Narrativas das infâmias: um pouco de possível para a subjetivação contemporânea

Narratives from infamies: a little of possibility for the contemporary subjectivation

  • Tania Mara Galli Fonseca
  • Luis Artur Costa
  • Carlos Antônio Cardoso Filho
  • Leonardo Martins Costa Garavelo
O que pode a psicologia social ao somar em seu corpo metodológico e conceitual algumas estratégias vindas das artes poéticas? O que pode a psicologia social se somamos narrativas ficcionais aos nossos trabalhos e pesquisas com as vidas infames que foram trancadas e esquecidas nos antigos hospícios e hospitais psiquiátricos? Este artigo apresenta três perspectivas sobre os potenciais advindos da hibridização entre a psicologia social e as narrativas ficcionais: a escrita ficcional para além do dizível, para além do juízo e para além dos silêncios produzidos nos espaços de fechamento disciplinar. Propomos aqui um ensaio conceitual que explore as potencias expressivas da ficção para fazer emergir novas visibilidades possíveis sobre estas esquecidas vidas infames. Com estas ferramentas conceituais ao redor do trabalho biografemático e da potência da escrita ficcional, podemos ultrapassar o silêncio produzido pelos muros do antigo Hospital Psiquiátrico São Pedro com nossas pesquisas.
    Palavras chave:
  • Narrativas
  • Ficção
  • Biografema
  • Infâmia
  • Testemunho
What can social psychology do by adding to its own methodological and conceptual body some strategies originating from the poetic arts? What can social psychology do if we add fictional narratives to our works and researches about infamous lives that were locked and forgotten into asylums and mental hospitals? This article presents three perspectives about the potential resulting from the hybridization between social psychology and fictional narratives: the fictional writing situated beyond whats is speakable, the writing beyond judgment, the writing beyond the silences produced in spaces of disciplinary closure. We propose a conceptual essay that explores the expressive potential of fiction to bring out new possible visibilities about those forgotten and infamous lives. With these conceptual tools, towards a biographematical work and the potency of the fictional writing, we are able to overcome with our research, the silence produced by the walls of the ancient São Pedro Psychiatric Hospital.
    Keywords:
  • Narratives
  • Fiction
  • Biographema
  • Infamy
  • Testimony

1 Encontros com as narrativas da infâmia

Certo dia nublado no outono de 2003 nos defrontamos com a fachada monumental do antigo hospício da cidade de Porto Alegre: atual Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP). Na avenida Bento Gonçalves a tristeza de pequenas lojas decadentes se somava aos corpos curvados pelo frio cortante. De repente, da sucessão monótona de pequenas edificações irrompeu o amplo horizonte do velho Hospício. O céu cinza emoldurava com dramaticidade a robusta fachada neoclássica. Suas linhas simples mas altivas se lançavam ao horizonte com empáfia. Tanta circunspecção evidenciava o valor dos saberes e poderes daqueles que se envolveram na empresa de construção daquele gigante: os notáveis civilizados burgueses, a sacra igreja em toda sua compaixão e a nascente ciência alienista com sua autoridade de verdade. Grave como um pesado acorde diante de um vasto silêncio, por onde retumba e marca sua dramaticidade.

O velho Hospício passara desde então por múltiplas transformações e reformas, mesmo com tantas andanças e variações nós sentíamos o peso daquelas novas ciências do Estado em todo o esplendor da sua autoridade no início do século XX. Avançávamos passo a passo pelo gramado nos aproximando daquele fóssil de um projeto de cidade perfeitamente governada (Foucault, 1974/1987): progresso, ciência e caridade unidos pela humanidade. Mas a que preço vivemos a união destas verdades e bondades? Quantos negros pobres tinham sido trancafiados por comodidade? Quantas mães solteiras foram internadas para evitar escândalos ainda maiores? À medida que nos aproximávamos, as rugas e cicatrizes oriundas de suas batalhas contra a barbárie se tornavam mais visíveis: manchas escuras de infiltrações que espalhavam umidade e amoleciam a carne da pedra, pequenas plantas e musgos que rompiam a retidão das formas neoclássicas com a organicidade decadente dos seres inferiores, os rasgos agudos na fachada que esfacelavam a película civilizada desvelando a nudez dos tijolos antigos. A cada passo que dávamos em sua direção nos apercebíamos mais da aura de cansaço que permeava aquela edificação. Mas a maior evidência de que o antigo projeto de civilidade científica cedera e implodira sobre o peso de sua gravidade não estava na fachada do prédio, mas sim no seu interior: no grande pavilhão que albergara o Serviço Somático com suas paredes de límpidos azulejos brancos, hoje havia a confusão de cores da Oficina de Criatividade com suas tintas, papeis, cavaletes e uma vastidão de obras elaboradas pelos usuários do HPSP. Lá, as linhas simétricas que haviam estriado aquele espaço (Deleuze e Guattari, 1980/1997) em segmentariedades concêntricas, binárias e hierárquicas (Deleuze e Guattari, 1980/1996) foram embaralhadas pela mão livre da pintura, da escrita e de bordados. Ali a degradação do velho hospício e de seus saberes possibilitou que outra organização brotasse, e muitas foram as vidas que buscaram guarida naquelas cores.

