Na lei e na marra: sociogênese das formas de luta pela terra, 1950-1964

By the law and by struggle: forms of claims sociogenesis, 1950-1964

  • Bernard Alves
O período que antecede o golpe militar de 1964 foi marcado por tensões no campo brasileiro, com intensa participação de grupos organizados demandando projetos de reforma agrária e acesso a direitos. Esta pesquisa propõe uma análise de diferentes formas de luta colocadas em prática nos estados do Rio Grande do Sul e de Pernambuco entre o final da década de 1950 e início de 1960. O primeiro foi palco de mobilizações legitimadas pelas inciativas do governo de Leonel Brizola (1959-1963). No segundo emergiram as Ligas Camponesas, movimento que corporificou a luta pela reforma agrária no país à época, sedimentando espaço para o avanço da sindicalização dos trabalhadores rurais, durante o governo de Miguel Arraes (1963-1964). Assim, a tese busca apontar como estas alternativas contribuíram para a consolidação de instrumentos que se mantiveram como fonte de resistência, mesmo depois do avanço da repressão imposta pelo regime militar brasileiro.
    Palavras chave:
  • Reforma agrária
  • Governos estaduais
  • Pernambuco
  • Rio Grande do Sul
Tensions in the Brazilian countryside characterized the period before the military coup of 1964, with the intense participation of organized groups demanding land reform projects and access to rights. This research proposes an analysis of different forms of struggle put into practice in the states of Rio Grande do Sul and Pernambuco between the late 1950s and early 1960s. In the first state, there were mobilizations legitimized by Leonel Brizola government initiatives (1959-1963). The Peasant Leagues emerged in the state of Pernambuco; this movement embodied the struggle for agrarian reform in the country at the time, settling space for the advancement of rural workers unionization, during Miguel Arraes government (1963-1964). Therefore, the thesis seeks to identify how these alternatives contributed to the consolidation of instruments that have remained source of strength even after the advance of repression imposed by the Brazilian military regime.
    Keywords:
  • Land Reform
  • State governments
  • Pernambuco
  • Rio Grande do Sul

1 Introdução e (re)definição do objeto

O objetivo da tese é destacar como duas iniciativas de luta, que nomeei de “forma na marra” e a “forma na lei”, foram significativas para a construção de uma base tanto social, quanto política, para o encaminhamento da luta por terra e reforma agrária no Brasil, a partir da segunda metade do século XX. Minha primeira proposta de projeto para a tese tinha um objetivo diferente daquele alcançado ao final da pesquisa, inicialmente buscava comparar a política agrária dos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Pernambuco durante os anos de 1959 e 1963. Este período compreenderia os governos de Leonel Brizola, Carvalho Pinto e Cid Sampaio, respectivamente. A iniciativa buscava recolher traços de alguns dos primeiros projetos de distribuição de terras em âmbito estadual e trazer à tona as primeiras ações de Estado na direção do reconhecimento da necessidade da reforma agrária. Ainda no início da pesquisa fui questionado sobre o porquê de não alcançar o ano de 1964, uma vez que um dos declarados motivos para o golpe militar foi exatamente a luta pela reforma agrária empreendida pelos mais diversos atores sociais. Assim, deixaria de lado a possibilidade de explorar iniciativas como o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 (lei nº 4.214, de 2 de março de 1963), o avanço nas bases da discussão do Estatuto da Terra de 1964 (lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964) e, principalmente, o acirramento do debate político sobre a reforma agrária, que se acentuou nos últimos momentos democráticos.

