Do trágico à clínica do possível no cuidado de usuários de drogas

From Tragical to the Possible Clinical

  • Loiva Maria De Boni Santos
  • Simone Mainieri Paulon
O artigo relata uma pesquisa-intervenção realizada em município do sul do Brasil com usuários de álcool e outras drogas tidos como “não aderentes” aos tratamentos ofertados na rede de atenção psicossocial da região. Sustentando uma abordagem inclusiva e anti-proibicionista, o estudo cartografou caminhos tecidos pelos usuários de drogas no território, a fim de identificar quais “nós” da rede (rituais, estratégias, serviços, afetos) apontam uma Clínica do Possível pautada no cuidado e no vínculo. Problematiza a polarização do debate das políticas sobre drogas, apostando na Redução de Danos como diretriz de um cuidado na perspectiva da superação dos ressentimentos comumente impregnados às práticas e discursos dessa área. Entre os resultados, a experimentação de uma produção coletiva que emerge na criação de um rap em meio ao processo investigativo, “dá um outro tom” às vivências e posições dos usuários, apontando à criação de novos territórios existenciais como alternativa às políticas públicas compromissadas com a produção de saúde.
    Palavras chave:
  • Política Pública
  • Redução de Danos
  • Clínica Ampliada
  • Drogas
The article describes an intervention research conducted in a city of southern Brazil with users of alcohol and other drugs considered “nonadherent” to the treatment offered in psychosocial care network in the region. Sustaining an inclusive approach and anti-prohibitionist, the study identify the paths taken by drug users in the territory in order to identify “nodes” of the network (rituals, strategies, services, affections). This can indicate a possible Care Clinic based on affection and bond. It is discussed the polarization of the political debate about drugs. It was made a bet on Harm Reduction as a guideline care from the perspective of overcoming the resentment commonly impregnated in the practices and discourses from the area. Among the results was possible to identify the collective production of a rap music in the middle of the investigative process, this “gives another tone” to the experiences and positions of the patients, pointing to the creation of new existential territories as an alternative to public policies committed with health promotion.
    Keywords:
  • Public Politc
  • Harm Reduction
  • Social Clinic
  • Drugs

1 Introdução

As discussões sobre drogas têm sido atravessadas por posições polarizadas que compõem um campo beligerante, de um lado insistindo em provar os malefícios de determinadas drogas em detrimento de outras – ao apontar como única possibilidade de intervenção o isolamento -; de outro, defendendo o uso de substâncias – justificado no direito à liberdade. Tal polarização resulta na formação de grupos identitários, posições ideológicas que parecem conceber o tecido social fragmentado. Posturas intolerantes e de difícil comunicação, reforçam assim, a lógica individualista e competitiva impressa pelo projeto capitalista neoliberal, dirimindo possibilidades dialógicas, de consenso do espaço público e de construção coletiva. Entre as consequências, o que se coloca no cenário em discussão é uma política permeada por ressentimentos, entendidos aqui numa perspectiva filosófica do trágico, como a causa que todo o sofredor procura para o seu sofrimento, isto é, um culpado para a sua dor, alguém em quem ele possa descarregar os seus afetos, pois tem a fantasia de que é isso o que vai lhe proporcionar alívio (Nietzsche, 1887/2009).

Pensar a questão das drogas hoje implica inevitavelmente problematizar a antinomia presente neste tema, na tentativa de superação das cisões que marcam posições entre o proibicionismo e liberalização das drogas na busca da composição, da articulação de saberes e das experiências de forma a produzir conhecimentos que possam contribuir na construção de uma política pública efetiva no que se refere ao cuidado desses usuários. Faz-se necessário pensar dispositivos que deem conta do cuidado, garantindo acessibilidade e inclusão destes que têm sido colocados à margem da sociedade pelo estigma que carregam em função da ilicitude e moralismos de que se reveste o uso de drogas ainda em nossos dias.

Nesse sentido, a temática das drogas carrega consigo certo estranhamento que permite tomá-la como analisadora de nossa sociedade, no sentido institucionalista do termo, ou seja, a forma como dois discursos contrapostos atravessam práticas cotidianas, polarizando as falas, as intervenções junto às populações e cristalizando posturas de cuidado muito divergentes, torna-se expressiva da moral vigente em nossa cultura. Tais atitudes perpetuam a mesma lógica criminalizante, tão combatida pelos mais liberais, eternizando a dicotomia entre o que é verdadeiro ou falso, o que está ao lado do “bem” ou do “mal. Cronificando, enfim, valores morais impregnados no tecido social.

A superação dessa dicotomia deverá considerar que a Redução de Danos, tomada aqui como diretriz do cuidado, permite e até demanda abertura ao diálogo entre diferentes paradigmas, pois se entende que a RD não é incompatível com estratégias elaboradas por perspectivas diversas de produção de saúde, entre elas a abstinência, conforme refere Alan Marlat (1998/1999). Nessa perspectiva todos os caminhos são possíveis, trata-se de uma clínica artesanal (Lancetti, 2007) centrada no sujeito, que passa a ser corresponsável pelo cuidado de si e de sua comunidade.

O caminhar da pesquisa que aqui se relata apontou, entre outras possibilidades de criação de cuidado não restrita aos equipamentos de saúde, a produção coletiva e espontânea de um rap ritmando as vivências e posições de usuários que poderia pautar a construção de uma política sobre drogas na perspectiva da Redução de Danos. A tessitura de novos territórios existenciais que aludam à saúde compreendida como expansão de vida é uma possível saída à política do ressentimento, a que o percurso deste estudo remete e sobre o qual passamos a discorrer.

