de conduzir as condutas dos rebanhos e das ovelhas perdidas. A segurança envolve mecanismos variados de seguridade, entre os quais estão castigos, dominações, disciplinas, biopolíticas e tutelas. Em nome do direito à saúde, medicalizações e biocidadanias emergem e passam a atravessar nossas subjetividades quase como práticas naturais, ganhando relevância na medida em que também se tornam ferramentas de investimentos, em cálculos de custo e benefício na relação entre a liberdade e a segurança.
    Palavras chave:
  • Segurança
  • Mercado da saúde
  • Empreendedorismo
  • Subjetividades
In this article, are presented and analyzed security practices of policies producing healthy bodies. Are problematized (scrutinized) the effects of these interventions such as: save, morality, standardise and standardize populations in favor of entrepreneurship by itself and of the other, in neoliberal market of a new religion, which is the pastoral care of health, that is to say, the salvation of health care offered in a complex multiple of arts to lead the ducts of the flocks and the lost sheep. In this article, are presented and analyzed practices of security involves various mechanisms for social security, among whom are a corporal punishment, or lordships, disciplines, biopolíticas and ministries. In the name of the right to health, and biocidadanias medicalizações emerge and pass to cross our subjectivities almost as natural practices, gaining relevance to the extent that also become tools of investments, in calculations of cost and benefit in the relationship between freedom and security.
    Keywords:
  • Security
  • Health Market
  • Entrepreneurship
  • Subjectivities

1 Introdução

Este artigo visa a abordar uma análise das práticas morais, normalizantes e legais do mercado da saúde, no empresariamento da vida neoliberal. Busca-se, a partir de Michel Foucault, Jacques Donzelot e Robert Castel, interrogar como o sujeito de direitos à saúde é atravessado pelo sujeito econômico, moral, medicalizado e legalista. O conceito de governamentalidade nos auxilia a realizar este escrito e a efetuar as análises, materializadas na ontologia histórica de nós mesmos.

O direito à saúde é transformado em mercado e religião da atualidade (Foucault, 1999). Os processos de empreendedorismo sob a insígnia da gestão do capital humano e social são agenciados pela medicalização da sociedade e pela tutela dos corpos e das populações, resultando em governos de risco e perigo para conduzir performances, em biocapitais e biolegitimidades.

O dispositivo de segurança se torna uma prática de complexo tutelar, ao organizar violências punitivas e extermínios silenciadores e mortificantes; dominações segregativas e autoritárias; disciplinas e biopolíticas normalizantes; caridade para a salvação das almas e filantropia moralizadora dos corpos.

O biocapital implica hipervalorizar aspectos biológicos, capitalizados enquanto código genético e capacidades e limites herdados. A biologia molecular ganha cada vez mais destaque no mercado da manipulação genética, da medicina restaurativa, de precaução de doenças e personalizada. A gestão das performances biológicas por biotecnologias se torna uma prática de alta rentabilidade econômica.

A biolegitimidade é a reivindicação de direitos com base na gestão biológica dos corpos em nome da saúde. O direito à saúde pela conquista em acessar diagnósticos, prevenções de doenças e tratamentos diferenciados passa a ser um agenciamento do mercado da saúde maximizado, em contextos neoliberais, em sociedades de segurança.

Assim, objetivamos traçar algumas dessas linhas da religião e do mercado da saúde, no presente, como um intolerável que vivemos, procurando, desse modo, criar espaços outros a fim de abrir brechas nesse dispositivo, com vistas a mover o campo de forças para agenciar resistências a essa racionalidade de vidas saudáveis neoliberais que menorizam os corpos, despotencializando suas capacidades de pensar e decidir sobre si e com os outros, na multiplicidade de experimentação dos encontros. Resistir ao empresariamento de si e dos outros, na afirmação de uma vida potente, é um exercício permanente de produção de liberdade, o qual nunca finda.

2 O mercado da saúde e o complexo tutelar para Jacques Donzelot: caridade, filantropia e medicina higienista

Donzelot (1986), em A Polícia da família, apresenta o complexo tutelar, constituído por caridade (salvação das almas), filantropia (moral) e um viés médico-higienista (prescrições normalizadoras). O complexo tutelar agencia três modelos de assistência social, articulando-os, nas práticas de governo das condutas.