Uma simples mudança de recorte temporal, passaria a contemplar também os mandatos de Ildo Meneghetti no Rio Grande do Sul, Adhemar de Barros em São Paulo e Miguel Arraes em Pernambuco. No exercício de alongar minha análise, os limites do enquadramento analítico que havia construído começaram a aparecer. Me perguntava se seria correto aproximar o caso pernambucano do gaúcho estritamente pela presença do Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER) e das Ligas Camponesas em seus respectivos contextos. Do ponto de vista das ações práticas, havia a necessidade de se pagar pela terra fosse ela proveniente do Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (IGRA), no Rio Grande do Sul, da Revisão Agrária, em São Paulo, ou da Companhia de Revenda e Colonização, de Pernambuco. Mesmo que o prazo para o pagamento fosse diferente, essa característica seria o bastante para estabelecer um modelo de distribuição de terras como progressista e outro como conservador? Além disso, o acesso à terra não era garantido a todos, mas somente àqueles que preenchiam os pré-requisitos de cada empreendimento, em todos os casos.

Quando são consideradas todas estas possibilidades, as ações dos governos estaduais em muitos pontos se assemelhavam. No caso de Brizola, ao nomear seu órgão de colonização como Instituto Gaúcho de Reforma Agrária, o governador buscava capitalizar forças nos setores da esquerda e se posicionar politicamente diante da emergência da aclamação pela reforma agrária. Ao mesmo tempo, a proposta paulista de Revisão Agrária, de Carvalho Pinto, pretendia mostrar alternativas que não desapossassem grandes proprietários, mas ainda assim realizasse assentamentos, isto é, era proposta uma alternativa às desapropriações que geravam ruídos nos setores detentores de terras.

Neste sentido, vi a necessidade de uma vez mais mudar o enfoque da pesquisa, pareceu-me mais revelador buscar não a comparação direta entre os modelos adotados pelos estados brasileiros à época, mas fornecer elementos de como foi construída a luta; sem me concentrar estritamente nos limites da ação estadual, mas colocando em análise as pressões dos atores que efetivamente integraram a luta pela reforma agrária nos estados entre o final da década de 1950 e início de 1960.

Partindo dessa nova perspectiva, optei por concentrar a análise somente nos casos de Rio Grande do Sul e Pernambuco. Nessa decisão, pesou especialmente o maior investimento que já havia sido feito na pesquisa desses dois estados. Nesta tese, busca-se verificar como ações políticas e sociais no Rio Grande do Sul e em Pernambuco imprimiram marcas distintas na luta pela reforma agrária no Brasil da época, convertendo-se em premissas para a resistência das populações rurais a partir daquele momento. Desloco a ideia inicial de centrar esforços em analisar a construção da política agrária dos estados, fechadas em si mesmas, para uma análise que se concentre efetivamente nas forças que operaram na luta por reforma agrária nos dois contextos, sendo possível elaborar uma análise que confira a importância merecida aos diversos atores que se envolveram em cada processo de luta. O contexto político que marca cada um dos estados não será desprezado, mas este será mobilizado na medida em que se mostra eficiente para compreender o desenrolar da própria luta.

Desde quando comecei a me aventurar na análise do caso gaúcho, uma pergunta me acompanhava na voz dos mais diversos interlocutores que tomavam parte do trabalho: Mas e as Ligas Camponesas? Mesmo com um considerável investimento sob o caso gaúcho, ainda levava comigo a necessidade de colocá-lo em perspectiva às Ligas. Assim, com o passar do tempo e o avanço na pesquisa, cada vez mais via-me obrigado a revisitar os acontecimentos do Rio Grande do Sul, tomando por base a repercussão que as Ligas promoveram, especialmente a partir de Pernambuco.

Durante o ano de 1961, a luta por reforma agrária, passou a reverberar uma máxima elaborada durante uma congregação camponesa: “Reforma Agrária na Lei ou na Marra” tornou-se a bandeira de luta das Ligas Camponesas. Nessa tese, penso que estão contemplados esses dois extremos ao destacar os casos de Rio Grande do Sul e Pernambuco. O primeiro se construiu ao redor de dispositivos constitucionais, já o segundo teve como marca de parte de sua luta a criação de dispositivos militares, ambos em seus momentos de maior tensão. Os caminhos tomados aqui pretendem evidenciar a riqueza da construção das diferentes formas de luta por reforma agrária que operaram no país naquele período.