2 Cartografando o Território: um percurso de movimentos e metamorfoses

Eu sou do hip, sou do hip hop. Quebrando paradigmas, é o rap que transforma. E ele é artístico e social, É pedagógico, fundamental. Ele dá a letra, aponta alternativa. Incansavelmente é cidadania. (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012) 1

A pesquisa em foco nesse relato lança mão da cartografia como metodologia, por entendê-la como construção coerente ao percurso de investigação, que auxilia no acompanhamento do traçado ou das linhas que compõem o plano de intervenção. Oferece, para tanto, dados de realidade que sustentam a produção, tanto de novos entendimentos acerca do tema estudado, quanto da própria realidade em que se intervém. Neste percurso específico que aqui relatamos, o Hip Hop emergiu como dispositivo expressivo do cotidiano dos usuários de drogas, apontando alternativas, demarcando espaços de produção de saúde potencializadores de vida. Ao quebrar paradigmas, transformar pela arte, a produção do coletivo de usuários envolvidos no presente estudo levantou aspectos significativos para se pensar uma política para o cuidado de pessoas que usam drogas que possa fazer frente ao modelo que, via de regra, criminaliza, segrega e exclui.

A proposta, portanto, é de que a intervenção junto às pessoas que usam drogas se utilize de ferramentas que ajudem a superar o olhar encharcado de moralismos e preconceitos que hegemonicamente as acompanham diminuindo o estigma que recai sobre tais usuários, para que se avance em uma perspectiva de trabalho orientada pela diretriz da Clínica Ampliada. Esse tipo de intervenção implica sair do foco do sintoma em si e da doença, sugerindo ações que coloquem o sujeito como protagonista no processo de produção de sua saúde através da criação de linhas de fuga que produzam novos territórios existenciais. “Ele dá a letra, aponta alternativas... incansavelmente é cidadania”. (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012)

Nasce, portanto, junto com a equipe e tem como objetivo principal cartografar os caminhos tecidos pelos usuários de drogas, em seus territórios identificando e analisando quais os ‘nós’ da rede (rituais, estratégias, serviços, afetos...) que produzem saúde e apontam para o que chamamos aqui de uma Clínica do Possível, pautadas pela singularidade e respeito às diferenças. Teve como aspiração visibilizar novas práticas no cuidado de pessoas que usam drogas, focadas na produção de saúde como potência de vida, identificando quais os possíveis espaços de produção de saúde podem ser encontrados no cotidiano do território dos usuários de droga e que nos apontam caminhos para uma intervenção baseada no vínculo, no cuidado, na expansão da vida e no protagonismo de cada cidadão.

Nesse percurso investigativo, a cartografia faz uma aposta nas possibilidades criativas do próprio território e sujeitos diretamente envolvidos no estudo (campo de intervenção), estimulando os processos de autoanálise e reflexão junto aos diferentes atores que o compõem (incluindo-se, aí também a nós mesmas como pesquisadoras implicadas). Tal diretriz metodológica permite agenciar forças para romper com as estruturas cristalizadas e estigmatizantes que impedem movimentos de mudança, trazendo elementos que nos auxiliem a pensar uma política sobre drogas pautada pela afirmação das singularidades e respeitos às diferenças. (Passos e Barros, 2009; Romagnoli e Paulon, 2014).

A aproximação com o campo de pesquisa se deu no final de 2010, através do pedido da assistente social e da agente de saúde de uma Unidade de Saúde de um bairro nos arredores da cidade de Caxias do Sul que, por conhecerem a perspectiva de trabalho de nosso grupo de pesquisa com essa temática, solicitaram ajuda. As profissionais de saúde da região buscavam alternativa para o enfrentamento ao limite, até então, proposto pela rede de atenção local: um atendimento ainda baseado única e exclusivamente na internação e adesão ao tratamento oferecido no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS2). Percebiam que alguns usuários não se “adequavam” a esta proposta e, por isto mesmo, tinham muita dificuldade em pedir ajuda, ficando, por conta dos familiares, as soluções de cuidado e tratamento que, via de regra, seguem a mesma lógica discursiva instituída na rede: solicitar a internação, na maioria das vezes, de forma compulsória.

Lançamos mão da cartografia como metodologia, por entendê-la como construção coerente ao percurso da pesquisa e da demanda do campo que a gerou: auxiliar no acompanhamento do traçado ou das linhas de força que compunham o plano de intervenção, oferecendo dados da realidade dos sujeitos tidos como não-aderentes e da rede de saúde local que auxiliassem na produção/intervenção/criação, numa construção coletiva com pesquisadores, usuários, trabalhadores de saúde e estudantes de psicologia de uma faculdade local. Contou ainda, com a ajuda de um jovem da comunidade, que, devido a sua inserção no meio dos jovens usuários de drogas do território e pelo seu perfil de Redutor de Danos, ocupou o papel de mediador e articulador dos nossos encontros3.

A pesquisa-intervenção foi proposta a um grupo de usuários “não aderentes” ao tratamento oferecido pela rede de saúde local. Contou com 18 participantes ao todo, sendo que 9 desses usuários permaneceram ao longo das 3 etapas. Realizou-se ao longo de 8 meses, em 26 encontros ocorridos no ano de 2011 e início de 2012. Foram utilizados como instrumentos de intervenção a fotografia (pin-hole4), o hip-hop e rodas de conversa.

Os encontros aconteciam semanalmente, aos sábados à tarde, com os usuários de drogas do bairro. Eram jovens que em sua maioria não frequentavam o CAPS e não tinham qualquer acesso às Políticas Públicas por não se sentirem acolhidos por elas. Não importava pra nós se eram usuários tidos como “leves” ou “pesados” ou se eram drogas lícitas ou ilícitas, nosso critério era: a) pessoas que usavam drogas, e b) seus desejos de estarem nos espaços que propúnhamos. Acreditávamos que essa aproximação poderia nos apontar caminhos que, como afirmam Eduardo Passos e Regina Barros (2009), permitem reverter o método tradicional de pesquisa, visto que não propõe um caminhar para alcançar metas pré-estabelecidas, mas um experimentar efeitos do processo do pesquisar sobre o campo de pesquisa que, neste caso, incluía todo o cenário que compõe a política de drogas, os próprios pesquisadores e a equipe de trabalho da Unidade Básica de Saúde.

