Bacharelados Interdisciplinares da Universidade Federal da Bahia: considerações sobre a implantação do projeto

Interdisciplinary Bachelor Degrees in Federal University of Bahia: a review of the Project implementation

  • Monica Lima
  • Denise Coutinho
  • Julia Freitas
  • Ive Dahia
  • Olga Amazonas
  • Helenira Alencar
Discutimos âmbito conceitual, perspectiva operacional e eixo político-institucional da implantação dos Bacharelados Interdisciplinares (BI) na Universidade Federal da Bahia, entre 2009 e 2012, em relação à formação universitária vigente que até então conhecia apenas o modelo de curso profissionalizante disciplinar. Analisamos narrativas de agentes-chave do processo, sendo três docentes efetivos da UFBA, com função também administrativa, e uma estudante do BI, engajada no movimento estudantil. Concluímos que a perspectiva do BI tornar-se o primeiro ciclo da formação universitária na UFBA está por definir-se, sendo acompanhada por movimentos de apoio e resistência, que sugerem grandes desafios institucionais. Contudo, a experiência produziu vigorosa revisão de normas e regras há muito tempo naturalizadas e tem possibilitado reflexões sobre a concepção tradicional da formação universitária no Brasil.
    Palavras chave:
  • Bacharelados Interdisciplinares
  • Interdisciplinaridade
  • Universidade
  • Ensino Superior
We discuss conceptual framework, operational perspective and political-institutional features of the Interdisciplinary Bachelor Degree (BI) implementation in the Federal University of Bahia, between 2009 and 2012, as compared to existing university education models which, until then, only offered disciplinary professional courses. We analyze narratives of key agents of the process, three UFBA teachers who performed administrative functions, and a BI student, engaged in the student movement. We have concluded that the perspective for the BI to become the first cycle at UFBA is on hold; support and resistance movements have accompanied it, suggesting large institutional challenges. However, the experience has led to a vigorous revision of rules and regulations naturalized for a long time and enabled reflections on the traditional concept of university education in Brazil.
    Keywords:
  • Interdisciplinary Bachelor degree
  • Interdisciplinarity
  • University
  • Higher Education

1 Introdução1

No Brasil, assistimos a um complexo processo de expansão e democratização da educação superior. Programas elaborados para sua efetivação “sugerem em seus enunciados a democratização do nível superior de escolaridade como forma de promover inclusão e justiça social” (Arruda, 2011, p. 502). Cristina Carvalho (2014) afirma que tais iniciativas foram gestadas em favor das camadas sociais mais pobres, não só para permitir acesso, mas para oferecer aos estudantes condições efetivas de concluir com êxito o nível superior. No entanto, ela ressalta que os principais obstáculos a serem superados são as desigualdades sociais e regionais, de modo que se possa oferecer condições igualitárias a todos os brasileiros, a partir de valores democráticos como meritocracia e igualdade de oportunidades. Ainda que seja evidente a positividade do referido processo ao proporcionar acesso ao ensino superior a uma parcela da população antes excluída, não podemos negligenciar os efeitos da exponencial expansão de vagas no setor privado, fortalecido pelo Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), iniciativas do governo federal. Na contramão do fortalecimento das empresas privadas que mais e mais investem em educação, Erinaldo Carmo, José Chagas, Dalson Figueiredo-Filho, Enivaldo Rocha (2014) advertem sobre a mercantilização da educação, fenômeno hoje apontado e discutido em todo o mundo. Na mesma direção, Mariluce Bittar e Claudia Stapani-Ruas (2012) sinalizam que a privatização da educação superior brasileira tem como efeito colateral a formação de oligopólios, passando o conhecimento a ser tratado como mercadoria e sendo apropriado por empresas que visam prioritariamente ao lucro.

Para fazer frente a essa situação, o governo brasileiro lançou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo Decreto nº 6.096 de 24 de abril de 2007 (Brasil, 2007). Tal gesto teve como consequência a criação de 14 novas universidades públicas, entre 2003 e 2010. Foram aplicados recursos em 159 campi existentes, criados 115 novos campi até 2014. Apesar dos embates gerados, todas as 53 universidades existentes em 2009 aderiram ao Programa, ainda que com variações significativas em relação ao modo de operacionalizá-las.

Há poucos estudos sobre o impacto do REUNI (Brasil, 2007). Dentre aqueles que criticam o modelo, destacamos o de Licínio Lima, Mario Azevedo e Afranio Catani (2008) para quem o REUNI, materializado no projeto “Universidade Nova” gestado na UFBA, propõe “uma simples mudança da arquitetura curricular”. Os autores consideram que a “universidade humboldtiana não está esgotada no Brasil, não se podendo abortar um projeto de universidade que ainda está em gestação e, mesmo assim, tem gerado ciência e massa crítica para o País” (pp. 29-30). Na mesma direção, Deise Mancebo, Andrea Vale e Tania Martins (2015), criticam:

As ações do governo federal expandindo vagas, matrículas e cursos nas instituições federais de ensino superior, analisando particularmente o programa REUNI, que dá curso à expansão por meio de contratos de gestão, que certificam em massa, mas à custa da flexibilização e rebaixamento dos cursos e da intensificação do trabalho dos professores (p. 47).

De acordo com Ana Arruda (2011), a resistência ao REUNI tinha como foco questões como a meta imposta da relação aluno/professor (18/1) na graduação, tensionamentos entre elitização e massificação, excelência e democracia. Esses questionamentos concernentes aos vários tipos de mudanças gerados pelo REUNI, por si só, justificam novas investigações. No caso deste trabalho, buscamos, por meio de uma análise micropolítica, examinar alguns efeitos das transformações provocadas por esse processo de reforma universitária no cotidiano das pessoas envolvidas na tarefa de implantar uma nova arquitetura curricular numa universidade tradicional, a Universidade Federal da Bahia (UFBA). A criação de uma nova modalidade de graduação, denominada Bacharelado Interdisciplinar (BI), foi a principal estratégia da UFBA para cumprir as metas do REUNI. No entanto, a coexistência do BI com os tradicionais cursos de formação profissional tem gerado efeitos em vários âmbitos, principalmente pela necessária e difícil articulação com os demais cursos, já consolidados em perspectiva profissional e disciplinar de formação.