Ao deslocar a perspectiva da análise da política agrária dos governos estaduais para os caminhos pelos quais a luta pela terra se configurou nos contextos específicos de Rio Grande do Sul e Pernambuco, percebi que a pesquisa se tornava mais completa por não definir a prerrogativa da ação estatal frente a importância da atuação dos grupos organizados, isto é, é a própria relação entre Estado e movimento social que viria a definir o lugar de cada um, sua importância e significado. Neste sentido, a construção do que denomino “forma na lei” e “forma na marra” está diretamente relacionado ao debate apresentado por Lygia Sigaud (2000) e Marcelo Rosa (2004).

Sigaud (2000) desenvolve a noção de “forma acampamento” a partir de seu investimento de pesquisa na zona da mata pernambucana. Aponta que os acampamentos presentes naquela região eram muito mais do que uma simples reunião de pessoas. Através do tempo, houve um processo de consolidação de um modelo, que trazia à tona signos característicos de um determinado tipo de demanda; naqueles casos, por reforma agrária: barracas de lona preta, uma bandeira hasteada, maneiras específicas de realizar as ocupações, bem como uma linguagem própria ao acampamento. Todos esses elementos consolidavam uma forma de tornar legítima aquela reinvindicação e, especialmente, estabelecer um canal eficaz de diálogo com o Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), como representação do Estado brasileiro.

Partindo dessa construção teórica, Rosa (2004) desenvolveu o que chama de “forma movimento”, diretamente ligado às implicações da “forma acampamento”. Para o autor, a “forma movimento” é produto da consolidação da ação coletiva verificada também em Pernambuco. Ele destaca que a experiência bem-sucedida do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) na região construiu uma linguagem de ação que outros movimentos passaram a reproduzir para que tivessem suas demandas consideradas legítimas e também passíveis de serem atendidas pelo poder público. As duas formas, colocadas em destaque, indicam a existência de canais específicos pelos quais determinadas práticas de reivindicação se mostraram eficientes.

Entretanto, é importante que se destaque que tanto a “forma acampamento” quando a “forma movimento” são construções produzidas a partir de observações posteriores ao marco temporal explorado nesse trabalho. Estas dão conta de uma realidade alocada entre o final da década de 1980 e durante a década de 1990. Assim, ao concentrar-me em momentos anteriores, acredito contribuir na direção da sociogênese (Elias, 2006) tanto dos canais de demanda entre Estado e movimentos sociais quanto no próprio repertório de ação coletiva (Tilly, 1995) mobilizado pelos demandantes.

2 Formas de luta e suas conexões

A tese está estruturada em três capítulos. Os dois primeiros se encerram aproximadamente num mesmo período, entre o final de 1962 e início de 1963. O primeiro diz respeito ao caso pernambucano e a construção do que denomino “forma na marra”. Concentra-se especialmente em revistar a própria construção das Ligas Camponesas, dando especial enfoque às transformações que foram ocorrendo dentro do movimento em função de sua ampliação pelo país e, especialmente, das mudanças no quadro político nacional e internacional. Estas últimas culminam na transformação das Ligas, que inicialmente militava à luz do código civil na defesa dos camponeses, para um movimento que passava a considerar a luta armada como possibilidade e estratégia legítima de solução para o problema do acesso à terra no Brasil.

Ao longo do primeiro capítulo busquei explorar, especialmente por meio do confronto de diferentes versões, as mudanças nos posicionamentos adotados pelas Ligas Camponesas entre meados da década de 1950 e o início da década de 1960. A principal contribuição que pretendo apresentar neste caso é estabelecer algumas correlações que nos permitam compreender a mudança do perfil de atuação do movimento que melhor personificou a luta por reforma agrária até o golpe militar de 1964, além de possíveis desdobramentos desse processo.