Esta foi nossa aposta ao pesquisar-intervir no cuidado de pessoas que usam drogas: aprender sobre modos de atenção, sem qualquer espécie de cobrança seja da abstinência ou da aderência à oferta de tratamento. Significava, na perspectiva da Redução de Danos adotada, buscar formas de acolhimento que superem o controle, baseadas no compromisso ético, que corresponsabilizem a todos pelo cuidado com investimento na autonomia dos sujeitos.

Inicialmente a proposta de intervenção surgiu do desejo de um usuário: ao ser indagado pela assistente social sobre possíveis projetos de vida, ele expressou o desejo de fazer um vídeo sobre sua vida de drogadição. À medida que íamos adentrando no campo e nos aproximando dos usuários através de conversas informais, nos lugares onde eles tinham o costume de se reunir propusemos a realização da oficina de fotografia na lata (pin-hole). Baseado no relato do usuário sobre o desejo de produzir um vídeo, pensou-se a possibilidade de nos aproximarmos deles através da produção de imagens fotográficas, acreditando que poderia ser uma ferramenta potente.

Em meio ao decurso, suas falas nas rodas de conversa trazem o hip hop como uma forma de expressão do cotidiano de suas vidas...

Seja bem vindo a nova era da Favela. Rap Nacional é o que corre no meu sangue. A paz está distante mas eu prossigo no [bairro]. (...) O hip hop tem muito prá ensinar grafitar, dançar, cantar, riscar, estudar (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

A pesquisa-intervenção numa perspectiva cartográfica coloca a todo o momento a própria intervenção em análise, mostrando aqui a inseparabilidade entre o conhecer e o fazer, entre o pesquisar e o intervir, num processo que se dá pelo mergulho na experiência, que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de coemergência, designado como plano da experiência. (Passos e Barros, 2009).

Muitas vezes nos víamos diante do inusitado, das limitações da nossa própria intervenção, quando o grupo-alvo da intervenção não aparecia para as atividades que programávamos juntos, ou quando não aderiram à proposta da oficina de fotografia na lata. Isso colocava-nos em xeque-mate. O que fazer? Por que eles não estavam aderindo? Onde estava o desejo? Que desejo era esse? De quem era esse desejo? E assim se delineavam pesquisadores que, saído de um campo de militância se perdiam e se encontravam com questões que desestabilizam e convocam ao deslocamento, pondo em questão o que se é, deparando-se a todo instante, com o que devíamos nos tornar. No percurso vivido experimentávamos movimentos e metamorfoses que traziam perturbações inspiradoras como as enunciadas por Friederich Nietzsche (1879/1987): “Uma vez que tenha se encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se – e depois reencontrar-se: pressuposto que se seja um pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma pessoa”. (Nietzsche 1879/1987, p. 106)

Eram essas modulações que afirmavam a importância de não nos fixarmos a um padrão teórico-técnico dado, mas permitirmo-nos a errância de acompanhar àquelas vidas em suas radicais singularidades, ocupando um não-lugar, disponibilizando uma escuta supra-moral que desse passagem ao novo e à expansão da vida. As falas daqueles usuários considerados difíceis pela rede teoricamente “estruturada para cuidá-los” provocavam desvios, demandavam invenções e foi a partir da escuta que fizemos a elas que passamos da fotografia na lata (pin-hole) para as máquinas fotográficas descartáveis. Aliadas ao hip hop elas se tornariam a ferramenta utilizadas para cartografar os caminhos por eles percorridos que, ao final, deram origem a um rap. Juntos tais instrumentos apontavam para a eficácia e efetividade de uma política sobre drogas efetivamente preocupada em constituir novos modos de cuidar, como expresso na letra do rap:

Eu peço a Deus!! Cultura, educação, livros escolas, informação, uma quadra, prá rachar uma bola. E por que não aulas de informática? Uma professora para reforçar a gramática! Aulas de dança pra terceira idade. Cultura na periferia pode crer. O gaúcho e a prenda, no CTG5. Quartas e sextas têm aula de teatro. Artes Cênicas, [vo]cê tá ligado?? (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012)

3 Nó(s) da rede e a produção de saúde: Políticas Públicas para as periferias?

Para, além da oferta pura e simples de ferramentas de pesquisa, o que propúnhamos era fazer brotar um espaço de convivência entre aqueles usuários que pudesse produzir outros sentidos para suas vidas. Sentidos de compartilhamento possíveis, de autonomia e protagonismo cidadão, mas para nos aproximarmos deles era imprescindível construirmos coletivamente esta possibilidade. A ideia de produção de saúde, tal como a entendemos, pressupõe atuar diretamente nos modos de vida, dando passagem para afirmação da diferença. Por isto, nossa afirmação metodológica de traçarmos o percurso de investigação-intervenção junto ao grupo para que construíssem concomitantemente seu próprio caminho, precisava uma atenção permanente e cautelosa às proposições e movimentos que o grupo de usuários vinha apresentando.

Para fazê-lo, torna-se fundamental olhar para cada sujeito que se dispõe à intervenção para além de apenas um “usuário do sistema de saúde”. É preciso ver cada sujeito como uma pessoa com uma história, com demandas, com possibilidades subjetivas variadas, devires outros. Só assim ele pode ser olhado como um sujeito em produção de si próprio e do seu território de vida e não somente uma figura identitária, um “dependente químico” em situação de marginalidade, por estar em conflito com a lei.