Na Idade Média, a caridade ganha proeminência nas ordens religiosas e nas igrejas, em nome da salvação das almas. Os partilhar com o próximo é incentivado em nome do amor ao mesmo, da busca de uma vida eterna e para conquistar a fé dos que recebem as doações. Essa prática não era sistematizada e não significava uma vigilância das famílias que recebiam as doações (Donzelot, 1986).

Desde o século XVIII, a filantropia emerge com a atuação moralizante dos beneméritos e das mulheres que visitavam as famílias pobres para doar recursos, os quais eram, sobretudo, obrigatoriamente vinculados à aceitação de conselhos morais e ao seu cumprimento, sob pena de perder os benefícios, caso as famílias não obedecessem aos preceitos morais indicados.

É criado um modelo de inquérito social, usado para levantar informações das famílias beneficiadas e estas passam a ser controladas e repartidas entre as que estão sem recursos apesar de tentarem trabalhar e as que não querem trabalhar e vivem fora das regras morais porque assim o querem. As segundas são desprezadas pelos beneméritos e as primeiras beneficiadas. São estabelecidas regras para distribuição dos recursos (Donzelot, 1986).

Nesse modelo de assistência, são inventados os manuais de conduta, também chamados de civilizatórios. Estes eram distribuídos pelos educadores, trabalhadores sociais e beneméritos, com fins moralizantes. Continham regras morais de como se comportar para ter saúde, higiene da casa, dos filhos, na vida conjugal e maneiras de se alimentar, de se portar em sociedade, de se vestir e de trabalhar.

Na segunda metade do século XIX, aparece uma assistência médico-higienista, a qual criticava as anteriores e postulava as normas de saúde a partir de princípios científicos a serem prescritos às famílias e infância, com fins de medicalização da família, para que esta medicalizasse a infância (Donzelot, 1986). Os manuais de conduta ganham a presença dos saberes médicos e psicológicos, reorganizando os cânones morais.

Contudo, a medicina higienista não abre mão da caridade e da filantropia, mas as rearticula, isto é, almeja a salvação das almas na saúde pelas normas e pela moral higienista, para normalizar as condutas. Esses elementos são articulados e formam um dispositivo tutelar diferenciado do funcionamento dos mesmos, separadamente. Assim, a tutela é diversa da moral isolada, das normas separadamente e da salvação das almas apenas pela caridade.

Nesse período, surgem as primeiras leis de proteção e conservação da família e da infância, em legislações civis, penais, sociais e específicas para crianças. O Estado é afirmado enquanto instância pública que pode entrar no mundo privado, em nome do cuidado, rompendo parte do patriarcado e das práticas populares e artesanais do cotidiano das comunidades. A educação em saúde aparece com o surgimento das primeiras campanhas contra a mortalidade infantil e pela organização de políticas para o atendimento às famílias e infância.

O complexo tutelar é fabricado na segunda metade do século XX e reúne os modelos anteriores, de sorte a tutelar os corpos por parcerias, como público e privado, em atos caritativos, moralizantes, normalizantes e legalistas em nome da promoção, defesa e garantia de direitos para a seguridade social e punição. A tutela é um objetivo em nome da proteção.

Por isso, lança mão da infantilização permanente dos que denomina cidadãos, usando princípios jurídicos, como a internação compulsória, a segregação, a quarentena, o recolhimento, o asilo, a camisa de força, a contenção química, terapêuticas morais e psicologizantes, racionalidades biomédicas e ações de mobilização social e responsabilidade social com as chamadas inovações sociais e tecnológicas na saúde, na pesquisa, na educação e na cultura (Donzelot, 1986). Este era o modelo do liberalismo do Estado Democrático de Direito.

A formulação de leis de acesso a tratamentos, a diagnósticos e a medicamentos entra em cena com o complexo tutelar na saúde. A nova filantropia moraliza comportamentos por meio de remédios; terapêuticas de aprendizagem, treinamento e controle comportamental; vigilâncias policialescas do cotidiano, por equipes de saúde comunitária de empresas e de fundações das empresas. Um setor social aparece em nome da defesa da sociedade, faz triagens e examina os corpos, encaminha e interna, recolhe e moraliza pelo trabalho.