Investigamos seus espaços, suas vozes, seus modos de viver e trabalhar. Respiramos seus odores úmidos, conversamos com suas vidas impregnadas. Nos últimos quatro anos passamos a nos debruçar sobre os rastros de vidas e obras que duraram na Oficina de Criatividade. Tendo como eixo conceitual e metodológico o conceito de biografema de Roland Barthes, nosso problema constituía-se em como dizer uma vida infame da qual encontrávamos, ao lado do montante de obras expressivas produzidas pela mesma, apenas referências nos arquivos de prontuários médicos, redigidos de forma lacônica e exclusivamente centrados nas manifestações sintomatológicas dos sujeitos institucionalizados. Tendo em mãos as obras expressivas dos frequentadores da Oficina e os prontuários médicos, pudemos perceber e demonstrar o alto teor expressivo das referidas obras bem como o seu total desprezo por parte do olhar médico psiquiatrizado, levando-nos a pensar a Oficina como um lugar estrangeiro no seio do próprio hospital.

Neste Outro do hospital, neste seu duplo, colado e ao mesmo tempo separado, vem formando-se, durante mais de 20 anos, um outro Arquivo, imenso por sua proliferação diária e grandioso em seu número de aproximadamente 100.000 obras arquivadas. Portanto, em busca dos silêncios e dos restos de vidas infames, submetidas ao regime de longa internação, pudemos, a par de ordenar as coleções do Arquivo, remexer as matérias esquecidas e, à luz do dia, desfiar algumas possibilidades de virmos dizer o que foram tais vidas, o que poderiam ter sido e o que ainda não foram nem serão. Encontrar um modo de dizer que estivesse à altura dos imperceptíveis e sutis elementos destas vidas fragmentadas, conduziu-nos a dispensar uma atenção especial aos nossos próprios modos de escrever que, desta vez e por causa desta situação, convocavam à hibridização do estilo acadêmico-cientificista com o poético e romanesco. Perseguíamos, desta feita, também um Outro, desta vez o da Academia, inserindo no próprio discurso acadêmico algo para além de seus tradicionais cânones. Constituiu-se neste caminho uma estilística da pesquisa, exigindo do pesquisador mais do que sua capacidade de compreensão e explicação, uma vez que é da sua própria implicação e acoplamento com o objeto pesquisado que se produzirão resultados tanto sobre o mundo perspectivado quanto daquilo que seus próprios corpos podem e suportam vir a pensar. Pensamento e vida, pesquisa e vida encontram-se, então, intrincados em uma rede de ressonâncias cujos resultados vão para além da invenção de mundos: referem-se, agora, também aos cuidados de si e à autopoiese do próprio pesquisador e pesquisado.

Não se trata, pois, de um passado embalsamado cuja atualidade seria sinônimo de intemporal. Foge da concepção apologética e repetitiva e forja a narrativa de uma vida como intensidade, ou seja, desde o vir-a-ser de suas potências. É essa atualidade intensiva que vem designar as ressurgências de elementos ocultos, esquecidos diria Proust, recalcados diria Freud, do passado no presente. (Fonseca, 2011, p. 206)

Trata-se, agora, de produzir a história do presente a partir do trauma, ou seja, daquilo que, por ter sido grande demais para os sujeitos que o experimentaram, impediu-os de dizê-lo ou representá-lo e cujos restos a dizer acabou historicamente sendo locupletado, por “explicações” forjadas pelas mãos dos poderes – científicos e jurídicos - guiados por valores de uma moral higienista, de controle, restaurativa e normalizadora. Acreditamos que, em nossa tarefa de ensino e pesquisa, pudéssemos ainda vir a intensificar o próprio processo de transmissão às gerações jovens de uma outra história social, de um Outro da história, agora narrada em primeira pessoa e despojada de brilhantes e narcísicos heroísmos. Agora, damos-lhe o nome de testemunhos, considerando-as como a tomada da palavra que vem exatamente causar fissuras e desvios naquilo que as camadas temporais do arquivo contemplam.

Mergulhar o arquivo na zona cinzenta do testemunho implica reconhecer não ser possível contar a história das infâmias a partir de uma pretensão totalizante e unitária. Ali, nos testemunhos, naquele cinza-escuro de uma linguagem titubeante e gaga, emitida desde um grande demais para ser representado simbolicamente, coexistem restos a dizer, restos a lembrar e conhecer que, não tendo sido jamais narrados e descritos, ainda jazem embrulhados e apertados nas palavras-cadáver que os pronunciaram e os fizeram cair, quando já caídos pela desrazão e seu sofrimento, pela primeira vez.