Nessa segunda etapa do projeto, surgem outros nó(s) na rede, quando contamos com a parceria do grupo de Hip Hop Poetas Divila6. O relato do líder do grupo, (Francisco Carlos Jankiel), conhecido por Chiquinho, sobre as transformações que vinha presenciando tanto em sua vida como na vida de jovens das comunidades, através deste dispositivo, se apresentava como uma possibilidade de maior aproximação com os jovens do Bairro em questão e de potencialização da vida através da arte, pois conforme as próprias palavras do líder: “Como a gente era da vila, nos identificamos com a atividade do hip hop que injetou autoestima na gente”. (Francisco Carlos Jankiel, entrevista pessoal, 4 de junho de 2011).

Vinícius Massing (2011) refere que a cultura de rua é uma forma de autoafirmação das classes populares e de problematizar as condições de vida das periferias através de arte e cultura. O líder do grupo Poetas Divilas afirma que “o hip hop é considerado quatro P´s: Políticas Públicas Para as Periferias”, (F.C. JankieL, entrevista pessoal, 4 de junho de 2011), se referindo aqui ao quinto elemento como sendo o Hip Hop, o que permite pensar que a prática discursiva presente no hip hop,

Passa a ser uma voz do excluído, tornando os rappers em porta vozes da periferia, servindo de referência para novos adeptos do movimento, tornando o movimento hip hop mais político a partir de reivindicações principalmente de políticas públicas para os jovens e toda a periferia, onde o acesso do Estado ainda era precário (Massing, 2011, p. 20, grifo no original).

Aproximando a compreensão deste autor aos propósitos da intervenção aqui descrita, vimos que os caminhos tecidos pelos usuários de drogas em seu território nos permitiam detectar e analisar quais os ‘nós’ da rede (incluindo nesses os rituais, as estratégias de sobrevivência, serviços ofertados pelo estado, o conjunto de afetos de que lançam mão...) produziam saúde e apontavam para o que passamos a denominar por uma Clínica do Possível pautada no cuidado, vínculo e afeto.

Para aqueles sujeitos que escutávamos às margens dos serviços de saúde – porque tidos como não-aderentes aos mesmo -, a linguagem do hip hop era a linguagem das periferias, os seus companheiros entendiam o que diziam, e é isto que possibilitava o vínculo entre eles (e que aos poucos fomos transformando em vínculos também com nossa equipe de pesquisa-intervenção e com a proposta da própria intervenção). Isto nos deslocava, obrigatoriamente, de nosso cômodo e inerte lugar de especialistas para buscar, no saber deles, os caminhos possíveis para uma intervenção potente e resolutiva. E mais uma vez, a letra da música por eles produzida nos apontava algumas pistas:

Como eu queria que isso tudo fosse real, em todas as periferias, normal, difundir a paz e a alegria, sem treta, sem droga na companhia de bons e sinceros amigos. A professora, a vizinha, o tiozinho e o mendigo. Mas será que estou pedindo demais? Nos becos das periferias eu peço a Paz. (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

A parceria com o Grupo Poetas Divila possibilitou reorganizar a nossa intervenção repensando a utilização da fotografia como ferramenta. A fotografia como dispositivo de intervenção, nos auxiliava a pensar o processo, como produção, e a imagem como apresentação da realidade, ou de uma dada realidade que, muitas vezes, não é mostrada por falta de uma luminosidade (Tittoni, 2009). A intervenção fotográfica nos possibilitava não somente o “real”, mas também, a produção de “realidades”, captadas e apreendidas através das produções fotográficas. A fotografia aqui aparece como elemento de pesquisa, produtor de um conhecimento que torna visível o que ainda é invisível pelo estigma, preconceito, desconhecimento, etc. Utilizamos então a fotografia para pensar um roteiro de um rap que poderia ser gravado, pois percebemos que isso potencializava a adesão dos usuários aos encontros.

Ponderando as transformações que vão se dando no processo de pesquisa, Eduardo Passos e Regina Barros (2009,) salientam que:

O trabalho da análise vai modificando o campo, seguindo esta direção: da formulação de uma encomenda à definição de uma demanda de análise. Quem encomenda um trabalho de análise institucional não é necessariamente quem enuncia essa demanda. O trabalho vai modulando o campo de intervenção onde todos estão incluídos (quem encomenda, quem demanda, quem o analisa). (p. 19).

Os componentes do grupo Poetas Divila, passaram a ser também protagonistas nesse processo, ajudando no campo, e a fotografia passou a ser a ferramenta que auxiliava na produção de um rap. Distribuímos entre os usuários máquinas fotográficas descartáveis, para que pudessem fotografar os espaços na comunidade, entendido como espaços de produção de saúde, reforçando o que já havia sido dito anteriormente deste conceito, percebido como o lugar do encontro, da valorização da vida, da autonomia e protagonismo, da alegria, da esperança, etc. Conforme Tania Fonseca, Fernanda Amador e Andreia Oliveira (2011):

Imagens a serviço de uma imagem do pensamento, extraindo-lhe as banalidades cotidianas, traçando linhas de fuga ao empírico, ao invés de decalcá-lo, fazendo discordar, elevando o que se passa no ordinário das vidas a um estrangeiro extraordinário. Imagem para estranhar, para viajar, para elevar a existência a um exercício superior, transcendental. Imagem a serviço de uma disjunção, de uma abertura entre ver e falar que, ao acolher o movimento do mundo, espreita suas virtualidades para dar-lhes existência, para operar diferença. (p. 74)

Como é possível perceber, a fotografia aqui passa a ser uma tecnologia para tornar visível as invisibilidades, traz imagens da realidade, do cotidiano da periferia e, com elas, possibilidades que estão para além dos limites de suas vidas presentes, a possibilidade criativa, a reinvenção do cotidiano, a produção de vida, de saúde.

