Este texto tem como objetivo refletir sobre a pesquisa como prática social, a partir de uma epistemologia construcionista social. Para tanto, buscaremos desenvolver uma discussão sobre as dinâmicas relacionais presentes no processo de produção de conhecimento, dando visibilidade para a relação que o pesquisador constrói com os diferentes “outros” ao longo do processo de pesquisa. Na análise da relação dialógica do pesquisador com estes diferentes “outros”, buscaremos contribuir com a reflexão sobre as formas pelas quais as práticas de pesquisa em Psicologia relacionam-se com o conhecimento do “outro” e sobre as (tensas) dinâmicas presentes no processo de produção de conhecimento.
Reconhecemos que várias questões a serem discutidas ao longo desse texto são partilhadas por outras orientações epistemológicas em pesquisa qualitativa. Porém, neste texto, buscamos explorar como determinadas dinâmicas que atravessam o processo de produção de conhecimento podem ser vivenciadas particularmente por aqueles pesquisadores que optam por ressaltar sua adoção a uma epistemologia construcionista social, analisando, reflexivamente, as tensões e impasses que esse posicionamento pode gerar. Com isso, objetivamos ampliar o diálogo com pesquisadores e autores interessados na discussão dos limites e possibilidades dos estudos de construção social na produção do conhecimento científico.
Entender a pesquisa como prática social em uma epistemologia construcionista significa reconhecer que, no processo de produzir conhecimento, o pesquisador está envolvido em uma rede complexa de negociações de sentidos e práticas com outros presentes ou presentificados. Neste texto, buscaremos explicitar alguns jogos de linguagem que se estabelecem nestas negociações, direcionando o desenvolvimento da pesquisa para algumas direções e convidando para o uso de algumas linguagens por vezes dissonantes com a postura epistemológica que se adota.
Reconhecendo a diversidade presente no campo dos estudos construcionistas sociais (Danzinger, 1997), referimo-nos à epistemologia construcionista tal como definida por Kenneth Gergen (1985). Para o autor, são características das propostas construcionistas sociais em investigação o reconhecimento de que: o que consideramos como nossa experiência do mundo não determina os termos pelos quais o mundo é compreendido; os termos que usamos para descrever o mundo são artefatos sociais, resultantes dos processos de interação entre as pessoas, em um determinado momento histórico; aquilo que conta como conhecimento não depende da natureza da realidade ou de sua validade empírica, mas dos processos sociais através dos quais este ganha legitimidade; as descrições e explicações sobre o mundo, produzidas nos processos de intercâmbio social, constituem formas de ação social. A conjunção destas ênfases leva ao entendimento do construcionismo social como uma epistemologia ou metateoria, uma forma alternativa de se compreender os processos de produção de conhecimento.
Uma implicação dessa forma de entender o processo de produção de conhecimento é o questionamento da autoridade científica e a busca da democratização das práticas de pesquisa. Essas passam a ser pensadas como instrumento de sensibilização em relação ao outro, valorizando suas formas de saber e estimulando sua participação e envolvimento. Essa concepção de ciência ressalta o compromisso ético e político do construcionismo, mas traz vários desafios para sua tradução metodológica no cotidiano da pesquisa.
Buscando contribuir com a reflexão sobre as possibilidades de tal tradução, estruturamos este texto de forma a explicitar alguns desafios presentes na relação do pesquisador construcionista com os diferentes “outros” presentes ou presentificados na produção do conhecimento. Primeiramente, abordaremos a relação pesquisador-pesquisado, discutindo as possibilidades de representação do outro-participante na pesquisa construcionista social, a relação estabelecida pelo pesquisador com a questão da transformação social e, ainda, as implicações da ênfase construcionista social na linguagem na construção de um lugar mais ou menos visível para o outro/participante da pesquisa. Em seguida, abordaremos a relação pesquisador com os outros institucionalizados, discutindo como a relação com diversos outros (presentificados nas vozes dos pareceristas de agências de fomento, avaliadores, outros pesquisadores, etc.) delimita algumas possibilidades no delineamento e escrita das pesquisas construcionistas. Por fim, discutiremos a relação pesquisador-sociedade, refletindo sobre os desafios encontrados por pesquisadores construcionistas para se posicionarem de modo implicado com a sociedade e para também implicarem esta em suas pesquisas. Optamos por trabalhar de modo separado com as categorias “pesquisado”, “outros institucionalizados” e “sociedade”. Embora consideremos que tanto o “pesquisado” como os “outros institucionalizados” constroem e são construídos pela “sociedade”, o recurso analítico de tomá-los separadamente permite a investigação de diferentes processos que se fazem presentes nos vários fazeres do processo de pesquisa.
Esperamos, desse modo, contribuir com algumas reflexões sobre tensões e potencialidades de se desenvolver pesquisas a partir de uma epistemologia construcionista social, favorecendo o fortalecimento deste campo de investigação.
Iniciando a discussão sobre a relação eu-outro no contexto da pesquisa construcionista, analisaremos especificamente os impasses presentes na relação com o outro imediato, ou seja, com o participante da pesquisa. Apesar de privilegiarmos um enfoque epistemológico na análise da relação eu-outro, pela própria natureza do discurso construcionista, como veremos, estarão associadas questões de ordem metodológica, ética e política.
Nessa análise, serão recortados certos aspectos da visão construcionista de ciência e suas implicações. Considerando que cada um deles traz uma série de desafios para a relação eu-outro, os agrupamos em torno de três eixos analíticos: a visão de ciência como prática social, que questiona a possibilidade do conhecimento se constituir como uma representação da realidade; o objetivo da ciência se constituir como um meio de criação de novas realidades; e a ênfase na linguagem como forma privilegiada de compreender os processos de construção da realidade (Gergen, 1994/1997, 1999). A seguir, apresentaremos cada um desses três eixos e discutiremos algumas tensões para a relação pesquisador-pesquisado.