O projeto de reestruturação da UFBA era uma proposta radical, pois previa mudança geral que transformaria os cursos existentes, implantando o modelo de ciclos. A criação de uma unidade universitária, o Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC), para abrigar os BIs foi a solução de compromisso encontrada em função de resistências provenientes de muitas unidades e diferentes agentes, tanto servidores quanto estudantes. Deve-se dizer que não se trata de proposta nova, sendo antes o resultado da fusão de modelos de formação consolidados no mundo, antecipada no Brasil pela iniciativa pioneira de Anísio Teixeira e abortada pelo Golpe Militar de 1964 (Almeida-Filho & Coutinho, 2011).

Neste artigo discutimos aspectos relativos à implantação do BI-UFBA, considerando a coexistência de duas modalidades contraditórias de formação universitária e os efeitos daí decorrentes. Examinamos relatos das experiências de quatro agentes do processo, sendo três docentes efetivos da UFBA e uma estudante do BI de Humanidades.

Organizamos o texto em quatro partes. Primeiro, apresentamos a estrutura do BI, uma experiência singular e recente no Brasil. Destacamos, em seguida, pressupostos teórico-metodológicos. No terceiro tópico, procedemos à análise temática das experiências concretas dos envolvidos, contemplando: âmbito conceitual, perspectiva operacional e eixo político-institucional. Concluímos que a perspectiva do BI tornar-se o primeiro ciclo da formação universitária na UFBA está por definir-se, mas tem gerado vigorosa revisão de normas e regras naturalizadas.

2 Sobre o BI

Entre 2006 e 2009, a UFBA concebeu e implantou parcialmente o modelo de ciclos, com base em uma nova modalidade de curso de graduação no Brasil. O objetivo geral do novo modelo foi:

Agregar formação geral, humanística, científica e artística ao aprofundamento num dado campo do saber, promovendo o desenvolvimento de competências e habilidades que possibilitarão ao egresso a aquisição de ferramentas cognitivas que conferem autonomia para a aprendizagem ao longo da vida bem como uma inserção mais plena na vida social em todas as suas dimensões. Também prevê fundamentos conceituais e metodológicos para a formação profissional em cursos de graduação que o adotem como primeiro ciclo (Universidade Federal da Bahia, 2008, p. 12).

O IHAC oferta quatro opções de BI, curso superior pleno e interdisciplinar: Humanidades, Artes, Ciência e Tecnologia, e Saúde. Com duração mínima de três anos (2.400h/aula), pode cumprir função preparatória para formação profissional ou para a pós-graduação. A estrutura curricular é composta por duas etapas de formação: Geral e Específica. Cada etapa tem 1.200 horas/aula. A Formação Geral tem como objetivo garantir competências e habilidades para uma compreensão crítica da realidade natural, social e cultural (Universidade Federal da Bahia, 2008). Na Formação Específica, o graduando cumpre a metade restante, seja na Grande Área escolhida ou numa Área de Concentração, destinada ao aprofundamento em determinado campo de saberes e práticas, ofertada por unidade acadêmica de um dos cursos profissionalizantes ou do próprio IHAC. Tem função propedêutica geral de uma formação profissional, mas não constitui mera antecipação de disciplinas profissionalizantes. A modalidade amplia possibilidades de escolha profissional durante o curso e não antes, como ocorre nos exames seletivos para carreiras profissionais. Reage também ao modelo tradicional brasileiro de currículos engessados e ausência de articulação e exposição a outros campos do saber. O desenho curricular dos BIs segue os seguintes princípios: flexibilidade na matriz curricular; autonomia do estudante; articulação entre campos e interdisciplinaridade (Universidade Federal da Bahia, 2008).

3 Considerações teórico-metodológicas

O modelo teórico-metodológico aqui escolhido é o Sistema de Signos, Significados e Práticas - S/ssp (Almeida-Filho, Corin & Bibeau, 1998; Bibeau, 1993) constituído de três níveis para a abordagem de um problema de investigação: factual, narrativo e interpretativo (Bibeau, 1993). Inicialmente, organizamos percepções sobre o processo de implantação, visto que vivenciamos em graus variados, docentes e discentes, a expansão da UFBA: nível factual. Para atingir o nível narrativo, conversamos com professores, gestores e discentes, capturando relatos espontâneos e entrevistados agentes representativos do processo. Realizamos entrevistas pessoais semi-estruturadas com três professores que exerceram funções de gestão no IHAC (Entrevistados -1, -2 e -3) e com uma estudante, membro do movimento estudantil (Entrevistada -4), que cursou o BI Humanidades. O roteiro de entrevista continha perguntas amplas, especificadas em função do vínculo (docente ou discente) e do cargo (representante estudantil, dirigente, coordenador de curso e coordenador acadêmico), sem identificação nominal. As entrevistas variaram de 45 a 120 minutos, foram transcritas na íntegra, decupadas, após leitura e discussão sobre diferenças e semelhanças entre pontos de vista, organizadas por unidades de análise, segundo as temáticas: 1) âmbito conceitual, que buscou caracterizar o BI em relação ao modelo de curso profissionalizante; 2) perspectiva operacional, para explorar desafios e dificuldades atribuídos ao processo; 3) eixo político-institucional, abordando conflitos e disputas entre gestores das duas modalidades.

O nível interpretativo foi orientado por noções de Pierre Bourdieu e Michel Foucault. Bourdieu (1997/2004) propõe a noção de campo para descrever um universo intermediário entre o mundo social e uma produção, com leis e normas mais ou menos específicas, a depender do seu nível de autonomia. Todo campo é espaço de constituição de uma forma específica de capital simbólico. Os agentes determinam a estrutura do campo de acordo com o capital acumulado e sua composição. Aqueles com maior capital têm mais liberdade para conservar ou transformar as leis do campo, segundo seus interesses. Os sujeitos entrevistados estavam diretamente implicados com a implementação dos BIs, na condição de professores responsáveis pela operacionalização do modelo, em diálogo com outras unidades acadêmicas.