Segundo Jaqueline Tittoni (2009, p. 8), “a fotografia traz para a produção acadêmica a possibilidade de outros olhares e de diferentes pontos de vista” (p. 8). Trata-se de compreender que respostas as pessoas constroem para garantir a sua vida, para sobreviver? Que redes elas buscam e tecem para o cuidado de si? E isto está no território do vivido, dialogando com o modo de vida dessas pessoas, ora produzindo saúde, ora produzindo doença.

O lugar, para produzir o conhecimento sobre o uso de drogas e pensar estratégias de intervenção, não está exclusiva ou necessariamente nos lugares estruturados de tratamento ou nos centros de pesquisa, mas está onde as pessoas vivem, moram e usam drogas.

Uma roda de conversa com as fotos já reveladas nos auxiliava na identificação dos espaços de produção de saúde a serem encontrados no cotidiano do território dos usuários de drogas. Pois para além do uso de drogas as imagens se apresentavam como espaços de convivência, de lazer, de trocas afetivas, que traduzem a realidade daquela comunidade.

As rodas de conversa, a partir das fotografias, abriam espaços para se pensar a relação estabelecida com as drogas, sem exigências a priori por parte da equipe, como muitas vezes os serviços cobram dos usuários. Isto acabava trazendo à cena relatos de uso, dores e sofrimentos, vivenciados pelos jovens e familiares, fazendo-os repensar a própria vida. Nesse sentido, Jonh Berger (1999), referindo-se à fotografia afirma que só vemos aquilo que olhamos, tratando-se de uma escolha e, como resultado desta escolha, o que vemos é trazido para o âmbito do nosso alcance.

Assim, as rodas de conversas emergiam como oportunidade de oferecer àquelas pessoas informações às vezes muito elementares (quais os riscos que corriam, quais os serviços mais acessíveis de que poderiam se valer em uma emergência, como acessarem uma medicação que lhes ajudassem em determinada dor específica...) que poderiam ajudá-las em seu cotidiano: uma possiblidade de intervenção que a demanda dos usuários criou em nosso campo de pesquisa. Estabelecia-se ali um espaço terapêutico no sentido de cuidado de si, cuidado do coletivo e com um sentido de aprendizagem, onde nós aprendíamos com eles sobre a vida, o trágico, o uso de drogas e as diversas relações com ela estabelecidas. Também ensinávamos acerca do uso de drogas, redução de danos, cuidados em saúde e organização social. Um espaço produzido conjuntamente que abria fendas entre a realidade vivida e o que aqueles momentos poderiam representar, como propõem Tania Fonseca; Fernanda Amador & Andreia Oliveira (2011):

Nesta fenda, entre a ação e a reação, dá-se um ver ativo, um ver em atividade problematizante do que é visto e pensado, o que impede a imagem de se prolongar em ação e de ver-se capturada em clichês. Nela os sentidos põem-se em relação direta com o tempo, tornando-os, tempo e pensamento, visíveis e sonoros. Vê-se e ouve-se o tempo pensando-se nele, vendo-se o (in)visível, e pensar o (im)pensado. Não se trata de ver e de pensar o que já estava lá e do que não se tinha consciência. Invisível e impensado aqui, remete-se ao ainda não criado aos olhos e no pensamento, a algo da ordem das virtualidades, das forças da imagem que aguardam por novos. (p. 81).

4 Por uma clínica política para além do ressentimento

Para Claude Olieveinstein (1989) em seu livro A Clínica do Toxicômano a compreensão do fenômeno da dependência se estabelece a partir do tripé formado pela droga com suas propriedades farmacológicas, pelo indivíduo com seu aparato biológico e psíquico e pelo contexto sócio-cultural e econômico em que esse sujeito está imerso e a que está submetido. Tomando-se, então, tal definição de “fármaco-dependência”, a partir das distintas formas pelas quais cada sujeito lida com “a falta” das substâncias a que se habituou ingerir, nada pode ser dito nem compreendido genericamente sobre a dependência e nem sobre a diferença entre uso recreacional e dependente. O que se pode dizer, sem hesitar, é que ainda temos muito que aprender sobre a questão, considerando que as fronteiras entre diferentes formas de uso são imprecisas, dependentes da singularidade de cada caso, assim como do momento histórico em que cada um vive.

É nessa perspectiva, que a compreensão do sentido trágico de toda existência e da doença do ressentimento, tal como enunciados na filosofia de Friederich Nietzsche, apresentam dois conceitos relevantes que serviriam de aporte teórico para esta pesquisa-intervenção e para elaboração do que chamamos aqui de uma Clínica do Possível a partir da constatação da realidade cotidiana do usuário de droga e do seu entorno.

Para Friederich Nietzsche (1887/2004), o trágico apresenta a vida “como ela é”, em todas suas facetas, em toda sua inteireza, com o que há de sofrimento e alegrias, sem tirar nem pôr sequer um acontecimento. Esta dor que é própria da condição humana, e a qual o homem não tem como evitar, compõe, são reveses da vida, constituintes da experiência humana e nisso mesmo consiste seu valor: do desejo de expansão da vida, da vontade de potência que gera mais vida, pois para o filósofo: “Viver é repelir constantemente para longe de si aquilo que deseja morrer. Viver é ser cruel e impiedoso para tudo o que envelhece e enfraquece em nós” (Nietzsche, 1887/2004, p. 57).

Há na vida uma possibilidade de transmutação da dor e do sofrimento em potência de vida, que permite aproximar o conceito de vida à produção de saúde. Descortina-se, assim, uma perspectiva de intervenção que se descola do plano do “homem idealizado” para pensar o humano no plano comum da experiência de um homem qualquer, que tem uma história de vida, têm desejos, alegrias e dificuldades, modos de viver, sentir e estar com a vida e por isso reconhece o outro nas suas diferenças. Perspectiva de uma Clínica Ampliada largamente sustentada por uma política voltada para a construção de um plano comum, como proposto nas diretrizes da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. (Brasil, 2010a, p. 17).