O problema que transversaliza nosso ensaio força-nos à crítica frente aos modos como temos sido governados (objetos infames e notáveis pesquisadores): os limites daquilo que podemos ver e dizer. Gostaríamos de contrapor nosso arquivo da diferença com o estabelecido arquivo imóvel das verdades sociais, científicas e jurídicas. Não se trata da instalação de tribunais da verdade, uma vez que não estamos movidos pela moral do julgamento e por acreditarmos serem parciais nossas contribuições tanto quanto o são e foram aquelas que, um dia, se realizaram como sentença ajuizadora e implacável. Aqui, não se trata mais da verdade e sim de sua crise, não se trata mais da história contada, sabida e arquivada, mas sim de sua reescritura a partir de outros pontos de vista delirantes. Não ficamos imobilizados nas profundezas de um arquivo dos saberes passados e consagrados: profanamos o arquivo sagrado das escrituras ao retornar à superfície contemporânea: nosso presente é mais do que aquilo que nele se atualizou e efetuou, sendo, pois, um reservatório de virtuais que podem ser ativados na direção de novas composições e novas paisagens, aquele tempo não-reconciliado (Pelbart, 1998).

Agora, o pesquisador da Psicologia Social, mesmo não sendo historiador, vai embrenhar-se na problemática dos arquivos da história da infâmia, fazendo-os confrontar-se com os testemunhos de seus sobreviventes. Ele próprio tornar-se-á testemunha de testemunhas, sendo sua própria pesquisa um dispositivo para fazer falar e dar a ver aquilo que ficou entalado em muitas gargantas. Neste sentido, é o próprio mundo que passa a ser perspectivado tanto como produção quanto lugar de produção; o próprio mundo é considerado como fábrica e fabricante e a linguagem que lhe dá sentido, o veste exatamente nos limites daquilo que o regime discursivo enuncia e nomeia. Aqui, nos interessa incluir a questão da insuficiência da própria linguagem e seu fracasso diante daquilo que é gestado pelo tempo do acontecimento catastrófico e fora dos trilhos da reta razão. Não sendo historiadores, tampouco jornalistas e repórteres, queremos, no entanto, ensejar uma experiência de constituirmo-nos como corpos-de-passagem para o inominável e para o inenarrável. Não sendo escritores, cineastas ou pintores, gostaríamos de nos aproximar das artes de dizer o abjeto, desta arte de dizer o que é grande demais para ser dito, aproximando nossa produção acadêmica daquela experimentação própria a uma cognição que considera a razão como sendo da ordem do sensível, da invenção.

Estes restos - da história e dos sujeitos -, também concernem aos restos do pesquisador e de seus modos de expressão, pois este deverá estar à altura para vir a dizer o não-dito. Pesquisador e pesquisado se unem, assim, se desfazem a si mesmos, porque renunciam ao lugar da representação, renunciam ao lugar dos cânones. A narrativa se volve à produção de uma heterotopia (Foucault, 2001): à constituição de um território estranho, que nos permite vislumbrar o absurdo que sustenta a obviedade, o extraordinário que permeia o banal, a crueldade que banha as melhores intenções de salvação. Deste modo, a produção biografemática de vidas infames nos leva a romper com os sistemas de aceitabilidade vigentes (Foucault, 1978). Narramos a contrapelo o indizível com as forças poéticas da ficção e da terra arrasada dos espaços de produção da infâmia.

Vejamos, então, três problematizações desta prática de narrar vidas infames. Pensaremos nos limites e ultrapassagens da linguagem e das narrativas diante do trauma e da morte com Benjamin e Blanchot. Questionaremos a autoridade do juízo retomando a positividade do falso com as preensões de Whitehead e as articulações de Latour a produzirem narrativas-coisas. Acompanharemos o percurso que costura narrativa e infâmia na biografemática. Três tapeçarias conceituais que compõem o campo problemático que nos permite a questão fundamental de nosso trabalho: o que podem as escritas infames?

2 Narrativa, experiência e morte: a escrita do trauma
saltando o dizível

A narrativa é o local da experiência no discurso. O narrador é aquele que ainda é capaz de transmitir a experiência, pois aquilo que conta deriva tanto de suas experiências quanto do que lhe foi relatado. Através da narrativa deparamo-nos com o mais próximo e com o mais distante, com a experiência de nosso cotidiano e com os ensinamentos da tradição. A experiência, tal como é concebida por Walter Benjamin (1994), não se refere a qualquer vivência de um sujeito individual, constitui antes uma experiência coletiva, comum. Uma vivência que só obtém sentido porque integra-se em um modo de vida que já está dado e organizado, e que até recentemente configurou-se pela autoridade da tradição. Temos, contudo, cada vez menos experiências, para não dizer que a perdemos completamente. Ao mesmo tempo que nossa vida enche-se de informação, não temos uma experiência sequer. A experiência comum tornou-se privada. É o soldado que volta da guerra sem nada para contar, ou o sujeito que diante da torrente de notícias logo esquece.