A noção de habitus refere-se ao conjunto de características intrínsecas aos agentes de determinado campo e resulta da internalização dos sistemas de percepção e ação sociais nos corpos. Assim, o campo estrutura o habitus como produto da encarnação da necessidade interna ao campo (Bourdieu & Wacquant, 2005).

Para analisar o campo acadêmico, buscamos compreender como se dá a construção de um saber, como emerge um discurso e como este adquire, em seu campo, e em dado momento, estatuto de verdade. Um discurso, tal como um saber, terá determinadas condições de emergência, sustentação, de modo a atingir ou não seus objetivos. Discursos são práticas que geram efeitos no campo em que se inserem e, quando adquirem estatuto de verdade, podem constituir-se como saber, sendo controlados por agentes do campo (Foucault, 1969/2008). Ideias como Verdade e Saber estão diretamente associadas à ideia de Poder.

Discursos são controlados por meio de coerções ou atos autorizativos, mecanismos implícitos ou explícitos de controle dos sujeitos (Foucault, 1976/2012). Discursos, portanto, fazem parte dos jogos de poder. Dotados de materialidade, arrebatam, atingem corpos, emergem e se desfazem, deslizam, afetam, enfim, geram poder e saber, conforme seus contextos de produção, nos quais operam outros campos de saber e suas verdades. O poder é microfísico, é de todos, não pertencendo a ninguém em particular.

Para compreender o processo de implantação dos BIs foi necessário compreender como relações de poder estiveram presentes nas narrativas sobre decisões e resistências ao projeto, na medida em que resistências fazem parte do poder e afetam tomadas de decisão: “Que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (Foucault, 1976/2012, p. 108).

Foucault (1971/1996) não indica metodologia a ser seguida, mas apresenta precauções de método para realizar uma análise dos discursos. É preciso considerar que o discurso irrompe ocasionalmente sem origem ou autoria determinada; é fragmentado, descontínuo, não surge para cumprir um interesse ou projeto específico. Antes, emerge num campo simbólico, por meio de empiricidades locais, de modo que é preciso considerar o discurso não apenas como produção simbólica ou imaginária, mas em sua materialidade real. Na atualidade de uma emergência discursiva, quando discursos não foram ainda encadeados pelo controle social, tudo pode parecer confuso e frágil. Entretanto, discursos tem poder de dominação social, sustentam práticas sociais e aglutinam seguidores. Eis, portanto, a função da instituição social: instância controladora desses discursos, que são também práticas.

Segundo Foucault, nossa sociedade vive numa logofobia e, por isso, tenta controlar discursos nela deflagrados, usando complexos sistemas para conjurar poderes e desejos. Foucault (1971/1996, p. 9), assinala que, se quisermos “conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” – devemos analisá-lo em suas condições, seu jogo e seus efeitos. Porém é preciso, antes, “questionar nossa vontade de verdade, restituir ao discurso seu caráter de acontecimento, suspender, enfim, a soberania do significante” (1971/1996, p. 51). Essas são, em suma, precauções de método por meio das quais Foucault trata de desvelar procedimentos de controle discursivo liberados e legitimados pelas instituições como tendo origem, encadeamento próprio, continuidade, verdade. Esses sistemas de controle podem agir por procedimentos de exclusão (interdição; separação e rejeição; separação do verdadeiro do falso, para em seguida excluir o último por sua desclassificação); de controle interno (controla o acaso e o acontecimento do discurso, subsumindo-o à ordenação, classificação e distribuição) e por procedimentos de restrição social (seleção dos aptos, a partir de uma apropriação do discurso por um grupo social determinado).

Bourdieu e Foucault tratam da dimensão política do saber no nível local e valorizam a dimensão prática da ação discursiva. Dois níveis de análise nos darão suporte: um que focaliza o lugar das forças sociais que valorizam o sujeito como agente de um discurso e aquele que investiga condições do discurso como controle institucional.

4 Resultados e discussão

4.1 Âmbito conceitual do projeto

Uma das diferenças entre BI e cursos profissionalizantes é o caráter explicitamente interdisciplinar do primeiro. Apesar do “interdisciplinar” que o qualifica, o BI tem proposta transdisciplinar de construção de sujeitos e de conhecimentos, pois sua arquitetura prevê como necessário o trânsito sistematizado dos estudantes por diferentes unidades acadêmicas, em função do grande número de Componentes Curriculares (CCs) optativos e livres da matriz curricular, e forte indução de escolhas de trajetos singulares, por oposição à matriz fechada dos cursos tradicionais.

A interdisciplinaridade parte de uma problemática comum que opera em plataforma de trabalho conjunto, quando disciplinas dialogam entre si, em fecunda e mútua aprendizagem. A transdisciplinaridade se caracteriza por trânsito de sujeitos que atravessam, de modo sistemático campos disciplinares, a fim de examinar determinado objeto complexo de modo integral. Trata-se de uma “prática transitiva” de sujeitos, a fim de construir um novo olhar e, eventualmente, novos campos de intervenção, com possibilidade de formular um objeto complexo por diferentes perspectivas que dialogam entre si de modo transversal (Almeida-Filho, 2005).

Essa produção de novos sujeitos “em trânsito”, por espaços não-verticalizados, sem mediação da especialidade, com horizontalidade nas relações, construindo suas práticas no cotidiano, é característica da arquitetura curricular dos BIs.

Veremos, mediante análise discursiva das falas emblemáticas, como os princípios de controle discursivo do antigo modelo institucional aparecem estremecidos com a emergência de um novo modelo.