Conclusão equivalente aparece citada em pesquisa acerca da temática de políticas de atenção à saúde das pessoas que usam álcool e outras drogas no Brasil em que os autores afirmam:

A articulação entre redução de danos e clínica ampliada indicam caminhos promissores para que as práticas de atenção e gestão para usuários de álcool e outras drogas estejam ancoradas no sentido libertador de universalidade, como garantia ao acesso com inclusão das singularidades de cada sujeito (Souza & Carvalho, 2013, p. 55).

Nesse sentido é que nosso entendimento acerca da produção de saúde não poderia ser descolado ao entendimento do uso da droga como a saída encontrada por aquelas pessoas aos sofrimentos/acontecimentos de suas vidas que não encontraram outras vias de expressão ou elaboração. Assim entendida, como uma entre as várias formas de enlace social possível e altamente estimulada nas sociedades de consumo em que vivemos, seria, não na evitação (estratégias proibicionistas), mas nos interstícios do que ali se apresentava como droga, adoecimento, que também pulsava a vida: entre o equilíbrio apolíneo e a desmesura dionisíaca, base da teoria da tragédia. (Machado, 2005)

Apolíneo, na forma como está sendo aqui compreendido, diz respeito à expressão da arte, da beleza, do equilíbrio, da consciência de si, numa visão espiritual, civilizada, que alude à experiência da medida e da consciência de si sob os lemas “conhece-te a ti mesmo!” e “nada em demasia”: expressão e representação da imagem divina do princípio de individuação. Dioniso, por sua vez, traz consigo a expressão do instinto, do corpo, das paixões, das desmesuras, da destruição. Contrapondo à experiência da individuação apolínea, a experiência dionisíaca é de superação da divisão, reconciliação com as pessoas e com a natureza, em uma possibilidade de integração da parte na totalidade. Deus da possessão, Dioniso é o promotor da desintegração do eu, abolindo a subjetividade pelo entusiasmo, enfeitiçamento, abandono ao êxtase divino, à loucura mística (Machado, 2005).

Para Friederich Nietzsche (1887/2004), portanto, a tragédia consiste em viver nessa tensão entre essas duas forças da natureza, na busca da reconciliação entre os dois princípios afirmadores da vida, aceitando-a inteiramente, não no sentido de conformação, mas de busca da superação de suas limitações, em busca de novos valores que potencializem o que o filósofo chamou de pontos luminosos da vida.

O desafio de pensar a temática das drogas apoiando-se nessa perspectiva teórico-filosófica implicava poder olhar para a realidade dos usuários de drogas em seu cotidiano, com desejos de vida e de morte, olhá-los e escutá-los assim como se apresentam – em sua crueza e inteireza - naquilo que escancaram de vontade de potência ativa e passiva, incluindo, muitas vezes, um niilismo aniquilador da vida que pode ser associado ao uso abusivo e/ou dependente das drogas. Entender a realidade do usuário para além da lógica discriminatória e moralista com que tradicionalmente foram tratados requer que se olhe para o trágico da vida e se aprenda com ele, com a dor e sofrimentos que o acompanham, mas também com a sabedoria trágica de que é esta mesma dor que além de “ensinar a gemer”, como no dito popular, indica o que se poderia produzir dessa realidade num processo de criação e transmutação do sofrimento em novos valores.

Moleque na nóia 24h por dia, solidão é a sua companhia, na selva dos zumbis quem se destaca? holoforte, um isqueiro e uma lata, cenário é de terror e ele é protagonista. Se fosse arte cênica, história antiga, nem grego nem troiano explica a situação (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

Entrar nesse panorama de crise, no drama do cenário da pesquisa que é a tragédia de nosso cotidiano, entender o lugar que a droga ocupa em nossas vidas, na vida de cada usuário em particular, auxiliá-los na compreensão de sua própria existência, encontrar um sentido para ela, é encontrar também outro sentido para o cuidado em saúde. Mas este é um exercício que só nos foi possibilitado quando nos propusemos a encontrar novos sentidos sentindo com eles, entendendo suas realidades cotidianas que nos deslocavam e nos convocavam à superação de uma clínica e uma política ressentidas para apostar na clínica que produz desvios e transforma, (desen)forma, propõe novas formas.

A paz está distante mas eu prossigo no [Bairro], de toda essa gente que depende do salário (...)pra minha família saúde e muito amor, mesmo na dificuldade, resistindo a dor (...) irmão que acorda cedo, enfrenta a batalha. Você tem que vê, sobreviver aqui Mesmo na dificuldade, resistindo a dor, Sem via satélite, só com o coração (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

Foi ali, às vezes literalmente no “olho da rua”, quando fomos expulsos do centro comunitário em que nos encontrávamos nos primeiros grupos, no território, nos encontros dos usuários para o uso de drogas, expressos nas fotografias, nas rodas de conversas, que vimos a Clínica do Possível acontecer, uma clínica em constante modificação acontecendo na vida que se apresentava inteiramente trágica, com suas forças dionisíacas e apolíneas debatendo-se entre si na busca da superação.

“Sim, É no salão da comunidade” (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

O rap emerge aparentemente como expressão ressentida, como resistência aos padrões impostos por uma sociedade egoísta e competitiva, que produz sujeitos reativos à impossibilidade de garantia de direitos, e pelas mazelas originadas das desigualdades sociais. Mas é Maria Rita Kehl (2004/2011) quem nos aponta que a igualdade é um ideal moderno que precisa ser conquistado, questionando as regras do jogo estabelecidas pelo projeto do capital, ao invés de ficar reproduzindo a mesma lógica individualista que faz concorrer com os membros de uma mesma classe social, agora vistos como concorrentes.

E a pergunta que aqui se impõe é: Que políticas do ressentimento estão impressas em nossa sociedade e fazem com que nos voltemos uns contra os outros?