Enquanto havia experiência a narrativa ainda podia dar conselhos. O conselho não tinha a função nem de ser uma explicação, nem um direcionamento, deveria antes estabelecer uma continuidade, permitir que a história contada pudesse prosseguir. O romance, por sua vez, não aconselha, pois não constitui mais uma narrativa, encontra-se por completo no âmbito da experiência privada e individual. O relato psicológico é um dos aspectos essenciais do romance, pois o leitor deve ser conduzido, deve encontrar uma história com objeto, com resolução e, acima de tudo, com explicações. No romance o indivíduo encontra seu sentido, que não é o mesmo da experiência, apartado do comum e submetido a uma ordem de significação já dada. Algo similar acontece com a historiografia, cujos acontecimentos históricos que narra são submetidos a causas e explicações, e conformam-se a um ordem teleológica maior: o progresso.

A narrativa funda-se na autoridade da tradição, pois é a garantia da continuidade dos costumes e do modo de vida que permite decidir quais vivências são experiências, quais delas podem destacar-se do fundo opaco da existência. Entretanto, o verdadeiro fundamento da autoridade é a morte, dado que as coisas são limitadas, uma vez que eventualmente encontram seu fim, é que devemos dar-lhes continuidade, e o próprio fim deve se tornar um acontecimento. É a diferença entre o homem medieval, que morria em sua própria cama – no mesmo quarto em que seus ancestrais viveram e morreram –, e o homem moderno, que morre no hospital, morte quase anônima, na cama e no quarto de ninguém. A morte é esquecida, assim como as experiências cotidianas e as noticias que não narram mais o fabuloso, o distante e o incomum, mas apenas o banal e o irrelevante.

A tradição, e a própria morte, não podem mais constituir o fundamento para a narrativa. Como então podemos pensar, e fazer, uma nova narrativa? Talvez o traço essencial da narrativa esteja não na autoridade, mas em sua ausência de explicações. O cronista é o narrador da história, que ao abandonar o progresso, a ordem e toda a teleologia, “narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e pequenos” (Benjamin, 1994, p. 223) Ausência de distinção, grandes e pequenos acontecimentos, um ao lado do outro. Ao não dar explicações a narrativa abre o espaço para a ambiguidade, para a coexistência da contradição e da diferença. Tanto o romance quanto a história teleológica assumem a existência de um mundo único, que comporta apenas uma maneira de contar a verdade, que deve traçar sua rede de causalidades até o início dos tempos. O narrador, ou o cronista, narra algo que experienciou ou que lhe foi relatado, e que, contudo, não é uma mera representação ou descrição de uma objetividade. A narrativa toma a experiência e a eleva a um status maior do que a própria vida daquele que a viveu, pois a coloca no âmbito de uma experiência comum cuja continuidade mantém-se há gerações, e cuja novidade encontra seu lugar entre o conhecido e habitual. Uma vez tendo perdido essa continuidade, é na ambiguidade que podemos encontrar um novo espaço para a narrativa. Ao abrir mão de um sentido unívoco, a narrativa recoloca a experiência vivida em um âmbito que não a restringe mais a uma individualidade psicológica nem a uma ordem teleológica: a experiência é retomada pela incerteza e pela indeterminação que lhe é inerente e permitiu a Georges Bataille (1944/1992) identificandar a mesma crise apontada por Benjamin, dizendo que a própria experiência é a autoridade, em sua imanência.

Maurice Blanchot (1969/2010) problematiza a relação entre narrativa e romance de forma similar a Walter Benjamin (1994). Quando a voz narrativa de um “eu”, de uma primeira pessoa que a princípio designa o próprio autor, é transformada para o “ele”, essa terceira pessoa adquire dois papéis distintos no romance. A princípio, a narrativa em terceira pessoa designa uma objetividade, pois o autor coloca-se fora da evidência de sua própria experiência, narra fatos que lhe são externos. O “ele” garante a separação entre o dentro e o fora, um ponto de vista exterior que observa uma história sem nela intervir: perspectiva da própria “história” e visão do leitor, que ao situar-se nesse ponto de vantagem pode ser a testemunha e o juiz dos fatos.

Inversamente, a terceira pessoa pode designar também o aspecto subjetivo dos personagens que compõem a novela. Se a narrativa em primeira pessoa pode constituir o domínio em que o “eu” privado do autor é exposto, direta ou indiretamente, ao se utilizar a terceira pessoa a subjetividade do autor é colocada em segundo plano, dando espaço para que os egos de seus personagens possam ser expostos em suas vidas individuais. Cada uma dessas vidas pode ser observada e analisada independentemente da subjetividade daquele que escreve.

A narrativa em terceira pessoa, contudo, refere-se a muito mais que uma mera transformação no modo, essencialmente burguês, de narrar histórias privadas e intimas repletas de acontecimentos em que nada acontece. A terceira pessoa aponta para uma impessoalidade ainda mais profunda, para uma neutralidade própria à linguagem que a faz escapar de toda forma de revelação ou obscuridade. Para Blanchot (1969/2010) a narrativa é o espaço da neutralidade, onde nada é afirmado e, ao mesmo tempo, nada pode ser negado.