Entre as marcas características do movimento construcionista social está uma postura que questiona a possibilidade de representação da realidade por meio de um conhecimento universal. Segundo os autores construcionistas, não é possível ter uma descrição do real independente das condições sócio-históricas de produção dessa descrição, sendo todo conhecimento situado e relativo. Esse questionamento da representação aponta que nenhum objeto do mundo exige ser descrito e representado de determinada forma. Assim, é possível identificar como diferentes sentidos constroem certos objetos em acordo com as condições sócio-históricas dos sistemas de significação.
A análise sobre a possibilidade de representação e suas implicações traz questionamentos ainda mais significativos quando o que se estuda é outro ser humano. O que se questiona, então, não é apenas a possibilidade de representar, no sentido de apresentar novamente, de descrever e produzir uma imagem sobre o outro, mas também a possibilidade de representar no sentido de falar pelo outro, do pesquisador ser representante do pesquisado (Fine, Weis, Wesen e Wong, 2006). Assim, duas perguntas se tornam importantes: O sentido produzido não é sempre uma interpretação do pesquisador sobre a expressão do pesquisado? Qual o direito do pesquisador produzir tais sentidos sobre o pesquisado?
Frente a esse impasse, buscaram-se algumas alternativas que vão desde buscar formas possíveis de representação até assumir sua impossibilidade. De um lado, na expectativa de superarem o risco de uma representação usurpada, alguns autores buscaram ‘dar voz’ aos sujeitos e se interessaram pela ‘perspectiva’ e pelo ‘ponto de vista’ do participante (Santos, Nemes, Nasser, Basso e Paiva, 2005). Tratava-se de uma tentativa de promover o resgate do pesquisado e do respeito as suas palavras. Contudo, tanto o método, como os conteúdos selecionados, quanto a forma final assumida pelo conhecimento produzido eram desde o início já marcados pelas regras do fazer científico, das escolhas do pesquisador e, portanto, traziam vários obstáculos ao fim proposto.
Uma forma intermediária de lidar com a impasse da representação consistiu na tentativa de criar espaços dialógicos em que fosse possível uma maior participação dos pesquisados. Investigaria-se, assim, como pesquisador e pesquisado constroem sentidos por meio das interações das quais participam conjuntamente. Ela permitiria assim mostrar como o que surge, aparece e se descreve do pesquisado foi sustentado por determinadas escolhas e posturas do pesquisador ao longo do processo de pesquisa (Rasera e Japur, 2003). Assim, se não é possível representar e falar pelo pesquisado, é viável mostrar como sua descrição na pesquisa se construiu. Entretanto, talvez pelo recurso à dialogia se fazer comumente presente apenas no processo de análise, por vezes, essa estratégia nem sempre demonstra sua amplitude potencial nas pesquisas construcionistas.
No outro extremo da possibilidade de representação, mais próxima de uma postura que assume tal impossibilidade, promoveu-se uma reflexão sobre como o pesquisador contribui para a construção de determinados sentidos na pesquisa, estimulando e explorando, então, uma maior reflexividade. Assim, o pesquisador tomaria como objeto de análise sua própria posição social, seus compromissos, interesses, e as consequentes implicações para a produção do texto resultante da pesquisa. Apesar de encontramos certas marcas de reflexividade nas duas formas anteriores de representação, nesse extremo, e de maneira radical, o eu se torna o outro da pesquisa, e é tomado como um participante. Sua expressão mais clara na forma de autoetnografia ainda é pouco encontrada nas investigações construcionistas.
Essa discussão sobre a possibilidade de representação aponta como um questionamento de ordem epistemológica se combina com uma preocupação política sobre a relação pesquisador-pesquisado e o próprio sentido da ciência.
Questionando a possibilidade de uma descrição essencialista e a-histórica do mundo, os teóricos construcionistas enfatizaram a análise da natureza construída e construtora do conhecimento. Assim, associado ao resgate da história de construção dos conceitos e problemas estudados, estimulou-se uma análise das implicações sociais de certas formas de descrever o mundo.
Essa ênfase no entendimento do conhecimento como construtor da realidade incentivou alguns autores a proporem a pesquisa como uma forma de produzir mudança social, sendo esse um critério para a avaliação do conhecimento (McNamee e Hosking, 2012). Assim, os desenhos de pesquisa, bem como os métodos de coleta e análise do corpus passaram a ser pensados e problematizados a partir de sua capacidade de mobilizar pesquisadores, pesquisados e leitores das pesquisas, sendo a investigação entendida como ação (Gergen, 1999).
Visando esse fim, ampliou-se o uso de dispositivos grupais, metodologias apreciativas e estudos no cotidiano dos serviços entre pesquisadores construcionistas. Afastando-se da ideia do grupo como fonte de comparação entre opiniões diversas, esse recurso de pesquisa cria condições para a negociação e transformação dos sentidos. Nesses estudos, os participantes apresentam suas opiniões e questões, ouvem os outros participantes e por meio da facilitação do pesquisador, não só descrevem seus entendimentos, como também os transformam no próprio processo de pesquisa (Silva, 2014). Da mesma forma, pesquisas orientadas por metodologias apreciativas, interessadas nos recursos das pessoas e organizações para o enfrentamento dos problemas que vivem, realizam entrevistas não apenas como forma de conhecer a realidade, como também de sensibilizá-las e mobilizá-las para a mudança (Cooperrider e Whitney, 2005). Os estudos no cotidiano dos vários serviços oferecidos à população, sejam de saúde, sociais, educacionais, permitem a produção de conhecimentos relevantes para a própria reorganização do serviço, revisão de práticas e melhoria no atendimento, contribuindo para a mudança no contexto de vida dos pesquisados (Martins, 2013).