A luta do movimento se inicia relativamente restrita, vinculada aos posseiros do Engenho Galiléia, particularmente orientada sob princípios do ordenamento legal existente, isto é, o Código Civil era o principal instrumento de resistência mobilizado. A luta se origina por terra, pela permanência nela, e gradualmente se consolida na direção da reforma agrária. Para entender essa transição, que se consagrada no Congresso de Belo Horizonte em 1961, deve ser considerada a aproximação do movimento com Cuba e compreender as disputas que passaram a ocorrer dentro das Ligas Camponesas. As diversas versões apresentadas ao longo texto tendem a posicionar a figura de Francisco Julião como um líder que desfruta de uma unanimidade com os camponeses que não se repete entre os militantes. Para aqueles que viveram o cotidiano do movimento, Clodomir Morais é constantemente referendado como alguém de mais importância do que somente a função de “assessor”, que se anuncia. Se não é possível definir com precisão os limites objetivos do poder do próprio Julião, fica bastante claro que ao menos a parte dos dispositivos militares, passava necessariamente por uma gerência de Clodomir Morais. Fato que corrobora fortemente essa condição é própria extinção da iniciativa em 1963, justamente o período em que o último esteve preso.

Outro desdobramento importante a ser considerado é o quadro de fragmentação do movimento que pode ser constatado já ao final do ano de 1962. A maior parte dos relatos dão conta da instabilidade interna ao movimento em decorrência das posturas adotadas por Clodomir Morais e da decisão de Julião em não o afastar do movimento. Essa medida, que a priori visava garantir a permanência de um quadro, que esteve ao lado de Julião desde os primórdios da organização, acabou sendo um importante revés na sobrevivência das Ligas. Ao decidir manter Clodomir no movimento, Julião, ainda que indiretamente, forçou a saída de outros militantes, incomodados com as posições adotadas pelo “assessor” do movimento. Ainda que Julião apostasse na capacidade de Clodomir, sua permanência se mostrou ineficiente a partir do momento em o mesmo foi preso. Ao final de 1962, Julião perdia quadros de liderança e de militância. Essa condição precisa ser tomada em conta para entender o posicionamento das Ligas Camponesas em Pernambuco e no restante do país durante o ano de 1963 até 1964. Mais do que somente a emergência de atores como a Igreja e o Partido Comunista (PCB) na luta pela representação das populações rurais, a decadência das Ligas na rivalização com estes novos atores precisa contemplar sua (des)estruturação interna; o movimento chegava enfraquecido diante do novo paradigma de luta que se configurou a partir do início do ano de 1963, com a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural e do avanço da sindicalização no campo.

O encontro entre as aspirações camponesas e a transpiração da militância, das mais diversas matrizes, é chave importante para entender como um movimento, com significativos distúrbios internos como os que foram apresentados, foi capaz de experimentar tamanha expansão. Dimensão que ajuda a compreender a construção que defino de “forma na marra” para caracterizar o potencial de impacto que as Ligas Camponesas desfrutaram na publicização da necessidade da reforma agrária no país. Para além de todos os problemas, foi graças ao discurso de radicalização adotado pelo movimento em suas manifestações e práticas – vide à alternativa da adoção dos dispositivos militares – que podem ser percebidas algumas respostas significativas por parte do Estado brasileiro na direção do enfrentamento dos dramas das populações rurais. Assim, a “forma na marra” explora o potencial de transformação que as Ligas Camponesas foram capazes de promover em torno do problema do acesso à terra e da reforma agrária no país entre o final da década de 1950 e início da 1960. Acredito que grande parte das tentativas, ainda que paliativas à solução do problema, precisam ser contempladas à luz da imposição do tema pelo movimento nascido em Pernambuco.

O segundo capítulo se concentra em revisitar o caso do Rio Grande do Sul, durante o mandato de Leonel Brizola à frente do governo estadual. O principal objetivo do capítulo é mostrar como, no caso gaúcho, a própria emergência das reivindicações de luta por terra e reforma agrária foram, em grande medida, influenciadas pelo estímulo e participação do próprio governo, fundamentais para a construção do que denomino “forma na lei”. A aclamação pela reforma agrária que ganhava espaço no país a partir da expansão das Ligas gerava a necessidade de respostas ao problema e, nesta direção, o governo gaúcho mobilizou recursos legais existentes na Constituição estadual de 1947 para não somente atender ao problema local, mas também oferecer um modelo que passou a operar mais tarde no âmbito federal.