É preciso problematizar a política de drogas a partir da lógica capitalista refletida nas disputas por verdades absolutas, que nos capturam, fazendo-nos estabelecer modos de vida a partir de um projeto neoliberal que nos coloca em pé de guerra pela sobrevivência. Às vezes pela sobrevivência de uma verdade em detrimento da outra.

Entendendo com Friederich Nietzsche (1887/2009), que o ressentimento é a grande doença da civilização moderna que não sabe como lidar com a própria natureza, do homem racional que não encontra vazão para a crueldade soterrada por valores amesquinhadores da vida, este estudo aponta saídas para uma política sobre drogas calcada no ressentimento, na medida em que, aproximando os princípios encontrados na Redução de Danos e Política Nacional de Humanização do SUS, faz uma aposta numa Clínica do Possível afirmada na potência de vida.

Nesse sentido, a definição de saúde apontada pelo filósofo do trágico pode nos ser útil:

Uma vez que não existe uma saúde em si, e todas as experiências feitas no intuito de defini-la, malogram-se miseravelmente. Importa que se conheça o seu objetivo, o seu horizonte, as suas forças, os seus impulsos, os seus erros e, sobretudo, o ideal e as fantasias da sua alma para determinar o que significa a saúde, mesmo para o seu corpo. Existem, portanto, inúmeras saúdes do corpo; e quanto mais se permitir ao indivíduo particular, e a quem não podemos comparar-nos, que levante a cabeça, mais se desprenderá o dogma da “igualdade dos homens”, mais necessário será que os nossos médicos percam a noção de uma saúde normal, de uma dieta normal, de um curso normal da doença. (Nietzsche, 1887/2004, p. 44).

Afinal, se não existe uma saúde prèt a porter que caiba a todos os sujeitos e suas necessidades, uma aposta que surge dos acordes e acordos criados no calor dos encontros e cantada em versos nos faz acreditar que outra política sobre drogas é possível. Uma clínica artesanal, inventada a céu aberto, que traz em seu bojo uma nova maneira de cuidar, através da arte e da reinvenção de si.

O hip hop tem muito pra ensinar. Grafitar, dançar, cantar, riscar, estudar. Como eu queria que isso tudo fosse real. Em todas as periferias, normal. Difundir a paz e a alegria. Sem treta, sem droga na companhia. De bons e sinceros amigos. A professora, a vizinha, o tiozinho e o mendigo. Mas será que estou pedindo demais? (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

À medida que a música permite a expressão ressentida ela também dá passagem ao novo, quando, pela via do processo de criação, se sentem capazes de protagonizar a própria história. É um grito de liberdade a favor da singularidade, do respeito à diferença que possibilita sair da atitude queixosa do ressentimento, colocando-os numa atitude ativa e de transformação. “Rancor jamais, Deus é minha vida. Rap Nacional é o que corre no meu sangue. Seja bem vindo a nova era da Favela. Com batida injetada em sintonia” (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

5 Por uma Clínica do Possível

Entre os resultados desse estudo, foi possível identificar a criação de um espaço de convivência que potencializava uma experimentação coletiva proposta pela pesquisa-intervenção, aproximando os usuários tidos como “não aderentes” aos tratamentos ofertados na rede, de um modo diverso àquele com que eles usualmente referiam (e ao qual resistiam).

Nesse sentido, habitar a experiência do cuidado na perspectiva do sujeito e não da doença, que considera a vida do sujeito e seu contexto, nos ensina que a produção de vida e de saúde acontece no território do vivido, da experimentação para poder produzir outras possibilidades de existência, onde a arte emerge com especial destaque. Isso apresentou-se a nós como dado de pesquisa relevante, que vem ao encontro dos princípios e diretrizes defendidos pela Estratégia da Redução de Danos, como argumentado por Tadeu de Souza & Sérgio Carvalho (2013)

A clínica da redução de danos cria uma potente aliança com a clínica ampliada e compartilhada, pois se torna necessário pensar em projetos terapêuticos singulares que acolham a singularidade de cada caso. (...) É possível e comum que muitas equipes, no momento em que a narrativa da história de vida passa pelo uso de drogas, sejam atravessadas por valores morais que reduzam sua capacidade de acolhimento e escuta. Nesse sentido a clínica ampliada, para que se exerça na sua radicalidade, precisa ser também uma clínica da redução de danos. (p.50-51):

Ampliar a clínica através do alargamento da nossa visão sobre a realidade, supera a lógica do sintoma, ajuda as equipes a olhar para além da doença que ali se lhes apresenta e ensina que saúde é vida, é (re)criação de valores que implica, portanto, também, destruição de velhos valores. “Eu sou do hip, sou do hip hop. Ele dá a letra, aponta alternativa. Incansavelmente é cidadania. Artes Cênicas, “[vo]cê" tá ligado??” (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

Nessa perspectiva todos os caminhos são possíveis, trata-se de uma clínica centrada no sujeito, que passa a ser co-responsável pelo cuidado de si e protagonista no cenário da própria existência. Atestamos pela intervenção, os movimentos e metamorfoses que se deram nesse plano comum de experimentação de relações que se produziram por encontros, afecções e construção coletiva.

Trata-se do método clínico que nos aponta a direção (hódos-meta), que tanto pode ser para a abstinência como a redução dos danos à saúde e/ou sociais, conforme a escolha e possibilidades do sujeito. Não se trata de uma ação sem direção, mas de uma ação protagonizada pelo próprio usuário que aponta para a saúde entendida aqui como arte de criar e afirmar novos modos de estar no mundo. Por isso, tomar a RD como conteúdo de um trabalho de pesquisa na perspectiva do pensamento da diferença implica, também, trilhar caminhos e buscar resultados que sejam ritmados por acordes para compor os necessários acordos que a saúde de cada sujeito demanda.