A caridade é convocada a compor o dispositivo, pois as igrejas são convidadas a participar, com o ensino moral de comportamentos ditos bons e corretos, com encomendas de abstinência e convencimentos de adesões a tratamentos. É muito comum o fato de equipes religiosas voluntárias visitarem serviços sociais variados, com doações e distribuição de folhetos e mensagens espirituais em prol das chamadas pastorais morais. A salvação das almas motiva esses grupos de voluntários e é aceita pela administração social como mais uma tecnologia de si, a ser empregada para governar as condutas desviantes e até mesmo consideradas criminosas e patológicas.

A medicina higienista é igualmente apropriada, com suas táticas e técnicas, seus saberes e recomendações, seus exames e diagnósticos, seus tratamentos e cirurgias. Os saberes normalizadores desse modelo de cuidado ganham notoriedade em uma sociedade de conhecimento e que tornou o ser humano um capital a motivar e a regular, tal como investimento realizado, no neoliberalismo.

As prevenções e tratamentos ganham espaço na política de saúde, enquanto dispositivos que asseguram vida e produção lucrativas. A tutela organiza todas essas modalidades e as transformam em práticas possíveis e aceitas, em um amplo e crescente mercado da saúde que infantiliza e tutela os corpos, em nome de um estilo de viver empresarial, classificado como empreendedorismo de si e dos outros.

3 Robert Castel e a gestão de riscos e perigos na modulação das performances de saúde

A gerência das virtualidades, das práticas futuras, nas prevenções em saúde e promoção das chamadas qualidade de vida e cuidado, as quais asseguram contra riscos supostos, ganha proeminência e gera efeitos singulares em nossa sociedade, em termos de organização da vida para criar corpos saudáveis.

De acordo com Castel (1987), os riscos não existem em si, pois eles são apenas probabilidades de que algo aconteça. François Ewald (1993) chega a destacar se existe um risco em função de um cálculo estatístico, o qual lança possíveis por um sistema de medida, baseado em modelos que articulam normas. Estas são regras, medidas comuns, a partir da construção de modelos idealizados e abstratos.

O risco de se desviar de uma norma de saúde, de comportamento, de produtividade e de aprendizagem, por exemplo, é calculado com base em fatores chamados de variáveis condicionantes, em lógicas experimentais inferenciais. Risco é uma virtualidade, porque é apenas um cálculo de possibilidade de algo ocorrer e não um evento de fato, ou seja, a medicalização pode operar pela prevenção de doenças as quais poderão nunca acontecer (Castel, 1987; Foucault, 1988).

A bioinformática facilita a matemática inferencial, aplicada ao cálculo de riscos, e essa racionalidade sustenta, nas últimas décadas, todo um campo de indicadores de direitos e planejamentos de políticas públicas, como as de saúde. Basta avaliar os manuais de diagnósticos psicopatológicos, por exemplo, as definições de orçamentos a partir de planilhas usadas para constituir fluxos de população a cobrir ou não com o dinheiro público e/ou com a chamada parceria entre o setor público e privado, na agenda neoliberal do governo da vida.

Para Castel (1987), a medicina e a psicologia forjam uma racionalidade de gestão diferencial das populações. Os recortes dos grupos populacionais denominados em risco vão sendo geridos em equipamentos especiais, coordenados por especialistas, em terapias e pela administração social. Dossiês são constituídos pelos experts da norma, que constroem casos de desadaptados a regular e enquadrar por diagnósticos de espectros e intensidades dos desvios a avaliar e supostamente tratar/regular/disciplinar.

O poder psiquiátrico se torna uma chave para abrir todas as portas de performances consideradas como déficits a compensar. Por isso, Foucault (2006), em O poder psiquiátrico, afirma que a questão da psiquiatrização da sociedade é a gestão dos processos de desenvolvimento e a modulação dos mesmos. A psiquiatria moral trouxe a visão da pedagogia da norma como terapia do trabalho e terapia psicoeducativa ou, ainda, como uma psicoterapia normalizadora de caráter disciplinar, mas também de cunho moral, em defesa da sociedade. Nesse aspecto, Joel Birman (1978) tomou o discurso psiquiátrico como uma moral, em um de seus livros publicados, no Brasil.