O currículo do BI de 30 matérias só tem oito obrigatórias. Nos outros cursos, de 40 matérias tem 35 obrigatórias. É o oposto, uma mudança quase radical de formação acadêmica. No BI o estudante tem base firme, as obrigatórias, então ele tem onde se apoiar, mas o resto do tempo, tem que escolher. A educação não se faz só pelo conhecimento, pelo cognitivo. Educação é formação de habilidades e atitudes. Então, trabalhamos no sentido de formar uma atitude de busca de escolha, autonomia. Isso a universidade não entende (Entrevistado N. 1, entrevista pessoal, 1 de maio de 2015).2

Ele [BI] não é apenas um primeiro ciclo de outro momento. Por quê? Porque você tem estudantes que querem, por exemplo, Medicina, em [BI] Saúde. Mas tem alunos de Artes que querem transitar, ter uma formação mais próxima daquilo que gosta de fazer e depois cair no mundo do trabalho. Você quer fazer outras coisas! Isso é possível. Você tem três anos. E outros alunos, tem também acontecido em número menor, entraram na Universidade, fizeram esses três anos e já entraram na pós-graduação (Entrevistado N. 2, entrevista pessoal, 28 de março de 2013).

Alguns princípios agem controlando, internamente às instâncias sociais, discursos ali proferidos, de modo a limitá-los por um jogo de regras (Foucault, 1971/1996). Foucault sublinha dois princípios: da disciplina e do comentário. O primeiro assegura que o que pode ser dito como verdadeiro e aceito dentro de um universo discursivo precisa dirigir-se a um plano de objetos determinados, de modo que no interior de seus limites cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas. Uma ciência específica (curso, matéria, disciplina) dita regras e rituais que devem cumprir aqueles que queiram autorização para explorar seus domínios. No contexto em análise, o engessamento da grade curricular nos cursos profissionalizantes cumpre a função de impedir que outros saberes sejam acessados. Estudantes dos BIs, que transitam mais livremente por diferentes saberes e áreas devem cumprir disciplinas nas unidades que abrigam cursos profissionalizantes com estrutura disciplinar e linear. Nesses momentos, o projeto interdisciplinar e flexível é confrontado ao projeto fixo e disciplinar dos demais cursos, fragilizando o princípio da disciplina.

Esse novo modelo também enfraquece o princípio do comentário, que age assegurando, no interior de um grupo, a perpetuação de um único repertório discursivo. O cruzamento discursivo pode, pelo choque de contradições de discursos diversos, invalidar, desclassificar ou destituir um discurso que o princípio do comentário tentava preservar, possibilitando a emergência do novo.

Quando você forma um estudante com visão ampla, sensível, crítica, porque a gente [BI] foca muito isso; e quando você chega naquele ponto do curso, já tem uma experiência, uma maturidade maior, visão crítica, então pode absorver melhor os conhecimentos do curso seguinte. A gente consegue fazer isso mais, quando tem essa passagem (Entrevistada N. 4, entrevista pessoal, 24 de outubro de 2013).

Tal discurso parece evidenciar a possibilidade crítica presente no saber instituinte. A crítica é fundamental para superar ideologias e ações doutrinárias naquele universo epistemológico. A crítica coloca em crise uma verdade instituída, quando aponta condições que a legitimaram, relativizando-a. Foucault (1966/1999) considera que o par ideologia-crítica tenciona fortemente o saber instituído. Sem a crítica, o saber torna-se doutrina. Para ele, o que diferencia o controle científico (disciplinar) de um discurso do controle doutrinário é que o primeiro tem por função gerar novos enunciados, decorrendo que tal regime de inovação o coloca em condição de reatualização permanente das regras que o definem. Se a doutrina exige seguidores, a ciência deve exigir aprendizes críticos. Os primeiros assistem, aprendem e seguem; os segundos assistem, interrompem, transgridem, transformam, mudam os caminhos.

Em sentido contrário, Ana Guerra e Elisa Zwick (2013) discutem a perspectiva interdisciplinar que buscava-se construir no BI em Ciência e Economia da Universidade Federal de Alfenas, com terminalidades profissionalizantes. Ressaltam que:

Os depoimentos dos discentes acerca da passividade das suas ações em sala de aula chegam a emocionar [...] os alunos acostumaram a se calar por não haver condições de participarem dialogicamente em uma aula, não pelos aspectos didáticos e metodológicos dos professores, mas pela estrutura organizacional empregada pela Universidade (p. 115).

Eles atribuem essa passividade ao fato de haver turmas de 120 a 130 estudantes, o que compromete a formação crítica e quase inviabiliza a participação discente nas discussões. Além disso, “o debate acerca da proposta interdisciplinar é ainda pouco conhecido no meio acadêmico, além da grande maioria dos docentes ser formada essencialmente na perspectiva disciplinar” (Guerra & Zwick, 2013, p. 116).

No BI da UFBA, notamos que alguns estudantes se frustram com relação à expectativa de crescer na carreira profissional, após a conclusão do BI, mesmo sendo explicitado desde o início que o BI não é curso profissionalizante.

Nossos projetos pedagógicos (...) deixam claro que não somos cursos profissionalizantes. E o aluno sabe, mas ele entra em crise quando sai daqui e encontra um emprego, como se ele não fosse qualificado, como se não tivesse um diploma. Então, a gente tem alguns relatos de alunos com dificuldades profissionais no trabalho e que esperavam crescer profissionalmente e nem sempre isso acontece. Eu vejo isso como uma questão dos BIs da UFBA, sobretudo olhando para os outros implantados no país. Cerca de metade tem caráter de algum modo profissionalizante ou de inserção no mercado. (...) Então, são Bacharelados que, a despeito de serem interdisciplinares, tem foco em algumas áreas, o que permite ao egresso um posicionamento profissional diferente daquele de um curso genérico, como é o nosso caso (Entrevistado N. 3, entrevista pessoal, 31 de outubro de 2013).