Quais as implicações desse entendimento da pesquisa como ação, especialmente para a relação pesquisador-pesquisado? Por um lado, ela permite uma relação mais próxima e dinâmica entre os envolvidos, permitindo interações mais complexas e potencialmente transformadoras para todos. Além disso, essa forma de entender a pesquisa pode gerar um ‘acréscimo ético’, ao possibilitar que o pesquisado saia do lugar de fornecedor de informações e se torne autor da própria mudança, transformando a pesquisa em uma prática de cooperação.
Por outro lado, quais as tensões e os limites presentes na construção da mudança? Considerando as diferentes inserções sociais entre pesquisadores e pesquisados, é preciso atentar para como cada um deles participa na decisão da direção da mudança. Por vezes, oficinas grupais e metodologias apreciativas, planejadas e estruturadas pelos pesquisadores, trazem uma tentativa de reflexão, sensibilização, e de promoção da mudança, nem sempre claramente antecipada pelos pesquisados. Da mesma forma, os impasses éticos próprios ao campo da intervenção psicossocial acabam sendo trazidos para o campo da pesquisa, complexificando ainda mais o processo de interação entre o pesquisador e os pesquisados. Além disso, esses tipos de estudo borram a diferença entre intervenção e pesquisa, transformando usuários/pacientes em pesquisados, e trazendo questões sobre a efetiva possibilidade de consentimento por parte deles. Todos esses desafios exigem uma postura de cuidado por parte dos pesquisadores para que a mudança promovida seja aquela desejada e buscada pelos pesquisados.
A análise dos processos de construção da realidade nas perspectivas construcionistas garantiu um espaço privilegiado para o estudo do funcionamento da linguagem e de seu caráter performático. Assim, diferentes propostas de análise do discurso proliferaram entre os pesquisadores que passaram a se interessar pela linguagem como um artefato social forjado historicamente e com capacidade de produzir determinados objetos, relacionamentos e realidades.
O campo da análise do discurso entre os autores construcionistas é permeado por diferentes propostas teórico-metodológicas, abrangendo desde estudos sobre posicionamento, práticas discursivas, repertórios interpretativos, até turnos conversacionais e marcadores linguísticos (Edley, 2001; Harré e van Langenhove, 1999; Potter e Wetherell, 1987; Spink, 1999/2001). Associado a essa diversidade, estão várias tensões relativas à definição do que vem a ser o sujeito, a linguagem e a relação desses com a sociedade.
A despeito dessas tensões, a ênfase compartilhada no estudo da linguagem trouxe implicações diretas para a relação com o participante de uma pesquisa, questionando a importância e o sentido de sua fala no processo de produção do conhecimento em Psicologia. A primeira dessas implicações é a ausência de ‘participantes de pesquisa’, pois muitos estudos voltados ao discurso se utilizam de vários tipos de documentos antigos e atuais, laudos profissionais, prontuários, jornais diários, revistas e peças publicitárias, os quais não envolvem a participação direta de informantes.
A segunda, é a perda da centralidade do ‘participante da pesquisa’. Em várias propostas construcionistas e discursivas a fala do outro é tomada em seu caráter situacional e relacional, sendo o interesse da pesquisa a construção do participante pela linguagem e os diferentes usos da linguagem pelo participante nas interações sociais nas quais ele está envolvido. Em alguns modelos, é possível identificar que a agência é transferida do participante que fala para a própria linguagem.
Uma terceira implicação é o deslocamento do foco no participante para os processos discursivos e conversacionais. Assim, frente ao redimensionamento do lugar do participante, o foco é deslocado para o modo de funcionamento da linguagem nas interações sociais, destacando-se aí seus aspectos constitutivos e performáticos. Mesmo os modelos de análise do discurso que concebem um sujeito ativo e usuário da linguagem acabam, por vezes, centrando-se de maneira tão importante sobre a mecânica da conversa que obscurece o lugar do sujeito que dela participa.
A quarta implicação se refere ao enfraquecimento da participação dos pesquisados. Em decorrência das implicações anteriores, a proposta de desenhos de pesquisa e metodologias mais participativos, nos quais os pesquisados têm um papel mais ativo no processo de interpretação, é, muitas vezes, colocada em segundo plano. O lugar múltiplo e transitório ocupado pelo participante traz questões sobre a possibilidade de respostas individuais que se mantêm ao longo do tempo e sobre o próprio domínio do participante sobre o que ele diz.
Essas implicações acabam por gerar um ‘apagamento do outro imediato’, o qual, quando existente, fica diluído nas várias interpretações produzidas pela análise do pesquisador. Assim, a almejada crítica ao sujeito autocontido (Sampson, 1993/2008) e a busca de sua ressocialização, ao serem combinadas com uma ênfase metodológica no estudo da linguagem abrem várias questões sobre quem são e como lidar com os ‘participantes da pesquisa ’.
Destacar a relação do pesquisador com “o outro institucionalizado” implica em reconhecer quais são os “outros” presentes e presentificados na produção do conhecimento em Psicologia, e como eles influenciam o desenvolvimento da pesquisa, impondo alguns limites e direções. No diálogo com estes “outros” os pesquisadores construcionistas se posicionam de modos diversos, antecipando questionamentos e críticas, fazendo concessões, travando debates, ousando mais ou menos na construção dos desenhos das pesquisas que desenvolvem. Analisar este tipo de diálogo permite reconhecer alguns desafios e impasses presentes no posicionamento do pesquisador construcionista e algumas negociações que forçam os limites dessa narrativa, implicando ora a exacerbação deste posicionamento epistemológico, ora seu silenciamento. Estes duas estratégias discursivas serão analisadas nesse momento do texto, apontando-se para suas possíveis consequências.