Os saberes médico-psicológicos passam a dar legitimidade aos diagnósticos e sistemas de etiquetagens que são seus efeitos. Os exercícios recomendados são da ordem do desenvolvimento a ser estimulado e promovido. Todavia, a modulação bioquímica desse processo ganha notoriedade em uma sociedade que encomenda respostas rápidas e políticas, com “menor” custo de saúde, no neoliberalismo. A iatrogenia dos exames e usos de drogas prescritas por psiquiatras organicistas, tais como os efeitos colaterais da utilização dos fármacos, parece não ser contabilizada nesses cálculos.

Cada vez mais se buscam as denominadas drogas de conforto, isto é, aquelas que minimizam ou anestesiam as dores, que diminuem as frustrações e que facilitam trabalhar, estudar, manter a atividade sexual e relacional, de maneira a não se ter prejuízos sociais, culturais, afetivos e econômicos. Os aparatos nomeados de saúde se tornam um dispositivo que assegura conforto, acesso a direitos, entrada em empregos, manutenção de relacionamentos, evitando medos e estimulando a memória e outras funções ditas cognitivas.

Nos processos neoliberais, o Estado e a sociedade têm por função regular a vida e a saúde para administrar as condutas das pessoas sem destruir a sua existência e autonomia, o que é possível por meio da proliferação de especialistas – médicos, cientistas, pais que estudam manuais de saúde, agentes sociais – e da criação de alianças entre cidadãos livres e mercados internacionais (Miller & Rose, 2012). O surgimento do governamentalidade neoliberal traz significativas transformações nas práticas de governo das condutas, em termos de: regulação das coisas, das pessoas, das populações e da circulação de bens (Rodrigues, 2013).

Prever e admitir riscos, estabelecer limites e regulamentar as práticas para evitar futuras doenças são como retóricas salvacionistas fixadas pelos médicos e pela lógica preventivista em saúde, no cotidiano das pessoas. A biomedicina repete a retórica da salvação da modernidade que enfatiza o desenvolvimento de medidas tecnológicas, econômicas e políticas, como condição para a salvação da civilização (Ortega, 2004).

Já não há problema social que não seja tratado em termos de risco; higiene, saúde, poluição, inadaptação, delinquência. E a instituição da segurança social faz do seguro a própria forma da relação social. Movimento geral senão de normalização, pelo menos de normativação a partir da tecnologia do risco. Tal como não há norma que não seja social, não poderia existir norma isolada. Uma norma nunca se refere senão a uma outra norma da qual, por isso mesmo, depende. As normas comunicam entre si, de um nível ou de um espaço a outro, de acordo com uma espécie de lógica modular. Uma norma encontra o seu sentido numa oura norma: só uma norma pode dar valor normativa a outra norma. (Ewald, 1993, p. 106-107).

Essa prática de retórica artefactual-social fabrica mundos e muda a forma de saber e poder sobre objetos novos – como os genes, as células-tronco do cordão umbilical. O que não é de espantar, uma vez que, como aponta Dona Haraway (1995, p. 10), a própria Ciência é retórica, “é a convicção de atores sociais relevantes de que o conhecimento fabricado por alguém é um caminho para uma forma desejada de poder bem objetivo”. Foucault (2008) já enfatizava que, sendo a principal característica da biopolítica sua visão voltada para o futuro, estratégias de regulação são criadas para possibilitar intervenções na direção de reformatar o futuro da saúde humana, atuando no presente vital. Como nos lembra Francisco Ortega (2004), aliados às estratégias biopolítica, os ideários de autoconsciência de ser saudável e a saúde perfeita tornaram-se novos paradigmas em nossas sociedades neoliberais atuais.