Tal discurso parece apontar para um tipo de controle que, segundo Foucault (1971/1996), conforma sociedades disciplinares. Ocorre por um sistema de apropriação dos discursos com restrição de sujeitos que podem participar. Certos grupos, pelo princípio da disciplina, forjam pensamentos que delimitam territórios epistemológicos. Do interior da disciplina são ditadas regras de produção de verdades e programas de formação dos sujeitos aptos a explorar territórios delimitados. A profissionalização do conhecimento é exemplo disso. As ciências se prontificam a formar mão de obra para explorar com exclusividade determinado campo, submetendo seus aprendizes a rígido e específico programa visando à eficácia operatória. A capacitação específica tem sido fator de restrição social, assegurando apenas aos seus autorização para explorar um território. Bourdieu (1997/2004) dirá que a profissionalização do saber tenta assegurar para determinados grupos o monopólio da competência científica, uma vez que é no interior de universos eruditos que agentes do campo dispõem, pela profissão, de instrumentos poderosos de universalização.

Os significantes ‘geral’, ‘generalista’ e ‘genérico’, no contexto político da implantação dos BI, demarcam posições de confronto. A proposta político-pedagógica do BI define “formação geral” no sentido equivalente a General Education dos modelos curriculares internacionais, como introdução à cultura contemporânea e à vida universitária. Defensores de uma perspectiva pragmática postulam a ênfase profissionalizante para o primeiro ciclo e preferem o adjetivo “generalizante”. Os opositores políticos do projeto insistiam na designação de “curso genérico” em tom ambíguo, quase pejorativo, por analogia aos “remédios genéricos”, na época criticados como baratos, de menor eficácia e pouco confiáveis. O Entrevistado-3 preocupa-se com a inserção do egresso do BI no mundo do trabalho, indicando que o caráter amplo do curso não facilita “um posicionamento profissional” (Entrevistado N. 3, entrevista pessoal, 31 de outubro de 2013), porém aplica o termo “genérico” (e não “generalista”) para justificar seu argumento. Contudo, não podemos esquecer que, como qualquer outra produção discursiva, essa é uma posição interessada e pode indicar uma fratura na concepção do projeto, na medida em que sinaliza para uma profissionalização “desejável”, ainda que contraditória com o projeto do BI.

Seja por conta da mobilidade que permite: ir diretamente para o mundo do trabalho; seguir para um curso profissionalizante; ou tentar seleção para a pós-graduação; seja pelos CCs interdisciplinares do IHAC, alguns agentes acreditam que o BI proporciona necessária reflexão acerca da cultura e da formação universitária, possibilitando o desenvolvimento da formação crítica. Percebemos como a concepção e a efetivação do BI representam forte mudança no campo, fazendo coexistir dois habitus universitários distintos em uma mesma instituição e, por vezes, na compreensão de um mesmo agente: um caracterizado pela autonomia dos estudantes, que recebem formação geral não profissionalizante, guiada pelos eixos da transdisciplinaridade e mobilidade; e outro, representado pelo modelo vigente e hegemônico, caracterizado pela heteronomia: CCs obrigatórios, formação fragmentada, disciplinar e fechada em suas formações e institutos.

No primeiro caso, a UFBA incentiva a formação de “sujeitos anfíbios” ou “operadores transdisciplinares do conhecimento”, pessoas que desenvolvem sensibilidade e articulação entre saberes, para o manejo da complexidade dos fenômenos (Almeida-Filho, 2005, p. 44). No segundo caso, a UFBA continua investindo na formação de profissionais disciplinados para o mercado. Estas funções são incompatíveis? São necessárias? Respondem a que demandas da sociedade, da produção do saber? Quais suas relações com o tripé ensino, pesquisa, extensão? São perguntas que precisam ser enfrentadas.

4.2 Perspectiva operacional

Há matérias obrigatórias comuns aos quatro BIs, como “Estudos sobre a Contemporaneidade” e outras específicas de área. A carga horária de CCs obrigatórios é bem menor que as de um curso profissionalizante. Assim, generosa parcela do BI é formada por CCs optativos ou livres, podendo ser escolhidos de qualquer curso ofertado na UFBA ou em outra IES, nacional ou estrangeira, com a qual a UFBA mantenha convênio. Outra característica é o conhecimento induzido às outras grandes áreas. Cada estudante de BI deve escolher pelo menos dois CCs de outra área e outros dois de uma terceira área, ampliando seu trânsito pelas culturas universitárias: Ciências, Artes e Humanidades, sendo que Saúde é considerada cultura científica.

Diferenças entre BI e curso profissionalizante giram também em torno de dificuldades de operacionalização, uma vez que a UFBA não se preparou para receber a nova modalidade. O sistema existente, montado para operar segundo a lógica de matrizes curriculares disciplinares, com maioria de CCs obrigatórios e pré-fixados, conservou-se o mesmo. Então, ao acompanhar processos de formandos da primeira turma do BI de Humanidades, vimos quão difícil foi, para os envolvidos no processo de registro acadêmico, fazer com que o sistema operacionalizasse a integração de diferentes matrizes curriculares.

Não entendem [a própria UFBA] o nosso currículo, o nosso currículo vem assim “componente livre”. Componente livre todo mundo faz o que deseja, né? Aí alguém estava analisando o currículo: o aluno não pode se formar, porque (...) no BI tem seis tipos de optativa, né? Tem a optativa da grande área, tem a cultura complementar de um tipo, a cultura complementar de outro tipo. Aí o sujeito entra na área de concentração, tem as obrigatórias da área de concentração, tem as optativas da área de concentração e tem componente livre. (...) Humanidades tem cinco matérias e o aluno tem que escolher três, ainda tem isso. Aí elas [funcionárias e assessoras da PROGRAD] conferem e contam, “fez uma optativa de cada tipo e está faltando um componente livre”. Eu digo “não está faltando um componente livre. Está sobrando optativa da Grande Área” (Entrevistado N. 1, entrevista pessoal, 01 de maio de 2013).

Diferenças significativas entre BI e curso profissionalizante, ainda que no âmbito operacional, remetem ao plano conceitual. A primeira dificuldade para o sistema acadêmico tradicional foi compreender que campo de conhecimento é diferente de área definida por critérios gerenciais. A segunda dificuldade foi fazer com que o sistema identificasse essa qualidade para que a integralização curricular fosse realizada com agilidade e eficiência. O maior complicador parece ter sido a dificuldade de compreensão que implicava acolher outra lógica epistêmica. Mesmo assessores da administração central demonstraram dificuldades dessa ordem, pois como classificar uma proposta que trabalha na construção da singularização de percursos formativos e na construção da autonomia dos sujeitos?