A escrita acadêmica se apresenta, tradicionalmente, a partir de uma lógica moderna, em que a linguagem é vista como um mero veículo para transmissão do conhecimento. Nesta lógica, o texto científico é organizado e estruturado em uma forma narrativa que organiza a pesquisa em uma sequencialidade lógica (introdução, objetivos, método, resultados e conclusões) pouco compatível com a forma como se dá o processo de pesquisa em uma epistemologia construcionista social. Para além da ordenação sequencial da narrativa, a forma de escrita traduz uma série de posicionamentos epistemológicos que, tradicionalmente, caracterizam a pesquisa realista: a distância entre sujeito-objeto do conhecimento, a neutralidade do pesquisador, a generalização do conhecimento obtido, entre outros. Esta tradução se dá, por exemplo, no uso da escrita impessoal e na omissão de posicionamentos ideológicos e políticos (Gergen, 1994/1997).
A análise feita por Gergen (1994/1997) acerca da retórica da ciência é ilustrativa de como a própria formatação da escrita acadêmica impõe limites para a produção da pesquisa a partir de outra epistemologia. Como nos manter fora dessa tradição, se esta tem sido o modelo hegemônico de se fazer ciência? Como ousar novos modos de escrita, se o “padrão” de narrativa dominante exige determinados formatos e enquadres? O quanto é possível ousar nos desenhos de investigação e formatos de escrita, de modo ainda a garantir sua legitimidade como conhecimento científico na comunidade ocidental contemporânea?
No processo de produção de conhecimento, somos constantemente avaliados por colegas das mais diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Em nossos diálogos com estes possíveis interlocutores (avaliadores, pareceristas, consultores), por vezes cria-se algumas estratégias discursivas que funcionam como forma de responder à esperada diferença com perspectivas hegemônicas em Psicologia. No entanto, algumas destas estratégias se mostram problemáticas quando consideradas em termos das políticas relacionais de produção de conhecimento. Na pesquisa como prática social, a linguagem é vista como ação no mundo, importando a maneira como se enuncia o objeto de investigação e os caminhos feitos para percorrer um objetivo.
Uma destas estratégias discursivas diz respeito à tentativa de marcar, bastante claramente, que se está fazendo ciência a partir de uma outra forma de inteligibilidade. Ressalta-se, por exemplo, que o construcionismo social vem mudar a “agenda de argumentação em ciência” (Shotter, 1997), propondo-se como uma perspectiva “não empiricista” de análise em ciências humanas e sociais. Assim, ganha espaço nos projetos ou artigos científicos longos momentos de explicação da epistemologia construcionista social, visando garantir que a produção não seja avaliada por deficiências que só se constituem como tais em uma lógica realista de ciência. Como situaram Mary Jane Spink e Vera Menegon (1999), muito do que pode ser visto como “horrores metodológicos” em uma epistemologia realista, em uma epistemologia construcionista são desenhos possíveis de investigação, ancorados em outras justificativas de sua exequibilidade, coerência e consistência.
No entanto, pelo menos duas implicações podem decorrer da exacerbação do posicionamento epistemológico construcionista. A primeira delas é que, na maior parte das vezes, a discussão da epistemologia construcionista social em si acaba ganhando mais destaque nos textos do que o próprio problema a ser pesquisado. Explicar e defender a lógica da pesquisa construcionista se mostra mais importante, em algumas situações, do que garantir a legitimidade do conhecimento produzido a partir dessa epistemologia e o reconhecimento de como esta forma de pesquisa contribui para processos de transformação social.
Uma segunda implicação refere-se aos riscos de se apresentar as proposições construcionistas em oposição às perspectivas realistas, ou seja, de se apresentar o movimento construcionista social pelo que ele “não é”, pelo que ele “não faz”. Esta retórica oposicionista ou, como dizem John Shotter e John Lannamann (2002), o aprisionamento do movimento construcionista no ritual de crítica e debate em ciência, cria limites claros para o seu desenvolvimento e desconfortos diversos, sobretudo na relação com nossos pares/colegas pesquisadores, os quais muito frequentemente, sentem que o construcionismo social é descrito como a melhor forma de produção do conhecimento. Como aponta Nikolas Rose (1996/2011), no campo específico da Psicologia, frequentemente o poder crítico das alegações sobre construção social deve-se ao ataque a “inimigos implícitos ou explícitos” (positivismo e empirismo). No entanto, para o autor,
Talvez a alegação de que “x não está na realidade, mas é construído socialmente” e a invocação do inimigo imaginário, o positivismo, passam agora de fato a ser um obstáculo à investigação crítica. Em domínios científicos menos atormentados pela ansiedade em relação ao seu próprio status e a sua respeitabilidade, filósofos e historiadores da ciência já aceitaram há muito tempo que a verdade científica é uma questão de construção. (1996/2011, pp. 77-78)
Críticas a essa retórica combativa de alguns textos construcionistas foram discutidas em diversos momentos, inclusive por autores do próprio campo, que apontaram a contradição presente nessa lógica (Gergen, 1994/1997; McNamee, 2014; Shotter e Lannamann, 2002). Para ilustrar esse tipo de posicionamento, citamos uma conversa desenvolvida com estudantes de pós-graduação, a partir do texto escrito por Gergen (1985). Em um dos momentos conclusivos do texto, o autor anuncia de modo entusiasmado as potencialidades que os questionamentos construcionistas sociais acerca da ciência psicológica trazem para o campo: “Poucos estão preparados para um deslocamento conceitual tão violento. Contudo, para os inovadores, aventureiros e as pessoas flexíveis, os horizontes são de fato emocionantes” (Gergen, 1985, p. 271, grifo nosso). Este tipo de afirmação foi lido, pelos estudantes, como um julgamento moral, em que os pesquisadores construcionistas apareceriam posicionados como melhores (por serem pessoas inovadoras, aventureiras e flexíveis) do que os outros em função de suas escolhas epistemológicas. Ao recortar esse fragmento, os estudantes intencionavam trazer para o debate o quanto essa retórica engrandecia os pesquisadores construcionistas sociais, consequentemente desvalorizando os assim não posicionados.