4 Artes de governar para Michel Foucault e o mercado da saúde

Na conferência O sujeito e o poder, na Universidade de Berkeley, Foucault (1995) afirma que, na governamentalidade neoliberal enquanto arte de governar as condutas há uma objetivação do empresariamento da vida, na atualidade, fundamentado em práticas articuladas, porém, distintas. Por exemplo, mecanismos de dominação, violência, poder e opressão são agenciados

A dominação é formada por preconceitos e discriminações negativas de longa duração. Em geral, a cristalização de estereótipos aciona racismos, estigmatizações de gênero, etnia, religião e classe. Trata-se de ações que tornam bem difícil a resistência e criam um aglomerado de forças com efeitos de hegemonia e homogeneidade de condutas (Foucault, 1995). A moral filantrópica e religiosa opera por esse campo, contudo, uma série de saberes ditos da ciência também se apropria de discursos morais, em nome da saúde; por exemplo, quando algumas psicologias assinalam que determinadas famílias são disfuncionais, elas o fazem em nome de um modelo comparativo – e este é moral.

O racismo institucional e as desigualdades sociais materializam tais processos de dominação (Wieviorka, 2004) moral, médico-psicológica e religiosa. Há práticas racistas que ocorrem em equipamentos de saúde e, por isso, se sublinha a importância da equidade na política de saúde. A questão do mercado da saúde se dá quando se calcula economicamente o custo de manter iniquidades raciais e que lucros advirão da noção de investimento meritocrático e de práticas compensatórias de caráter equitativo. No neoliberalismo, é comum o fazer viver e o deixar morrer, por meio de um governo da vida baseado nesses mecanismos.

A medicalização das condutas de forma terapêutica e autoritária foi trabalhada por Foucault (1979). Para ele, os pobres tradicionalmente receberam medicalizações autoritárias, como as internações e higienismos forçados. Os ricos e abastados receberam, com recorrência, medicalizações terapêuticas: basta avaliar quem frequenta, de modo geral, os consultórios privados de psicanalistas, psicopedagogos e psicólogos.

A medicalização de trabalhadores pobres teve a tendência de ganhar dimensões impositivas e obrigatórias, sob pena de se perder o emprego e as promoções na carreira precarizada. Hoje, há avaliações de desempenho na área de recursos humanos baseadas em vigilância do trabalho, as quais forçam o uso de equipamentos ditos de segurança e a exposição a treinamentos, exercícios físicos e psicológicos.

A higiene, na educação, no local de trabalho, na família e no corpo do trabalhador se torna mercado até mesmo no uso de uniformes, luvas, capacetes, toucas, botas, óculos, máscaras, assim como pela medicina preventiva e prescritiva contra riscos laborais. A psicopatologia do trabalho aparece como campo de intervenção e a medicina do trabalho também. Ganham abertura de contratação nas empresas, e os exames admissionais e demissionais se tornam obrigatórios.

A medicalização das cidades alimenta um amplo mercado da saúde, na vigilância sanitária, nas chamadas reciclagens urbanas pelas reformas de ruas, de avenidas, prédios, construções novas, saneamento, pavimentação, urbanização, limpeza diária do lixo, multas, circulação do ar e do trânsito de automóveis e pedestres, do acesso a serviços variados e ao lazer, com a construção imobiliária e a construção de vias e pontes, viadutos e expansão de projetos de desenvolvimento social e econômico.

A medicalização do Estado passa a configurar a linha de proteção e promoção de saúde, a partir da relevância com que a força da nação passa a ser avaliada pelas populações saudáveis de um país e sua disponibilidade a ser usada para o trabalho e a educação como capital. Um Estado pouco medicalizado empreende pouco em termos de governar as condutas para assegurar saúde e direitos sociais, como investimento lucrativo no futuro (Foucault, 1979).

Em Segurança, território e população, Foucault (2008) ressalta a emergência do poder pastoral nos cristianismos e como o mesmo foi apropriado como governamentalidade, isto é, governo das condutas pelo Estado moderno. A segurança como seguridade em saúde foi umas das políticas ofertadas para vigiar condutas e fornecer elementos a fim de reduzir a violência, promover a paz mundial e liberar os mercados para os fluxos do capital circular.

A segurança é produzida, na regulação coletiva da vida, pela polícia da saúde e diplomacia (OMS), pela militarização da saúde e o movimento higienista, na biopolítica. Todavia, ocorre ainda pela disciplina meticulosa de controle dos corpos, individualmente, em nome da regulação de condutas detalhadas, como dietas e exercícios físicos. O envio de exércitos para áreas com epidemias e médicos para zonas de guerras apontam a função militar, porém, a diligência dos militares é articulada como poder pastoral no governo das condutas, em hospitais militares e em unidades básicas de saúde, os quais funcionam em racionalidades semelhantes com a noção de combate e de inimigo a vencer.