Após tensionamentos, o Artigo 4º da Resolução 06/2011 do Conselho Acadêmico de Ensino e o Regulamento do Ensino de Graduação da UFBA tiveram de ser atualizados (Universidade Federal da Bahia, 2005/2009), porque estavam baseados na formação tradicionalmente oferecida. O primeiro previa que um estudante do BI só poderia migrar para um curso profissionalizante de mesma área. Assim, por exemplo, a Psicologia, classificada como curso de Humanidades na UFBA, não aceitava estudantes que tivessem concluído o BI de Saúde, ainda que em muitas instituições de ensino superior a Psicologia esteja na área da Saúde, sendo uma das 14 profissões reconhecidas pelo Ministério da Saúde. A referida Resolução foi derrubada, após intensa pressão e debates, abrindo a possibilidade de maior mobilidade entre área de conhecimentos diferentes, mas deixando a cargo da Unidade a decisão de receber ou não o egresso do BI proveniente de outra área.

4.3 Eixo Político-institucional

De acordo com a proposta inicial, a entrada pelo BI seria a única maneira de ingressar na universidade, o que implicaria reforma curricular radical em todos os cursos tradicionais da Universidade, a serem transformados em cursos de segundo ciclo. O projeto previa dois ciclos de formação na graduação, sendo o primeiro interdisciplinar e o segundo profissionalizante. Esta entrada única pelo BI não foi adotada na UFBA, o que dificultou sobremaneira a operacionalização prevista. Além disso, a entrada única tenderia a minimizar o efeito da falta de “posicionamento profissional” (Entrevistado N. 3, entrevista pessoal, 31 de outubro de 2013) do egresso do BI, uma vez que todos (e não alguns) teriam formação transdisciplinar prévia e geral e, caso desejassem, formação complementar profissionalmente orientada em segundo ou terceiro ciclo.

No processo de implantação, o BI sofreu muita resistência proveniente da tradição dominante na universidade, que se caracteriza por baixíssimas mobilidade e autonomia (Zorzo, Pinho & Oliveira, 2003). Deste modo, o projeto implantado passou a ofertar duas modalidades de graduação: BI (graduação interdisciplinar) e graduação profissionalizante, com terminalidades próprias. Contudo, o estudante do BI conservava a possibilidade de acrescentar a seu curso uma formação profissionalizante. Para garantir tal passagem, o Conselho Universitário aprovou reserva de, no mínimo, 20% das vagas de todos os cursos para egressos do BI.

O projeto inicial (...) não pôde ser aplicado da forma perfeita. Muito por causa dessa resistência interna da UFBA, né? A UFBA, querendo ou não, era muito conservadora, muito elitista, foi contra o projeto e, no final das contas, o projeto aprovado foi muito aquém da proposta inicial. Se lutou tanto contra e, ao final, foi muito pior. Se a gente tivesse, por exemplo, aderido à proposta inicial, teria avançado na perspectiva acadêmica, da profissionalização também, teríamos diversas questões muito mais avançadas (Entrevistada N. 4, entrevista pessoal, 24 de outubro de 2013).

O apego ao que está estabelecido, o apego a uma tradição, ao que é mais cômodo, não arriscar mudar. (...) Aí, houve muito debate, não aceitaram, a UFBA chegou a uma solução mista: o aluno pode entrar no curso tradicional, se ele supostamente sabe o que quer, se acha que sabe o que quer. “Eu quero fazer Economia”, vai e entra em Economia. O que acontece é que chega lá e descobre que não é nada disso, que ele foi influenciado de alguma forma a fazer Economia, chega lá e larga. O índice de evasão nas universidades é muito alto. E aí, ingressando no BI, ele tem tempo de escolher. Essa é a principal característica da proposta da graduação em dois ciclos (Entrevistado N. 1, entrevista pessoal, 1 de maio de 2013).

O controle das sociedades dos discursos se dá, segundo Foucault (1971/1996), pela restrição dos sujeitos aos discursos por elas apropriados. Podemos observar que no modelo tradicional da universidade pública brasileira atuam duas formas dessa restrição, uma disciplinar, que impede o livre trânsito dos estudantes pelos aparelhos educacionais. A outra é uma restrição de base socioeconômica. A universidade pública foi historicamente no Brasil um fator de diferenciação socioeconômica. Apenas a elite tinha acesso ao nível superior do ensino. Baseado na dicotomia meritocracia/igualdade de oportunidade, a universidade brasileira apenas colocava no pódio do mercado, já selecionados pelo sistema vestibular (provas para o ingresso na universidade), aqueles competidores com boas condições socioeducacionais, isto é, a elite brasileira. O sistema de cotas, a expansão universitária e o combate ao controle disciplinar especificista do saber, fragiliza esse controle, ao democratizar o ensino universitário.

Relatos das experiências diretas dos entrevistados em relação ao cotidiano do BI nos faz inferir que a proposta em dois ciclos, além de proporcionar uma formação transdisciplinar, posicionamento crítico e construção de autonomia, auxilia escolha madura e consciente da profissão.

Alguns certamente entram querendo mais alguma coisa. E outros entram sem saber direito o que realmente querem. (...) Todas essas possibilidades só fazem sentido e farão sentido se houver transformação de pessoas. Transformar, ou seja, não importa a finalidade, não importa se ele vai para outro curso, se ele fez uma Área de Concentração e vai trabalhar ou vai para a pós. Mas é a transformação de pessoas pensando o mundo em que estão, pensando suas escolhas, pensando sua inserção na sociedade (Entrevistado N. 2, entrevista pessoal, 28 de março de 2013).

Uma das críticas que a gente já ouviu também: “ah, fazer BI é perda de tempo! O aluno fica muito mais tempo na universidade”. Eu particularmente acho bom isso. Às vezes, o aluno entra aqui com 18 anos e sai muito novinho para uma profissão. Muitas vezes nem sai, fica titubeando, sem saber para onde vai, fica estudando mais para entrar no mercado de trabalho (Entrevistado N. 1, entrevista pessoal, 1 de maio de 2013).