A análise dos desdobramentos da luta por terra e reforma agrária no Rio Grande do Sul, entre o final da década de 1950 e início da década de 1960, nos leva a um exercício peculiar. Isto é, contemplar não somente a consolidação de um repertório de luta – a realização de ocupações; mas também colocá-las em perspectiva aos interesses do próprio governo estadual, que se envolve no enfrentamento dos problemas dos agricultores sem terra do estado.

A inovação a ser destacada na relação entre demandantes e demandados parece estar localizada na necessidade mútua de legitimidade e reconhecimento aos seus atos. Enquanto os demandantes de terra e projetos de colonização necessitavam do respaldo do Estado para sua segurança e permanência nos acampamentos, o governo estadual necessitava da exposição pública daquela demanda para que pudesse se colocar como um ator responsável por construir alternativas para um problema que não era exclusivo ao Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, ganhava cada vez mais importância. Naquele contexto, o recurso legal prestava-se não exclusivamente aos interesses dos grandes proprietários, mas na direção de construir uma alternativa legítima aos sem terra.

Não é recorrente, em especial no caso brasileiro, que a lei e a Justiça se prestem aos interesses das camadas populares. Entretanto, no que tange aos instrumentos utilizados na luta por terra no período anterior ao golpe militar de 1964, o recurso à lei se mostrou uma alternativa eficaz para o encaminhamento de importantes processos de luta, desde as Ligas Camponesas com uso do Código Civil; até a mobilização dos artigos 173 e 174 da Constituição do estado do Rio Grande do Sul pelo governo de Leonel Brizola.

Em relação ao último, ao considerar as diversas narrativas apresentadas ao longo do texto, é possível verificar como o encaminhamento de suas ações esteve diretamente relacionado às implicações que o tema da reforma agrária ganhava em importância. Uma recuperação dos fatos nos permite conceber a consolidação do que denomino de “forma na lei”, isto, é um modelo de enfrentamento do clamor pela reforma agrária que passava necessariamente pela utilização de um repertório legal pré-existente. Uma análise centrada a partir da descrição das ocupações em Sarandi e Camaquã e a relação entre o quadro de mobilizações do estado, bem como o levantamento prévio das propriedades com mais de 2500 hectares realizado pela Companhia Estadual de Terras e Habitação, dão o tom de uma inciativa de enfrentamento do problema agrário que reforçava a condição de uma mútua dependência. Desde o apoio à consolidação do MASTER como um ator legítimo para personificar luta por terra localmente, até a construção de canais específicos para o atendimento dessa questão com o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária, o governo estadual se cercava de instrumentos para informar ao restante do país que o Rio Grande do Sul havia consolidado um modelo a ser divulgado e ampliado.

O terceiro capítulo trata de estabelecer as conexões entre as duas formas de luta destacadas nos capítulos anteriores, isto é, busca evidenciar quanto alternativas distintas tinham um problema comum a ser enfrentado e, especialmente, como estas formas não poderiam ser pensadas de maneira separada. Temporalmente localizado em eventos ocorridos durante o ano de 1963 até as portas do golpe militar de 1964, propõe-se explorar as conexões das formas de luta apresentadas e os resultados desse encontro. Assim, explora-se especialmente a construção da Superintendência de Política Agrária (SUPRA), vinculada ao governo federal, criada à luz da experiência do modelo empreendido pelo Instituto Gaúcho de Reforma Agrária no Rio Grande do Sul, e os desdobramentos provocados pela atuação das Ligas Camponesas para a construção da política agrária de Miguel Arraes em Pernambuco.