Quando falamos sobre algo, o objeto de nosso enunciado desaparece. Ao dizer “árvore” ou “gato”, nossa palavra não contém nem um, nem outro. Aquilo que perdemos ao pronunciar a palavra nos é restituído através do sentido. A árvore desapareceu, mas agora tem seu significado, a sua representação. A linguagem opera então um jogo de substituição e redistribuição. Perdemos as coisas, mas ganhamos as palavras. Se o sentido é possível é porque de algum modo pode existir uma relação entre coisas e palavras, que em certa medida o mundo pode ser mapeado, e cujo jogo de correspondências constitui aquilo que chamamos de conhecimento ou verdade.

Se a palavra torna a coisa ausente, o faz por uma insuficiência. Ao dizer “árvore” perdemos a árvore em toda a sua multiplicidade, em toda a diversidade de perspectivas e significados que lhe podem ser atribuídos. Podemos utilizar mais e mais palavras para tentar descrevê-la exaustivamente, mas alguma coisa sempre escapará. Jorge Luis Borges (1972) conta a história de Funes, que um dia, após um acidente, ganhou uma memória absoluta. Daquele momento em diante nada mais seria esquecido, tornando a linguagem uma experiência impossível. Pois, para Funes, o gato que viu de manhã e o gato que viu de tarde não pode ser o mesmo gato. Tudo mudou. Seria necessário que existisse uma palavra para cada coisa, a cada instante. Apontar para um objeto e dar-lhe um nome, um número, um par. Tomar uma coisa por outra. É a linguagem em seu uso mais primordial e primitivo, anterior ao próprio pensamento. Ao mesmo tempo, Funes arruína toda possibilidade de linguagem e pensamento. “Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.” (Borges, 1972, pp. 124-125) A linguagem, e também o pensamento, precisa do esquecimento, pois opera por generalizações, e torna todos os gatos o mesmo gato, todas as árvores a mesma árvore. Há um excesso de coisas, e nos faltam as palavras para designá-las todas.

Blanchot (1969/2010), entretanto, propõe-nos o inverso: são as coisas que faltam às palavras, há sempre um excesso de linguagem. A partir da leitura que Russel faz de Wittgenstein, toda linguagem tem um limite, existe sempre algo que não pode ser dito e sobre o qual deve-se calar. Mas essa linguagem pode ser retomada por uma linguagem de nível superior que pode falar o que a primeira não podia, e que por sua vez também terá algo de indizível. Pode-se repetir esse movimento até o infinito. O essencial é que sempre existe um ponto cego na linguagem, um Outro indizível. O que apresenta-se aií não é a incapacidade de nomear, mas justamente que a linguagem pode falar de sua própria ausência. Pois o que faz com que a linguagem ultrapasse as coisas é justamente a capacidade de dizer a ausência. A coisa é sempre presente e só existe na medida em que se dá nessa presença. Uma coisa não pode atestar sobre sua própria ausência. Mas se o espaço vazio na parede, o quadro que falta, a disposição de objetos em uma sala que apenas nos mostram tudo o que ali falta? Ainda há presença, pois é uma ausência significativa, é um conjunto que existe ao redor de uma carta roubada, ausente mas ainda organizadora das relações.

A ausência de que fala Blanchot (1949/1997; 1959/2005) é mais profunda, ou melhor, sem profundidade alguma. É a ausência da coisa que não pode ser retomada por nenhum significado ou ordenação. A palavra perde a coisa, mas ao situarmo-nos nessa perda, sem tentar restituí-la ao domínio do sentido, deparamo-nos com a ambiguidade e o paradoxo. A relação de sentido é ainda uma relação de poder, não muito diferente do trabalho que transforma o mundo. Ao construir uma mesa o artesão deve primeiro negar a árvore, deve matá-la. É uma relação dialética, onde a árvore e sua negação têm sua síntese no objeto construído pelo trabalho do homem, a mesa. O sentido opera a mesma síntese, pois resolve a contradição entre a coisa designada e sua ausência. Ao abrir mão da síntese, o que há é uma pura contradição sem resolução. Mais precisamente, a palavra torna-se diferença, multiplicidade, abrindo-se em todas as direções ao mesmo tempo, já que não precisa mais ser submeter a um entendimento, compreensão, ordem ou sentido único. É o neutro, espaço que abandona toda a identidade, que não possui mais critério comum capaz de comparar ou organizar o que lhe habita, onde a palavra abre-se para a relação da pura diferença.