A diplomacia, no cenário internacional, modera ou pelo menos tenta moderar o plano econômico e desigual das políticas de direito à saúde no mundo, como faz, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde. A condução da saúde de um rebanho não apenas local, regional, nacional, mas internacional, faz do direito à saúde uma biolegitimidade e um biocapital, afinal, trocas econômicas são realizadas a partir dos indicadores de saúde dos mapas demográficos, epidemiológicos e de expansão de mercados da saúde, tais como o da indústria farmacêutica, em um país ou continente.

Em Nascimento da Biopolítica, Foucault (2008) trata do empresariamento da vida neoliberal, em que o empreendedorismo é um estilo de viver e de se conduzir para lucrar e realizar negócios, conseguir trabalho, gerar renda, formar famílias e criar filhos, de sorte a ocupar cargos de gestão e inovar em pesquisa e nos setores de patentes em saúde. Diagnosticar antecipadamente e disciplinar o que pode causar revoltas e desvios de modelos passa a ser uma meta do empresariamento da saúde, na dimensão coletiva e mental da política.

As tensões comparecem no neoliberalismo frente aos interesses de várias racionalidades empresariais a serem reguladas e mediadas, na concorrência do mercado de saúde. Podemos acompanhar tomadas de decisão referentes a essas tensões e seus efeitos em uma série de decorrências dos cálculos políticos e econômicos de cada sociedade.

O risco de usar um medicamento e de se submeter a tratamento e exame, o custo de adotar um chamado investimento em patentes, como inovação tecnológica, e os efeitos da flexibilização ética de regras de liberação das mesmas e dos medicamentos proibidos pela pressão dos interesses da indústria farmacêutica e de exames, entre outros exemplos, poderiam ser citados. As disputas jurídicas por acesso a remédios e a diagnósticos, a cotas pelos diagnósticos, a aposentadorias e a benefícios como pensões por elementos de biocidadania e biocapital são tensões nada fáceis e muito menos simples para administrar, hoje.

Contemporaneamente, uma faceta da biopolítica, traçada por Michel Foucault na década de 1970, pode ser visualizada no surgimento dos debates sobre bioeconomia. Estes vêm tratando a articulação da medicalização com o trabalho das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas, na criação e na organização de novas patologias e o sequenciamento das estruturas genômicas as quais impulsionam pesquisas em setores públicos e privados sobre nossa existência (Rose, 2013). Como aponta Luiz David Castiel e Carlos Álvarez-Dardet (2010), a vida assume uma dimensão política, que se torna passível de governar, administrar, calcular e normalizar por intermediações de ações bioeconômicas de empreendimentos privados transnacionais e políticas públicas.

Para Chris Hamilton (2008), bioeconomia é utilizada para dizer de uma série de processos que vem acontecendo, nas últimas décadas, em que elementos ditos da natureza adquirem valor e são estruturados em termos econômicos. Tal terminologia chama nossa atenção, também, por seu caráter dúbio, uma vez que passou a ser usada tanto como uma ferramenta de crítica à comercialização da vida pelas bioindústrias pelos teóricos da Ciência, Tecnologia e Sociedade, quanto pelas organizações econômicas que dela se valem para cálculos biopolíticos.

Nossas subjetividades estão cada vez mais marcadas pela interiorização, tal qual aquela que marcou o nascimento da clínica e a instauração de um novo olhar médico sobre os sinais do corpo, bem como a interiorização de nossas impressões digitais pelas expertises forenses. Contudo, agora, estão voltadas, igualmente, aos nossos genes, predisposições, riscos, afecções possíveis diante das encomendas de securitização pautada por uma saúde, cada vez mais, persecutória (Castiel & Álvarez-Dardet, 2007a).

Hoje, os biotécnicos dizem, em grande parte, quem somos e quais responsabilidades e direitos temos, novos oráculos nos quais somos devorados pelas encomendas de novas formas de vida criadas através da afetação de tecnologias médicas sobre o corpo, as quais estabelecem normas de uma boa saúde.