Entre possibilidades de pensar essa etapa do jogo institucional (ter dois ciclos ou não), há a versão de que esse processo foi a conciliação possível entre discursos tradicionais e progressistas. Houve, também, sobretudo no início, a interpretação de que o projeto REUNI-UFBA havia sido imposto de modo autoritário, embora tenham ocorrido discussões diversas e sessões específicas no Conselho Universitário da UFBA para tratar do projeto.

Muita gente achava que se a proposta vinha do reitor devia ser atacada, porque se desconfiava do Ministério da Educação. Quer dizer, a proposta amplia as vagas e o MEC não dá a verba, aquela história. E não é sem fundamento, uma coisa até procedente, essa desconfiança. Mas se a gente não ousa, não consegue fazer as coisas. (...). E uma reação absurda de toda a Universidade contra nós. Então, o tempo inteiro, em vez de ser feito um trabalho de articulação, de conquista, de conhecimento dos outros organismos da Universidade acerca dessa nova proposta, ficamos nos debatendo contra as maiores adversidades (Entrevistado N. 1, entrevista pessoal, 01 de maio de 2013).

Registraram-se ânimos divergentes sobre a proposta dos dois ciclos, acusações à Reitoria, desconfiança e descrédito na relação com o Ministério da Educação sobre cumprimento de acordos institucionais, pouca compreensão do projeto, tensionamentos os mais diversos. Havia também um significativo grupo de docentes e demais servidores apostando na mudança.

Olha, não há uma reação agressiva dizendo que são contra, nunca senti isso. As pessoas até consideram que é interessante a proposta de uma formação interdisciplinar antes da escolha profissional, mas entre a emissão de opinião de uma proposta e a concretização de apoio a ela, existe uma distância muito grande (Entrevistado N.1, entrevista pessoal, 1 de maio de 2013).

Eu vejo uma cisão na UFBA; e o contato com as unidades, acho que isso não deve acontecer. A universidade não está empenhada, não tem isso como projeto. (Entrevistado N.3, entrevista pessoal, 31 de outubro de 2013).

E era isso que o movimento estudantil da época não teve a capacidade, ou mesmo que tivesse a capacidade de avaliar, deixou de lado por uma questão política daquela época. Inclusive, eu brinco, porque eu acho que, naquele espaço-tempo, o movimento estudantil foi o mais conservador, quis manter as estruturas anteriores, não quis avançar. (Entrevistada N. 4, entrevista pessoal, 24 de outubro de 2013).

Como podemos observar, os debates sobre a mudança se deram de forma inflamada, uma vez que ameaçavam instituir novas verdades e outros modos de operar. O poder do discurso subversivo ameaça o conforto das estruturas dadas e por isso sofre resistências e ataques. Foucault (1971/1996) considera que a sociedade responde, tentando conjurar o poder, através de sistemas de exclusão e interdição.

Se transformamos a afirmação da Entrevistada 4 – “o projeto que foi aprovado foi um projeto muito aquém do que era a proposta inicial” –, em pergunta: a disputa entre o modelo tradicional e o do BI resultou em um “projeto inferior ao previsto inicialmente”? (Entrevistada N. 4, entrevista pessoal, 24 de outubro de 2013), somente o tempo permitirá resposta mais conclusiva. A reforma “parcial” da UFBA, na medida em que delimitou dois tipos opostos de formação, abriu espaço para comparações valorativas, conflitos e discriminação entre os estudantes:

Há uma percepção coletiva, generalizada da parte dos nossos alunos tanto os que estão no IHAC, quanto aqueles que passam para o curso tradicional, de que são discriminados, são considerados diferenciadamente. É claro que entre nós, professores, a gente fica muito animado quando ouve repercussões positivas, em relação aos nossos bons alunos, quando eles vão para um curso profissionalizante e são reconhecidos como bons alunos, ficamos muito felizes, a gente repercute aqui dentro, divulga. Mas a gente não dá a mesma atenção para os relatos, muito mais numerosos, de discriminação ou de ponto de vista negativo acerca dos nossos alunos. (Entrevistado N. 3, entrevista pessoal, 31 de outubro de 2013).

Esse novo modelo, fortemente caracterizado por indefinições com relação à operacionalização, provocava sentimentos de insegurança e dúvidas nos estudantes que não vislumbravam perspectivas concretas do que poderia ocorrer no percurso, pois muitos aspectos do curso iam sendo definidos à medida que eram vivenciados.

Então o que acontece em termos de funcionamento, no dia a dia, no cotidiano, é que os nossos Colegiados [dos quatro BIs] se ressentem muito do apoio dos Departamentos [de outras unidades acadêmicas] em termos de oferta de vaga. Cada matrícula é uma batalha, uma coisa exaustiva de você tentar convencer os departamentos a conceder algumas vagas. Temos 4.000 alunos hoje [2013]. Quatro mil: se cada um faz cinco matérias, são 20 mil vagas que tem que combinar. A maioria no noturno, que não existem, porque a maioria das unidades não tem curso noturno (Entrevistado N. 1, entrevista pessoal, 1 de maio de 2013).

A Universidade continua funcionando principalmente de acordo com as características dos cursos tradicionais. Os estudantes matriculam-se via web e só eventualmente precisam comparecer na matrícula presencial para adicionar um CC. Quando se trata do BI, grande parte dos CCs é disponibilizada depois que os estudantes do curso profissionalizante se matriculam. Portanto, a maior parte dos alunos do BI precisa comparecer à segunda etapa da matrícula (presencial) para conseguir CCs. O sistema retém as vagas do primeiro semestre para os calouros, que também são as mais adequadas para estudantes do BI. Quando não são preenchidas as vagas em primeira chamada, abrem-se segunda e terceira chamada dos aprovados para os cursos profissionalizantes; por último, vagas remanescentes são ofertadas para os BIs.