Concordamos com Sheila McNamee (2014), no entanto, que diferentes formas de se conceber a ciência podem ser compreendidas como diferentes “mundos de pesquisa”, os quais não devem ser avaliados como bons ou ruins em si mesmos. Nas palavras da autora:
O importante nesta conceituação de mundos de pesquisa é o entendimento de que cada um deles é construído. Isto é, cada um destes mundos de pesquisa é o produto de negociações histórica e comunitariamente situadas. Cada mundo de pesquisa é internamente coerente, ao mesmo tempo em que potencialmente (e com maior frequência) incoerente a partir do ponto de vista dos dois outros mundos de pesquisa. (...) Como podemos ver, é impossível, nesta orientação, esperar que pudesse haver uma maneira unificada de entender e conduzir pesquisa. Dentro de um mundo de pesquisa, os padrões de ação são sensíveis; tentar entender um mundo de pesquisa utilizando os critérios de avaliação do que “faz sentido” em mundo de pesquisa diferente rende, na melhor das hipóteses, um debate sobre o que é certo e errado e, na pior, a desqualificação de formas inteiras de prática. (2014, pp. 110-111, grifos no original)
No campo dos próprios estudos construcionistas, debates em torno da incompatibilidade de se marcar uma “identidade construcionista” têm aparecido, de modo a retomar algumas noções importantes para a concepção do construcionismo social como um “movimento em ciência” (Gergen, 1985) ou “uma “postura filosófica” (McNamee, 2010). Nesse sentido, algumas vezes, “afirmar-se construcionista” tem se caracterizado como um problema a ser enfrentado pelos autores do campo, em função dos sentidos que essa descrição tem carregado no cotidiano. Para Gergen (2011), faz-se necessário pensar os riscos contidos quando nos “afirmamos construcionistas”, se isto implicar a reificação do construcionismo como uma nova abordagem ou verdade em ciência. Para debater essa temática, o autor publicou um breve texto intitulado Why I am not a social constructionist, em que ressalta que a questão central do movimento construcionista social é epistemológica, e não teórica.
Outra estratégia discursiva também adotada em alguns textos acadêmicos diz respeito à perspectiva contrária, qual seja, a da adoção de certo silenciamento do posicionamento epistemológico construcionista social.
Uma forma de se operar esse silenciamento é a partir da manutenção dos modos mais amplamente compartilhados da escrita acadêmica. Assim, para garantir a participação na comunidade científica, os pesquisadores construcionistas trazem para o texto não só a organização formal e sequencial da narrativa acadêmica (Introdução, Objetivos, Método, Resultados e Conclusões), mas uma série de termos e linguagens de uso compartilhado na ciência moderna. Os verbos descrever, conhecer, identificar são geralmente trazidos como recurso para enunciar os objetivos da pesquisa, ainda que guardem maior relação com uma epistemologia realista, de busca por essências nos fenômenos pesquisados. Mesmo que amparados em conceitos úteis aos estudos construcionistas, identificar “discursos”, por exemplo, convidaria à mesma forma de reificação da linguagem que pesquisas que identificam representações sociais, comportamentos ou atitudes. Por outro lado, se estamos limitados pelas possibilidades dadas por nossa linguagem, como avançar na construção do conhecimento? Como legitimar novos modos de produção e escrita?
O predomínio de visões realistas na comunidade brasileira da Psicologia, por vezes, impacta a definição do projeto de pesquisa, resultando em desenhos menos abertos e participativos, reduzindo as potencialidades e criatividade de uma pesquisa inspirada pelo construcionismo social. Nesse sentido, muitas vezes os projetos de pesquisa apresentados avançam muito pouco em relação a alguns parâmetros já colocados nas discussões sobre pesquisa qualitativa em Psicologia. A especificidade das propostas construcionistas para o campo das pesquisas constitui, ainda, aspecto pouco explorado.
Outro modo de operar o silenciamento é reduzir a discussão epistemológica apenas às questões metodológicas, de maneira que todo o restante do texto passa a ser produzido em uma lógica realista. Com isso, não se reconhece todo o processo de pesquisa como prática social situada analisando-se criticamente como a própria pesquisa, a partir das escolhas que apresenta e dos textos com os quais dialoga, permite a construção do conhecimento em determinadas direções. Por exemplo, na construção da questão da pesquisa, a literatura muitas vezes é tratada como refletindo o “estado da arte”, de maneira a conceber o problema proposto como realidade, e não como uma construção social.
Concordamos com McNamee (2014) que a transposição dos pressupostos construcionistas sociais para compreensão das práticas de pesquisa não se definem pelo intuito de referendar novos métodos de investigação ou de se fazer ciência. Como afirma a autora, o reconhecimento da natureza constitutiva de toda investigação traz para os pesquisadores a necessidade de adotarem uma postura reflexiva sobre todo o processo de pesquisa, questionando como determinados tipos de conhecimento estão sendo produzidos e o que eles geram. Nas palavras de McNamee (2010), adotar uma epistemologia construcionista significa reconhecer que “o tópico de investigação é de fato criado nas questões perguntadas, no contexto selecionado, e em todas as escolhas feitas na pesquisa; um mundo ou realidade vem à existência no próprio processo de investigação” (p. 14).
No entanto, não operar estes “silenciamentos” no cotidiano, nos modos de se fazer e divulgar a pesquisa construcionista, pode se constituir em um desafio. Como encontrar espaço para divulgação de pesquisas que, ao reconhecerem a centralidade do processo de produção de sentidos, descrevem minuciosamente tais processos de construção? Análises “processuais” são mais difíceis de serem descritas em formato de artigo. Além disso, a escrita implicada, em primeira pessoa, como forma de dar visibilidade à participação do pesquisador no processo de produção de conhecimento ainda é pouco legitimada, pois vai de encontro a um dos organizadores centrais na escrita acadêmica tradicional: a ilusão da neutralidade do pesquisador na produção do conhecimento.