Conforme Ben Anderson (2012), aprendemos com as políticas ligadas à própria vida que, para proteger, cuidar e manter as vidas, é preciso investir e prever os danos. A biopolítica contemporânea, além de gerir e regular as condições inerentes da existência humana, visa, também, à comercialização dos materiais biológicos humanos. Nessa capitalização, a gestão do risco e da vigilância garantem formas de capital genético que estão mudando as relações entre saúde e patologia, doença e cura, tecnociência e corpo, e a regulação das políticas públicas e da saúde privada.

Novas tecnologias de saúde são organizadas na imanência, ou seja, na correlação ao acaso de forças com as mutações do mercado, com as transformações das famílias, com os efeitos ecológicos dos impactos ambientais, com as alterações da política e com a atualização das relações sociais e culturais. As forças que marcam os processos de subjetivação são matéria e constituídas por práticas culturais, sociais, econômicas, ecológicas, políticas e históricas. Com efeito, a subjetividade é um território de existência que torna atual o virtual e que torna extensas as matérias intensivas.

As forças dos agenciamentos subjetivos são compostas por subjetivações, processos ininterruptos que não cessam de fazer vibrar e atravessar a dobra provisória da subjetividade, fazendo-a estremecer e pedindo passagem em atualizações as quais materializem os efeitos das afetações sofridas, conforme pensou Gilles Deleuze (1992) acerca das sociedades de controle. As modulações da subjetivação se organizam como forças em agenciamentos coletivos, que operam por correlações sem causalidade e sem linearidade, na esfera dos acontecimentos que se cruzam e se conectam como teias sem privilégio de entradas e saídas das suas linhas de composição.

Foucault (2008) havia afirmado, em Nascimento da Biopolítica que os poderes pastorais, quer dizer, os governos de condutas em nome da salvação eterna, foram transformados em modos de gerir para salvar a saúde e forjar um mercado de tecnologias potencializadoras da vida, enquanto empresas-empreendimentos performáticos.

Ademais, Castel (1987) assinalou como as políticas de saúde e educação, na segunda metade do século XX em diante, foram ganhando feições de gerência de riscos em nome da segurança e da produção de altas performances de rendimento, em um mercado da saúde e do cuidado preventivo desde a tenra infância. Nesse aspecto, governamentalidade é o

Conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, como forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. (Foucault, 1979, p. 291-292).

Discursos esperançosos quanto a um futuro imune de patologias e a expectativa do aumento da longevidade são alguns dos motivos que impulsionam e movimentam grande parte das atividades da bioeconomia atual. A esperança pode ser pensada a partir do que Foucault (2008) denominou controle social pelo dispositivo de segurança.

A vida afetiva das pessoas é alvo e condição para novas formas contemporâneas de governamentalidade (Anderson, 2012), nas quais relações de afeto e amor são ferramentas de poder e controle dos corpos e arregimentam a capitalização da vida. Sentimentos de esperança, amor, segurança são invocados para convencer pais amedrontados a recorrerem às técnicas médicas em medicina molecular como estratégias de proteção aos seus filhos.

E nós, enquanto consumidores de seus serviços, estamos cada vez mais envolvidos nessas tramas discursivas, que se configuram mais como retóricas salvacionistas (Haraway, 1995). As biomedicinas e suas técnicas desempenham, agora, um papel importante na modelação das subjetividades (Rose, 2013), caracterizadas principalmente pelo seu caráter amedrontador e precaucionário (Castiel & Álvarez-Dardet, 2007b).

5 O monopólio estatal da violência e o uso da violência pela lei e fora da esfera legal

A violência implica um acirramento da dominação, ao ponto de ocorrer o exercício de uma prática que impede a resistência pela força e pelo silenciamento, em um processo de coisificação do outro, submetido à tortura, aos castigos físicos, à imobilidade e segregação (Foucault, 1995). A internação tem articulado essas práticas de tortura, trabalho forçado, moral, higienismo, medicalização, filantropia e caridade. Ou seja, ganhou uma racionalidade tutelar e de gestão de riscos.

No dispositivo de segurança, ela é utilizada como estratégia de defesa da sociedade, legitimada por fóruns nacionais e internacionais. A tortura para investigar crimes, com a apropriação de saberes e poderes de profissionais da saúde, se tornou uma prática comum em vários países e se transformou em um mercado e tecnologias forenses. O inquérito e a produção de prova são efetivados nessa vertente forense, tanto na saúde quanto na assistência social e na educação, hoje. Dossiês viram provas e as técnicas de extração documental possibilitam essa prática.