5 Considerações finais

Dois aspectos marcantes diferenciam o BI do curso profissionalizante tradicional: o caráter explicitamente inter-transdisciplinar e a formação universitária ampla, não profissionalizante. O BI foi criado justamente para superar as fragilidades disciplinares dos cursos de graduação, e ainda que o projeto conheça percalços, podemos considerá-lo um caminho alternativo para ultrapassar o padrão consolidado e anacrônico de formação universitária linear, disciplinar e limitada à profissionalização. Não chama apenas a atenção a dificuldade de “definir” o que é interdisciplinaridade e, sim, a dificuldade de fazer operar um sistema que possibilita algo tão desejado, possível de ser oferecido em grande escala e compatível com a maioria das instituições do mundo. Esta dificuldade não é intrínseca à modalidade BI, nem um mero fechamento ideológico dos que estão envolvidos diretamente na tarefa de implantação do projeto. É, antes, uma dificuldade geral de aplicação de um construto teórico em contextos concretos de trabalho. Trata-se de uma “tarefa ingrata e difícil”, porque a “palavra tem sido usada, abusada e banalizada”, ou seja, “a palavra [interdisciplinaridade] está gasta” (Pombo, 2003, p. 1). O BI responde a essa demanda pedagógica de interdisciplinaridade na educação superior.

Desde Hilton Japiassu (1976) a interdisciplinaridade é convocada como resposta a uma crise paradigmática do conhecimento científico, justificada pelo fato de os conhecimentos especializados não mais darem conta de problemas de ordem complexa. A práxis interdisciplinar, longe de ser mais um território compartimentador de determinado tipo de conhecimento, coloca-se atualmente como exigência metodológica da própria ciência, em todas suas instâncias de produção e veiculação. Podemos perceber, também, uma busca incessante dos agentes para viabilizar um projeto que sofre e sofreu boicotes generalizados. Não está explicito, entre as críticas, por exemplo, o contraponto que o BI faz, ou poderia fazer, à formação profissional disciplinar. Mas vale a pena explicitar essa possiblidade. Certamente, o BI sinaliza que é possível uma formação “inter-transdisciplinar”. Obstáculos são próprios de qualquer tarefa transformadora, mas nada justifica pensar que são intransponíveis. É preciso ultrapassar a ideia de que a disciplinarização e a profissionalização tragam solução para a desigualdade social, comum no espaço universitário tradicional, principalmente quando enraizado precocemente entre estudantes, como se pudéssemos resolver tal problema apenas formando gente para o mercado. Ao entrar na universidade, antes de pedir um trabalho, jovens e, atualmente, os mais velhos, os pobres, os negros, os indígenas, os quilombolas etc., pedem reconhecimento e dignidade. Carvalho (2014, p. 243) critica análises macropolíticas educacionais que relacionam diferenças abissais de escolaridade existentes no Brasil apenas a efeitos do mundo capitalista, como algo inerente e, portanto, natural e intransponível. Estejamos atentos a advertências como esta. Podemos rejeitar uma modalidade de formação universitária que ousa ser inter-transdisciplinar, por não se apresentar diretamente profissionalizante? É preciso avaliar os desdobramentos dessa nova modalidade a médio e a longo prazos e, portanto, ocuparmo-nos com o quê, de fato, interessa: como oferecer o tripé ensino, pesquisa e extensão, respeitando o que há de melhor na tradição humboltiana, e que, segundo Lima et al. (2008), ilumina e torna produtiva a universidade brasileira?

Segundo Foucault (1971/1996), o aprisionamento discursivo se dá pelo controle institucional. Compreendemos, assim, que a emancipação dos sujeitos pode se dar por meio de uma mudança institucional. A implantação do BI busca exatamente isso, de modo que podemos ver repercussões dessa mudança nos discursos emergentes que tratam de seu modelo operacional. Os desafios operacionais enfrentados na implantação do BI estão sustentados por concepções de formação universitária diferentes, geradas por movimentos de resistência e disputa de poder. Por outro lado, tais desafios geram conflitos político-acadêmicos, sinalizando dificuldades e conflitos não meramente burocráticos, mas oportunidades de revisar normas e regras operacionalizadas a partir de certa tradição universitária. Além disso, permitem ultrapassar a própria proposta no desafio de concretizá-la. O processo de disciplinarização que a UFBA vem sofrendo ao longo da sua existência, paradoxalmente, levou-a a transformar-se por dentro. A excessiva disciplinarização forçou o diálogo interdisciplinar e resultou num necessário, ainda que não previsto, trânsito sistematizado de sujeitos no universo conflitivo de interesses entre sujeitos produtores do saber-poder.

O poder dissemina-se por todas as partes, constituindo uma rede complexa de relações que incluem, invariavelmente, resistências. Práticas contestadoras podem modificar estruturas tradicionais, mas o preço a pagar é sempre alto. Para Foucault, a liberdade tem relação agonística com o poder. A perspectiva transdisciplinar, posta em ação no BI, produz novas relações de poder e resistências e implica a construção de novas subjetividades que podem experimentar a liberdade compartilhada, no encontro com o outro, como queria Foucault.

A liberdade de ação da maior parte dos agentes da UFBA parece ter sido utilizada no sentido de conservar as leis, o que contribuiu para que seu capital continuasse sendo valorizado, de acordo com Bourdieu. O BI, que se propunha a ser uma formação geral em relação a um segundo ciclo profissionalizante, passou a ter também outras finalidades, por exemplo, propiciar um processo de decisão da escolha profissional ou da continuação dos estudos em pós-graduação. “Então, acho que esse é um desafio, um desafio da gestão universitária. E uma escolha realmente política. A universidade vai aderir a esse projeto de dois ciclos? Ou vai ficar como está, uma coisa paralela?” (Entrevistado N. 2, entrevista pessoal, 28 de março de 2013). Como esta indagação, concluímos que a perspectiva do BI tornar-se o primeiro ciclo da formação universitária na UFBA está longe de poder ser considerada consolidada, mas tem gerado vigorosa revisão de normas e de regras há muito naturalizadas.

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