Um dos aspectos a ser considerado na discussão da relação eu – outro, dentro de uma inteligibilidade construcionista social, refere-se à compreensão do outro como sociedade. Assim, ao refletirmos sobre nossa relação com a sociedade, propomos a questão: como os pesquisadores construcionistas se implicam com a sociedade a qual pertencem?
Esta pergunta se faz importante uma vez que a compreensão de ciência compartilhada por nossa comunidade é a de que esta é uma prática social. Ao tomarmos a linguagem por suas características performáticas, entendemos que ao descrever um fenômeno ou evento estamos construindo formas de compreendê-lo e de nos relacionar com este. Nos diversos momentos da pesquisa, vamos construindo os modos de nos relacionar com os eventos. São destacadas aqui algumas situações: eleição do que será considerado como fenômeno/evento, escolha dos interlocutores com quem dialogamos na descrição e análise destes, construções advindas das diversas experiências dos pesquisadores, imersão destes em um contexto histórico e cultural que privilegia alguns fenômenos/eventos e legitimam alguns discursos para a compreensão destes. Com tudo isto, assumimos que não há neutralidade no fazer ciência (Corradi-Webster, 2014).
Adotando uma postura construcionista, não nos preocupamos em nos aproximar da verdade ou discutir a ontologia dos fenômenos/eventos. Ao invés disto, somos convidados a refletir sobre as implicações do conhecimento que estamos produzindo. Michel Foucault (1979/2004, pp. 1-14), discorrendo sobre o “poder”, aponta que este anda próximo da “verdade”, destacando que em nossas sociedades a “verdade” é modulada pelos discursos científicos e pelas instituições que os produzem. Fazer pesquisa é auxiliar a construir realidades sociais.
Dentre nossas tarefas como pesquisadores incluem-se a proposição e coordenação de projetos de pesquisa, a orientação de pós-graduandos no desenvolvimento destes projetos e a publicização dos resultados, seja através de artigos científicos, da apresentação em eventos, de palestras à comunidade ou de diálogos com a mídia. Assim, somos também representantes desta comunidade que trabalha na produção de “verdades”. Entretanto, assumimos a posição de não neutralidade, discordamos da objetividade da ciência e tomamos esta enquanto prática social. Isto nos coloca algumas questões que serão exemplificadas e discutidas aqui: Como nos implicar com questões sociais? Como temos incluído os diferentes interesses sociais em nossas pesquisas? Como temos convidado os participantes para ampliarem a colaboração na construção de sentidos?
Como discutido, ao considerar a relação do pesquisador com a sociedade, uma das preocupações de pesquisadores construcionistas refere-se ao risco de que demasiada atenção seja dada à linguagem e aos processos de comunicação, colocando muita atenção no processo de produção de sentidos e deixando de discutir aspectos interessantes relacionados ao conteúdo destes. Como descrever e chamar a atenção para os processos conversacionais e ao mesmo tempo estar atento ao conteúdo do que vem sendo discutido? Alguns tipos de análise alinhadas ao construcionismo, como a análise conversacional, convidam a um esmiuçamento das falas de modo que se corre o risco de que o conteúdo investigado seja deixado de lado. Muitas vezes também, ao escrevermos projetos e relatos de pesquisa, investimos bastante em selecionarmos palavras adequadas, verbos que não indiquem uma posição realista, para que a coerência epistemológica seja mantida. Assim, um dos desafios dos pesquisadores construcionistas é realizar sua análise de modo criterioso e coerente com sua epistemologia e ao mesmo tempo manter seu diálogo com questões sociais mais amplas.
A radicalização do foco na linguagem, por vezes, pode trazer impasses aos estudos voltados ao entendimento dos conteúdos, à denúncia de determinadas situações e à contribuição com determinadas políticas sociais. Com isto não sugerimos que se abandone o foco na linguagem, mas destacamos que algumas vezes se faz necessário que o conteúdo ganhe destaque, considerando posicionamentos políticos importantes no contexto do estudo. Pesquisa que buscava descrever os sentidos sobre a experiência de internação em comunidades terapêuticas (CT) produzidos com usuários de drogas priorizou o foco no conteúdo em detrimento do modo de funcionamento da linguagem, a fim de que os produtos do estudo fortalecessem as denúncias que vinham sendo feitas em relação ao tratamento em CTs por usuários, pela mídia, por conselhos de profissão e pelo Ministério Público (Melo, 2016). Assim, o estudo partiu de um posicionamento claro a favor de serviços comunitários e abertos, como preconizados pela Reforma Psiquiátrica e pelo modelo de redução de danos e levou em consideração o momento histórico em que o país se encontrava, em que estava sendo realizado grande investimento financeiro federal em instituições fechadas, com características totais e asilares. Ao colocar o foco no conteúdo, os pesquisadores buscavam explicitar práticas institucionais e, ao posicionar-se politicamente, buscavam legitimar as denúncias sobre o tratamento em CTs através da ciência.
Como pesquisadores, somos convidados a nos posicionar frente aos temas atuais e às políticas públicas, podendo, com nossos estudos, influenciá-los. Assim, um dos desafios dos pesquisadores construcionistas refere-se à ponderação do investimento que será realizado na análise dos processos microssociais de construção de sentidos, para que não se reduza o social do construcionismo àquele mais explícito na relação eu-outro, apagando a dimensão política da construção do conhecimento. No estudo descrito anteriormente, os pesquisadores precisaram lidar com o desafio de ponderar entre a extensão e aprofundamento na descrição e apresentação dos processos microssociais e a discussão do conteúdo construído nas entrevistas.