Por isso, Foucault (1979) havia apontado a relação entre fábrica, hospital, exército, escola e família, na sociedade disciplinar. O exame permite a criação de diagnósticos forenses e psicopatológicos na política de saúde e judiciária, no chamado tratamento e tratamento-pena; com efeito, o inquérito social opera pela ressocialização parajudiciária realizada pelo trabalhador social, o qual disciplina pela educação. A moral permite a avaliação como julgamento que naturaliza atos pela ideia de uma sujeira a ser expurgada e contra a qual se luta, permanentemente.est

O paradoxo da biopolítica é o deixar morrer e até mesmo matar em nome da vida. O racismo de Estado e de sociedade é o que possibilita fazer funcionar genocídios e guerras em nome das democracias atuais (Foucault, 1988; 1999). Eric  Hobsbawm (2007) assinala como cada vez mais as guerras são travadas em nome da paz e da segurança e para expandir as democracias. Estas seriam autorizadas pelas leis, no Estado Democrático de Direito.

O extermínio de jovens negros pobres, a violência cotidiana contra as mulheres, as torturas em delegacias e prisões, a justiça popular, a exploração sexual de crianças e adolescentes e tantas outras modalidades de violência ainda estão presentes hoje, no Brasil (Carvalho, 2001). Muitas mortes, punições físicas e torturas são encomendadas, como castração química, justiça restaurativa, estresse para interrogatório, pena capital com injeções letais, internações em manicômios judiciários e internações compulsórias.

Assim, a democracia é certa maneira de realizar a soberania jurídica, mas implica práticas sociais, culturais, econômicas, históricas e de produção de subjetividades, também. Desse modo, a lei se conecta pela norma disciplinar e biopolítica, pela opressão moral, pela dominação cultural e econômica, pela violência – e em nome da saúde. No mercado da saúde, estão disponíveis técnicas consideradas violentas, como internações compulsórias e tratamentos morais, como o trabalho forçado, por exemplo. Cirurgias plásticas, lobotomias, aprisionamentos, assassinatos em massa com armas químicas, castrações e camisas de força físicas e bioquímicas poderão ser usadas, em nome da contenção, da proteção e da segurança mundiais.

6 Empresariamento e endividamento, conclusões que prefaciam

No neoliberalismo, tornamo-nos empresários de nossas vidas, sendo nosso próprio capital e fonte de renda (Foucault, 2008a), pois o mercado não é definido pelos instintos do homem em fazer troca. Por mercado entende-se uma relação de concorrência e desigualdade, na qual os sujeitos não são comerciantes, mas empresários (Lazzarato, 2013).

Passa-se a gerenciar e comercializar a si como empresa e centro biomédico, visando a melhorar sua saúde e, consequentemente, a aumentar longevidade e o empreendedorismo como estilo de vida no campo dos processos de subjetivação. O empreendedorismo de si tem lugar numa cultura marcada pela família medicalizada e medicalizante, em que prevenir doenças e garantir práticas de lidar com elas impulsiona um mercado modulado por investimentos na relação pais e filhos.

Castiel e Álvarez-Dardet (2007b, p. 59) enfatizam que permanecemos no regime dos riscos característico da biopolítica traçada por Michel Foucault, porém, soma-se igualmente o regime da hiperprevenção, no qual cálculos probabilísticos futurológicos indicam que ameaças nos rondam e devemos nos precaver contra elas. Está-se em risco ainda que não haja evidência de algo, apenas pelo fato de viver em prospecção medida e biomédica.

Tais configurações requerem considerar as micropolíticas na ruptura com a contestação da sociedade de conexão, atrelada pela segurança e crença dos sistemas verídicos de conhecimento e nas maneiras de ver o cotidiano (Haraway, 2004). Como escapar às linhas de subjetivação que nos tornam empresários de nós mesmos? Como produzir práticas inventivas que nos façam, vez ou outra, sorrir e visualizar, no que é trazido como fato, uma parábola daquilo que apenas se prefacia?

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