O capítulo se propôs a explorar tanto o encontro da “forma na lei” com a “forma na marra”, quanto os desdobramentos dessas alternativas de luta gestadas sob circunstâncias específicas. A ocupação do Vale do Imbé, no estado do Rio de Janeiro, é tomada como referência para indicar que as duas formas produziram efeitos para além daqueles inicialmente pretendidos. O resultado prático da ocupação somente pode ser compreendido se for colocada em questão o processo de organização dos camponeses, originário da iniciativa das Ligas Camponesas com Pedro Porfírio, ao mesmo tempo em que o resultado efetivo da demanda – a desapropriação da área –, necessita ser contextualizada segundo as práticas inicialmente consagradas pelo grupo de gaúchos que controlava a recém-criada SUPRA.

Além disso, a própria posição do governo federal a respeito do encaminhamento do tema da reforma agrária, especialmente ao longo do ano de 1963, pode ser acompanhada por meio dos bastidores da SUPRA. Entre nomeações e afastamentos, é possível verificar a oscilação das intenções da política agrária do presidente João Goulart. Se, em um primeiro momento, as desapropriações de terra para fins de colonização estariam entre as possibilidades, ao menos segundo os interesses do grupo originário do IGRA; rapidamente essa alternativa é rechaçada com a substituição desses quadros e a nomeação de João Pinheiro para presidir o órgão. A partir daquele momento, as atenções estavam voltadas à implantação da sindicalização rural. Quadro que permanece quase até o final do ano de 1963, quando João Goulart inicia de maneira mais concreta a aplicação dos princípios das reformas de base, reconduzindo o recurso às desapropriações como uma das principais estratégias para o enfrentamento dos problemas das populações rurais quanto o acesso à terra.

Por fim, ainda no terceiro capítulo, a análise da construção da política agrária de Miguel Arraes em Pernambuco buscou evidenciar como muito das margens de possibilidade de ação, ou mesmo dos problemas a serem enfrentados pelo governo, foram produto da ação anterior das Ligas Camponesas. Estas últimas que, apesar do processo de fragmentação que enfrentavam, ainda se constituíam em ator importante nas disputas locais. Ao mesmo tempo em que Igreja e o Partido Comunista passam a desfrutar de um lugar de destaque, o governo Arraes incentivou a sindicalização rural como alternativa para se fazer presente e atuante no enfrentamento dos problemas das populações rurais do estado.

3 Considerações Finais

A tese buscou explorar, por meio desse recorte específico, a construção de determinadas formas de luta que contribuíram para a ampliação das possibilidades de resistência das populações camponesas no Brasil, a partir da segunda metade do século XX. É importante destacar que não foi intuito desse trabalho apontar que a “forma na marra” e a “forma na lei” foram as únicas estratégias efetivas de busca por mudança na estrutura agrária nacional, ou mesmo pela melhoria das condições de vida e trabalho no campo. O destaque aos dois modelos apenas refletiu as peculiaridades dos casos analisados e procurou estabelecer um diálogo com investimentos teóricos anteriores. Entretanto, acredito que o quadro recuperado permite compreender tanto os desdobramentos das ações do Estado brasileiro, quanto a construção de repertórios de ação orientados para a demanda por terra e reforma agrária.

4 Referências

Constituição do estado do Rio Grande do Sul (1947). Recuperado de http://www2.al.rs.gov.br/memorial/LinkClick.aspx?fileticket=ab_rJmqsoWc%3D&tabid=3456&language=pt-BR

Elias, Norbert (2006). Escritos e Ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Lei nº 4.214, de 2 de março de 1963. Recuperado, de http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1963/4214.htm

Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Recuperado em 29 de setembro de 2015, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4504.htm

Rosa, Marcelo (2004). O engenho dos movimentos: reforma agrária e significação social na zona canavieira de Pernambuco. Tese de Doutorado inédita, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.

Sigaud, Lygia (2000). A forma acampamento: Notas a partir da versão pernambucana. Novos Estudos Cebrap, 58, 73-92.

Tilly, Charles (1995). Contentious repertories in Great Britain (1758-1834). In: Mark Traugot (Ed.), Repertories & Cycles of collective action (pp. 15-42). Durham and London: Duke University Press.