O compromisso político com as questões da atualidade é um dos desafios que acompanha muitos pesquisadores que compartilham da inteligibilidade construcionista social. O trabalho junto a populações que são marginalizadas pelo status quo é um dos modos que pesquisadores vêm encontrando para produzirem novas descrições a respeito destas pessoas e assim, contribuírem para a inclusão destas (Corradi-Webster, 2009; Rocha e Rasera, 2015). Pesquisa realizada com mulheres em tratamento para dependência de álcool observou que a literatura científica tende a descrevê-las a partir do problema, posicionando-as como fragilizadas e necessitando de muitos cuidados (Corradi-Webster, 2009). No contato com as entrevistadas, a pesquisadora solicitou que estas contassem suas histórias de vida e surpreendeu-se com narrativas de vida cheias de lutas, resistências, tristezas e vitórias. Considerando que dialogou com mulheres muito fortes, diferentes das descrições prevalentes na literatura, optou por produzir um trabalho em que estas fossem descritas pelas suas forças e potencialidades, com o objetivo de oferecer uma nova descrição sobre mulheres em tratamento para dependência de álcool para o conjunto de literatura na área. Destaca-se que este não era o foco inicial da pesquisa, mas a preocupação com as implicações desta na sociedade e o contato com as participantes instigaram a um posicionamento mais claro com a intenção de produzir novas descrições sobre estas mulheres.
A criação de espaços de diálogo sobre temáticas controversas e atuais também vem sendo recurso utilizado para a produção de novas vozes e reflexões sobre estas. Laura Souza e Murilo Moscheta (2014), inspirados pelo Projeto de Conversações Públicas, realizaram grupos com diferentes atores sociais para conversarem sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo. Dentre os participantes, haviam alguns que eram favoráveis a este e outros que eram contrários. Os grupos foram conduzidos de modo que os participantes tinham que se implicar na conversa, sem emitirem juízos de valor, posicionando-se a partir de suas histórias de vida. Com isto, pretendia-se que estes se sensibilizassem com as outras histórias e tolerassem os diferentes pontos de vista.
Em âmbito internacional, desenhos colaborativos de pesquisa, que visam legitimar e empoderar pessoas e grupos geralmente marginalizados e estigmatizados também têm sido descritos. Ottar Ness, Marit Borg, Randi Semb e Bengt Karlsson (2014) relatam resultados do emprego de práticas colaborativas em contextos de saúde mental e uso de substâncias, demonstrando como o trabalho do pesquisador pode ser desenvolvido em uma relação de parceria com os interesses da comunidade. Da mesma maneira, no campo dos estudos sobre práticas de recuperação em saúde mental, o grupo “Ouvidores de vozes” tem se posicionado como um movimento da sociedade civil que busca problematizar as práticas de cuidado em saúde mental, muitas vezes centradas unicamente na compreensão da experiência de ouvir vozes a partir do discurso do adoecimento mental. Ativamente engajados na produção de conhecimentos sobre a temática, “ouvidores de vozes” são posicionados como especialistas por experiência, e profissionais de saúde e pesquisadores como “especialistas por profissão”. De maneira articulada, estas pessoas trabalham, na prática de desenvolvimento de grupos e também na prática de pesquisa, conjuntamente visando a transformação das práticas de cuidado em saúde mental pautadas no discurso da “recuperação” (Corstens, Longden, McCarthy-Jones, Waddingham e Thomas, 2014).
Estes exemplos presentificam o que Gergen (2014) defende em relação à pesquisa orientada para o futuro. Para o autor, o mundo contemporâneo impõe diversos desafios às práticas de pesquisa, e convidam os pesquisadores a assumirem a pesquisa em seu potencial criativo e em seu potencial de forjar futuros possíveis. Apesar de tradicionalmente pensarmos o retorno de uma pesquisa como algo “a posteriori” – isto é, algo que poderá retornar como benefício à comunidade após sua conclusão e publicação – Gergen sugere que nos atentemos para os efeitos imediatos da pesquisa como ação colaborativa, inserida em determinados contextos e comprometida com a transformação do mundo em determinadas direções.
Foram destacados estudos que ilustram o compromisso de pesquisadores na direção de contribuir para as discussões presentes na atualidade, oferecendo novas versões sobre grupos marginalizados e ampliando as vozes e discursos ao redor de uma temática. Faz-se interessante que algumas questões estejam presentes na prática da pesquisa construcionista social, a fim de mobilizar os pesquisadores a se implicarem com questões sociais: Qual o impacto prático nas políticas públicas, no contexto e na vida das pessoas estudadas? Como utilizar estes estudos para aumentar o diálogo com a sociedade? A pesquisa positivista busca a neutralidade do pesquisador e cobra que este separe bem sua voz enquanto pesquisador e enquanto militante/cidadão/político. Devemos borrar estes limites? Se sim, como borrar os limites pesquisador/militante/cidadão/político e com isto buscar maiores transformações sociais?
Outro desafio enfrentado por pesquisadores construcionistas refere-se a maior participação da sociedade no delineamento das necessidades de pesquisa e nas escolhas realizadas nas diferentes fases do projeto, desde a seleção do tema a ser investigado até a análise e publicização das informações organizadas.
Os temas e necessidades de pesquisa são geralmente escolhidos pelos pesquisadores, sendo estes, indivíduos mergulhados em uma comunidade científica e em um contexto histórico e cultural que legitima alguns temas e necessidades em detrimento de outros (Corradi-Webster e Webster, 2010). O desafio do pesquisador construcionista é aproximar-se dos grupos sobre os quais pesquisa, para que estes sejam mais do que sujeitos participantes mas também parceiros do processo de construção do conhecimento científico, tornando-se “grupos com os quais pesquisa”. Para possibilitar esta proximidade, a ampliação das ações através de projetos de extensão vem sendo o recurso utilizado por muitos pesquisadores. Assim, o pesquisador se insere, junto a estudantes estagiários, no contexto estudado e procura estar próximo e atento às necessidades e desejos deste contexto (Guanaes-Lorenzi et al., 2012).