Daí entende-se por que a RD – que, não por acaso, teve nos Planos Terapêuticos Singulares sua estratégia inaugural –, convoca um ethos da pesquisa que implica toda uma inclinação teórica junto aos pensadores da diferença (aqui mais fortemente apresentados pela filosofia nietzscheana) e, com ela, nos reposiciona na atitude clínico-política.

Por isso, defendemos uma política pública que tenha como pressupostos os princípios e diretrizes do SUS garantindo acesso universal, integralidade e equidade, oferecendo cuidado a todos que precisam, levando em conta a singularidade de cada caso. Para tanto, se faz necessária uma gestão descentralizada, com ações integradas intersetorialmente, conforme apontou a IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial (Brasil, 2010b). Tais ações devem estar comprometidas com a produção de saúde, o cuidado no território e a participação da comunidade.

Cultura, educação, livros escolas, informação Uma quadra, prá rachar uma bola E por que não aulas de informática? Uma professora para reforçar a gramática, aulas de dança pra terceira idade Sim, É no salão da comunidade. Cultura na periferia pode crer O gaúcho e a prenda, no CTG Quartas e sextas têm aula de teatro. Políticas Públicas para as periferias, um futuro melhor. É isso que eu queria, Eu só peço a Deus Sabedoria E que proteja as crianças da periferia (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

Uma Clínica que se torna possível a partir das experiências vividas no cotidiano do território, onde a vida acontece, mesmo que muitas vezes pareça improvável contribuir com a produção de vida e de saúde nos limites que este território e aquela vida específica apresentam. Uma clínica que aponta caminhos para uma política pública que possa dar conta do fenômeno drogas, com todas as suas implicações. Pensar o que é possível a partir de dados de realidade, mas especialmente contando com o saber que é trazido pelo sujeito implicado nesse processo que é o próprio usuário, retirando-nos, trabalhadores/pesquisadores, desse lugar de “experts” para dar lugar, espaço ao outro, em sua diferença e singularidade.

Deste modo, tomar a redução de danos como diretriz da política e, portanto, do cuidado é superá-la como mera “estratégia” que reduz nossa intervenção a uma “clínica do comando” para dar lugar à Clínica Ampliada que confirma a inseparabilidade entre a clínica e a política, produzindo saúde e sujeitos em relação singular com a droga, em sua história de vida e com suas possibilidades peculiares de existência. “Como eu queria que isso tudo fosse real. (...) Mas será que estou pedindo demais?” (Rap Mariani, material de pesquisa não publicada, 2012).

6 Referências

Brasil, (2010a). HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política de Humanização.

Brasil, (2010b). Relatório Final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde.

Berger, Jonh (1999). Modo de Ver. Rio de Janeiro: Editora Rocco.

Fonseca, Tania Mara Galli; Amador, Fernanda & Oliveira, Andreia (2011). Imagem e literalidade: o figural do mundo, In Andrea Vileira Zanella & Jaqueline Tittoni (Orgs.), Imagens no pesquisar: experimentações. (pp. 73-97) Porto Alegre: Dom Quixote.

Kehl, Maria Rita (2004/2011). Ressentimento (4ª ed). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Lancetti, Antônio (2007). Clinica Peripatética. São Paulo: Hucitec.

Lei federal 10.216 de 6 de abril de 2001. Extraído em 22 de maio de 2014 de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10216.htm

Machado, Roberto (org.) (2005/2005) Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia/textos de Rohde, Wagner e Wilamowits-Mollendorff (tradução do alemão e notas Pedro Süssekind). Rio de janeiro: Jorge Zahar.

Marlatt, G. Alan (1998/1999). Redução de danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco (Trad. Daniel Bueno). Porto Alegre: Artmed.

Massing, Cesar Vinícius Ribeiro (2011). O Hip Hop como ferramenta de comunicação da periferia: estudo de caso sobre a atuação do grupo Poetas Divilas. Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social, Publicidade e Propaganda, Universidade de Caxias do Sul.

Nietzsche, Friederich Wilhelm (1879/1987). Obras Incompletas / Friederich Nietzsche; 1844-1900. (4ª Ed., Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho). São Paulo: Editora Nova Cultural.

Nietzsche, Friederich Wilhelm (1887/2004). A Gaia Ciência (Tradução: Jean Malville). São Paulo: Martin Claret.

Nietzsche, Friederich Wilhelm (1887/2009). Genealogia da Moral (Tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras.

Olieveinstein, Claude (1989). A Clínica do Toxicômano: a falta da falta (Tradução de Francisco Franco Settineri). Porto Alegre: Artes Médicas.

Passos, Eduardo &, Barros, Regina Benevides de (2009). Cartografia como método de pesquisa-intervenção, In: Eduardo Passos, Virgínia Kastrup & Liliana da Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Porto Alegre: Sulina.

Tittoni, Jaqueline (2009). Sobre psicologia e fotografia. In: Jaqueline Tittoni (Org.), Psicologia e fotografia: experiências em intervenções fotográficas (pp. 7-23). Porto Alegre: Dom Quixote.

Romagnoli, Roberta Carvalho & Paulon, Simone Mainieri (2014). Escritas Implicadas, Pesquisadores implicantes: notas sobre os destinos da subjetividade nos desatinos da produção científica. In: Magda Dimenstein e Jader Leite (Orgs.), Psicologia em Pesquisa: cenários de práticas e criações (pp. 23-42). Natal: EDUFRN.

Souza, Tadeu de Paula & Carvalho, Sérgio (2013) Reduzindo Danos e Ampliando a Clínica: Desafios para a Garantia do Acesso Universal e Confrontos com a Internação Compulsória. Polis e Psique, 2,37-58. Consultado em http://seer.ufrgs.br/index.php/PolisePsique/article/viewFile/40319/25628