Se em Walter Benjamin (1994) a narrativa deriva sua autoridade da morte, da necessidade de dar continuidade ao que desaparece, em Maurice Blanchot (1949/1997; 1959/2005) a narrativa também encontra sua possibilidade na morte, mas de uma morte que já se situa completamente fora do domínio da possibilidade. A linguagem constitui-se fundamentalmente como ausência, que provém da relação única que estabelece com a morte. Na relação dialética, como vimos, a morte ainda é um ato de poder, é a ação transformadora do homem sobre o mundo, que precisa destruir para criar. Morte enquanto potência. Encontramos algo similar em Benjamin, que ao buscar uma morte única e pessoal, ao invés da morte anônima, a morte de qualquer um, ainda a toma como um poder, como algo que pode ser apropriado e tornado seu, uma potência.

É porque tudo pode morrer que podemos falar de sua ausência. A palavra é sempre um assassinato diferido, uma sentença de morte. Essa morte, contudo, não permite mais que uma continuidade seja estabelecida, nem que uma vida seja individualizada. A morte, para Blanchot (1949/1997), é tudo aquilo com o qual não podemos nos relacionar. A morte é impossível, é a própria impossibilidade. Mesmo no suicídio a morte nos escapa, pois aquele que morre desaparece, não há mais uma presença capaz de morrer. No momento exato em que morremos a morte nos escapa. A morte nos torna incapazes de morrer, pois não há mais um nós, nem mesmo um eu. A morte nunca é minha. Quando a palavra abandona-se à sua própria ausência, quando abandona todo o poder do sentido, abre-se para a impotência da morte, para esse espaço onde não é mais possível agir, nem não-agir. A ambiguidade da ausência é muito mais profunda que uma multiplicidade de sentidos ou polissemia, é a ambiguidade da própria morte, da incapacidade tanto de escolher quanto de não-escolher.

Se a experiência tornou-se impossível, pois não temos mais a segurança de uma tradição, nem a continuidade perante a morte, como podemos, novamente, narrar? Benjamin nos apontou o caminho da ambiguidade, de uma narrativa sem explicações, aberta ao acontecimento. Blanchot (1959/2005), por sua vez, estabelece uma nova relação com a morte, a relação de uma não-relação, o que permite reconstituir a narrativa não como “relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também ela, realizar-se.” (p. 8) Se a narrativa não pode se restringir ao formato dos romances e novelas burguesas é porque não representa mais nada, não fala nem de uma intimidade, nem de uma realidade, mas constitui um puro acontecimento, desdobra o tempo em duas direções simultaneamente: o que nunca aconteceu e o que sempre foi. Quando o juiz declara o acusado como assassino, tudo muda, e tudo permanece igual. A partir daquele instante ele sempre foi, e sempre será um assassino, apesar de antes disso nunca ter o sido. (Deleuze & Guattari, 1980/1995) Duas ordens temporais se encontram, coexistem e jamais se resolvem. A narrativa é o espaço dessa ambiguidade.

Toda ambiguidade vem da ambiguidade do tempo que aqui se introduz, e que permite dizer e experimentar que a imagem fascinante da experiência está, em certo momento, presente, ao passo que essa experiência não pertence a nenhum presente, e até destrói o presente em que parece introduzir-se. (Blanchot, 1959/2005, p. 12).

O desastre é que tudo transforma, sem nada mudar, o que ainda vai acontecer e que já acontece desde tempos imemoriais. (Blanchot, 1980/1990) A narrativa em nossa experiência contemporânea pode se dar apenas nesse espaço do desastre e do acontecimento, ao abrir-se para o impossível da morte de uma experiência que autoriza a si mesma, ao levar-se ao seu limite, enquanto experiência do próprio limite. Narrativa do desastre e da infâmia que nos permite ampliar a potência da escrita dizer menoridades, porcarias para as quais não se inventou palavra ou língua.

3 Narrativa, preensões e vida: a escrita do delírio saltando o juízo

De maneira algo diferentemente, mas não oposta, a Blanchot e Benjamin; Gilles Deleuze, Bruno Latour e Alfred North Whitehead não centram a relação do sentido na ausência do objeto ou em uma relação dialética entre palavra e coisa, ainda que também se pautem pela ética da abertura das potências expressivas ao livrar-nos da gravidade do juízo. Nestes autores não existe uma diferença substancial entre o universo simbólico da linguagem e o mundo material dos entes: ambos são paradoxalmente constituídos na imanência mundana. A divisão destes mundos costuma substancializar as coisas na matéria (res extensa cartesiana) e desmaterializar a realidade das palavras em um universo transcendente (res cogitans cartesiana), mas tais proposições se esquecem que antes de bifurcar a natureza em dois mundos podemos uni-las na imanência da ação: coisas, palavras, conceitos e objetos existem em nosso mundo como ações, acontecimentos, eventos, processos, relações, etc. Gilles Deleuze, por exemplo, em seu Crítica e clínica (1997) e na obra Lógica do sentido (1969/1975), ao referir-se a Antonin Artaud e Lewis Carrol, afirma que as séries comer-cagar e escutar-falar não são divergentes: “Palavras-sopro, limites assintáticos para onde tende toda linguagem” (Deleuze, 1997, p. 16). O saber não se opõe à vida, nem bifurca a natureza em duas: comer, falar, cagar, afirmar, sugar e respirar, estão todos imanentes uns aos outros no complexo de relações em dobra que somos nós. Comer, defecar, escutar e falar são sem exceção complexos artifícios da transformação-expressão do mundo: “Alimentos e palavras maternas são a vida, línguas estrangeiras e fórmulas atômicas o saber” (Deleuze, 1997, p. 24). Se as dimensões da designação e do significado se referem a uma abstração representacional que simplifica ao mundo constituindo a palavra como analogia formal generalizada das coisas, as dimensões da enunciação e do sentido agarram da proposição o que essa tem de concreto: sua ação no mundo em uma série de variações, de transformações que não cessam.