As técnicas utilizadas para a composição do corpus que será analisado também ampliam ou restringem a participação do outro/sociedade na pesquisa. Pesquisas que utilizam de entrevistas individuais como técnica de produção de informações possibilitam participação diferente daquela que propõe uma etnografia ou pesquisa-ação. Para o pesquisador construcionista, há o desafio de estudar seu tema considerando que mesmo que o corpus analisado seja as transcrições de entrevistas individuais, tanto este corpus como o pesquisador estão inseridos em um contexto de produção de sentidos onde não há neutralidade. Neste contexto, os diferentes encontros do pesquisador, suas conversas, histórias e leituras vão compondo o modo como compreende e constrói seu campo de pesquisa (Spink, 2003). Em relação à análise dos dados, pesquisadores construcionistas vêm relatando também certo incômodo com o modo solitário com que geralmente se dá esta produção de sentidos. Assim, buscam estratégias para envolver os participantes nesta análise, como a apresentação das categorias construídas na pré-análise aos entrevistandos, discutindo com eles os sentidos destas e ouvindo as sugestões para a construção das categorias finais (Fatureto, 2016).
Percebe-se então que pesquisadores que trabalham com a inteligibilidade construcionista social estão a todo tempo, apesar dos desafios, buscando dialogar com as pessoas/comunidade que estudam, para que estas também sejam um pouco pesquisadoras. Esta postura se distancia da tradição de ciência que é mais legitimada nos dias atuais e que busca através de objetividade, fidedignidade e neutralidade garantir a qualidade de suas pesquisas. Assim, lidamos também com o questionamento de alguns grupos, que estão mais acostumados com as técnicas tradicionais do fazer científico, sobre a legitimidade de nossas intervenções, já que não foram feitos estudos, como os do tipo ensaio clínico randomizado, para atestar a validade destas. Como dar legitimidade a práticas que se fundamentam em uma compreensão de ciência que não busca comprovar a efetividade destas? Neste sentido, faz-se a sugestão de borrar os limites entre intervenção e pesquisa, já que não se espera que o estudo apenas subsidie uma prática no futuro, mas que ele também traga transformações durante seu processo (Moscheta, Corradi-Webster e Souza, 2015). Neste sentido, Murilo Moscheta (2011) propôs que a responsividade poderia ser um recurso relacional para qualificar a assistência à saúde da população LGBT e conduziu encontros com uma equipe de saúde para conversar sobre a assistência a esta população. Estes encontros foram reflexivos e possibilitaram que a equipe falasse sobre suas experiências e construísse modos de trabalho. Assim, o autor não apenas “coletou” dados como também realizou uma intervenção junto àquele serviço.
A questão ética perpassa todas estas reflexões sobre a relação do pesquisador com a sociedade. O construcionismo é associado com uma posição relativista, definida por Lupicinio Iñiguez (2005, p. 2) como a ideia de que “a “Realidade” não existe independentemente do conhecimento que produzimos sobre ela ou com independência de quaisquer descrições que fazemos dela”. Ao discutir a postura relativista, Derek Edwards, Malcolm Ashmore e Jonathan Potter (1995) apontam que esta tem uma força moral e política muito forte quando comparada à realista, já que com ela o pesquisador não precisa considerar nenhuma descrição como sendo “a verdadeira”, possibilitando assim que ele se posicione e argumente de acordo com seus valores e ética. Sobre isto, pontuam Mary Jane Spink e Peter Spink:
Talvez seja este o maior desafio que enfrentamos: de aceitar que conhecimento não é um caminho intuitivo que avança por conta própria e de maneira inevitável, motivado pela curiosidade humana. Temas de investigação não fazem fila democrática para serem estudados. Somos nós que lhes damos vida, ao formularmos nossas perguntas. Ou seja, as escolhas que fazemos de temas e as questões que lhes dão forma são, em última instância, opções políticas. Em termos (pós)construcionistas, sabemos que, frequentemente, o que nos distingue como pesquisadores é menos a aceitação de algo como temporário e fruto de sua época, mas o questionamento sobre se isso é problemático ou não, de que maneira e por quê. (2014, p. 147-148)
Assim, a atenção à dimensão política da construção do conhecimento, a preocupação com o impacto deste para a inserção e fortalecimento das minorias e para a definição de políticas públicas, e as diferentes sugestões que vão sendo criadas para aumentar a colaboração dos participantes nos diferentes processos do fazer pesquisa, ilustram como pesquisadores construcionistas trazem as questões éticas para o centro de suas indagações.
Buscamos, neste texto, expor alguns desafios que o pesquisador construcionista enfrenta na relação com o outro ao longo do processo de pesquisa. Refletimos sobre a relação com o outro-participante, o outro-instituições e o outro-sociedade. Essa análise da participação dos outros na produção do conhecimento apontou fundamentalmente para as possibilidades e os limites do próprio ser pesquisador, explicitando o caráter eminentemente relacional do fazer científico.
Nossa tarefa não foi a de achar as respostas para os desafios apresentados mas de mostrá-los multiplicados nos fazeres nem sempre claramente reconhecidos do pesquisador, dando visibilidade e estimulando a reflexão sobre eles. Convidamos, então, a olhar como a transformação de tais desafios não se dá no campo exclusivamente teórico ou metodológico, mas se realiza, sobretudo, no conjunto de práticas sociais em que o pesquisador está inserido e nas várias tramas éticas e políticas que são produzidas.
Assim, partindo de uma postura crítica, que busca questionar o conhecimento tomado como óbvio, e relativista, que considera que a realidade é construída em nossas práticas discursivas, o pesquisador construcionista está a todo tempo se questionando sobre qual realidade vem auxiliando a construir com suas pesquisas.
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