A palavra tomada como ação de transformação do mundo e não como representação é o que encontramos no conceito de "referente circulante" em Bruno Latour (2001): não há um abismo entre palavra e coisa, ontologia e epistemologia, há sim uma imanência entre estes e uma infinidade de articulações híbridas destes na produção do saber. Jamais temos palavras ou coisas puras, mas sempre híbridos de palavras-coisas e coisas-palavras que garantem sua correspondência através de uma série de transformações entre, por exemplo, uma acácia na mata e sua escrita em um manual de botânica. É uma série de transformações que produz estas variações de palavra-coisa: palavra e estado de coisas se relacionam por ações de transformações, pela diferença, e não por uma semelhança abstrata.

Mas esses atos de referência estão tanto mais assegurados quanto confiam, não apenas na semelhança, mas em uma série regulada de transformações, transmutações e translações. Uma coisa pode durar mais e ser levada mais longe, com maior rapidez, se continuar a sofrer transformações a cada etapa desta longa cadeia (Latour, 2001, p. 74).

Não há um abismo entre a mente e o mundo que é transposto pela referência ou pelo fenômeno. Temos apenas um mundo que circula articulado de diferentes modos transformando a um só tempo sujeitos e objetos pelas estratégias de transformação-articulação entre eles. Para melhor compreender esta concepção da linguagem como mundo e não como comunicação, e da experiência como ontologia e não como epistemologia, podemos sacar mão, como Latour (2001), do conceito de preensão de Alfred North Whitehead (1929/1956). A preensão é uma operação, a um só tempo, ontológica e epistêmica. Em um universo-evento em constante processo de criação, a preensão é um encontro de ações que constitui uma relação a qual, por sua vez, pode constituir um ente (sujeito/superjeto): o “eu” nada mais é que uma direção vetorial nestes sentires que os tornam sentires de mim, sentires dos sentires que agora denomino meus. A preensão é um quantum de experiência, um sentir, tanto o eu (sentir-se, sentir reflexivo em dobra) quanto o mundo mesmo são um mar de gotas experienciais concretas (onto-epistêmicas). Tais preensões provocam acontecimentos (eventos-mundo) os quais seguem séries de variações: estas séries de variações são as "ocasiões atuais" (Whitehead, 1929/1956), equivalentes ao que denominamos vulgarmente "objetos". Os entes do mundo são, portanto, não substâncias mas sim séries de preensões (sentires). As ocasiões atuais “son gotas de experiencia, complejas e interdependientes” (Whitehead, 1929/1956, p. 37). Tal concepção nos permite ultrapassar o abismo entre coisa e experiência, entre palavra e objeto, indo muito além da concepção simplista de representação como correspondência de analogia.

Partindo deste universo conceitual, vemos que enquanto o sentir cartesiano (a experiência sensível em Descartes) é o “me parece que” (me parece que ouço um ruído, por exemplo), em Whitehead o sentir é o “é” da ontologia e não mais mera aparência. O mundo é processo, processo é sentir, e entender é uma forma específica de sentir, que também é ser (Whitehead, 1929/1956, p. 213). Deste modo, constituir narrativas do mundo é transformar a ele e a nós mesmos. Assim, constituímos nossos objetos e nós mesmos, tecendo uma rede de artifícios especulativos que tomam ou não corpo em ressonâncias, preensões que adquirem a consistência de nexos, erigindo uma série de ocasiões atuais a partir dos devires potenciais do mundo (virtual).

Para Whitehead, as virtualidades também fazem parte do ser, da ontologia, posto que aqui "ser" é tudo aquilo que age na produção de preensões, na invenção de ser: “Esto es una ejemplificación del princípio categorial de que el caracter metafísico general de ser una entidad es ‘ser un determinante en el devenir de actualidades” (Whitehead, 1929/1956, p. 348). Assim, tecendo preensões de corpos, órgãos, personagens e tudo mais que há no mundo, constituímos o mundo mesmo, em variações de si, em um devir de criação do qual participamos a cada instante com cada gesto. Assim vamos, gerando novas relações no mundo que novas relações são em nós. Complexificamos a trama de nós mesmos e do mundo. Somos, de certo modo, a ficção do mundo que nos escreve em nós e conosco. Estas afirmações de mundo se dão através de proposições-mundo: para Whitehead proposições são seres híbridos entre preensões indicativas (designação) e conceituais (significados), os quais nos possibilitam a articulação com o mundo (consciente e inconsciente). Proposições são afirmações no/sobre o mundo as quais são necessariamente verdadeiras ou falsas, se submetem ao juízo ao se disporem a uma relação com a atualidade do mundo, suas formas constituídas. No entanto, no que se refere às virtualidades tal submissão ao juízo não se aplica: Whitehead denomina como "Potenciais" (1929/1956) ao universo das singularidades (preensões) que ultrapassam as "ocasiões atuais" (o atual), mas que seguem agindo sobre estas (existem).

Nossas narrativas afirmam um território transversal entre o atual e o virtual que estabelece uma relação única com o juízo: se podemos aplicar a categoria juízo às coisas delimitadas pelos condicionamentos da atualidade, por outro lado a falsidade das mesmas não incorre em não existência, em negatividade, em negação da proposição. Neste universo onto-epistêmico se admite o sentido do falso, sua positividade ontológica. Assim, se lhes afirmo que agora estou fazendo compras no supermercado, lhes estou dizendo algo falso. Deste modo, o falso existe. Do mesmo modo, se lhes afirmo algo absurdo como "eu, que escuto o som áspero e grave que acompanha cada amanhecer", posso dizer que ninguém escuta amanheceres, mas mesmo assim posso afirmar a existência de sentido nesta frase (os nebulosos sentidos do non-sense), posto que independente de sua relação com os supostos referentes ela se articula em nossas preensões. Ao diminuirmos a importância do juízo em nossas narrativas, nós intensificamos nossa capacidade de nos articularmos com o virtual, com os potenciais, e nos tornamos mais capazes para escrever sobre as sutilezas e singularidades dos restos de vida infâmia.

Whitehead nos chama a atenção para o fato de que a existência de verdade e falsidade difere em muito da existência de um metajuízo que nos leve a preferir uma sobre a outra: isso seria a moralização da falsidade e da verdade. A preferência dos lógicos pelas proposições (potenciais de atualização) verdadeiras moralizou a lógica e obscureceu as possibilidades (potências) das proposições com tal restrição moral: “Pero en el mundo real es más importante que una proposición sea interesante que no sea verdadera” (Whitehead, 1929/1956, p. 351). A submissão das proposições ao juízo fez com que não pudéssemos ver o valor de criação do falso para além da moralização do juízo com a preferência pelo verdadeiro. Como podemos então retomar a realidade do falso para produzir novas visibilidades e outras possibilidades do dizer? Uma das maneiras mais eficientes é utilizar-se da ficção livre das amarras da verossimilhança: utilizamo-nos da ficção que não se vê como representação de um referente verdadeiro:

En la literatura imaginativa esta incitación [do juízo moralizante] resulta inhibida por el contexto general, y aún por la forma y disposición del libro material. A veces hasta hay una forma de palabras designada para inhibir la formación de un sentir de juicio, tal como ‘en otro tiempo’ (Whitehead, 1929/1956, p. 352).

Partimos da ontologia acima para deslocar nosso bom senso e extravasar modos de vida infames que foram extremamente limitados por uma violência estatal. Ficcionamos narrativas-malditas que incrementam a complexidade e singularidade de nossa preensão-mundo pelo encontro delirante com a loucura.

4 Narrativas, testemunho e biografemática: a escrita da infâmia saltando os gritos do silêncio

Torna-se necessário tecer intempestivas conexões entre as noções de “Vida Infame” (Foucault, 2006) e “Biografema” (Barthes, 1977; 1971/2005). Tais noções agenciam um modo de fazer pesquisa problematizando os modos de dizer e escrever uma vida, ou seja, os modos de narrar os encontros com vidas que poderíamos consideram “infames”. Vidas que teriam passado em branco, insuspeitas e invisíveis não fossem seus “cruzamentos com o poder” (Foucault, 2006). Nesses ganharam um diagnóstico, uma pena de prisão, ou outras formas de confinamento e privação de sua potência de agir. Em seu famoso texto escrito em 1977, Michel Foucault (2006, p. 199) afirma: “Este não é um livro de história”, frase que nos remete à Segunda Consideração Intempestiva de Friedrich Nietzsche (1874/2003) quando o filósofo faz uma intensa crítica à história e aos modos hegemônicos de narrar os acontecimentos. De acordo com o filósofo alemão, se priorizou contar a história dos grandes reis, dos bispos ou generais, pelo viés dos regimes de verdade produzidos pelos discursos daquele que se mantêm no poder. Há, porém, um outro modo de narrar os acontecimentos que corresponde a ir contra a história, em busca o a-histórico imanente ao acontecimento; “tornar-se um guerreiro contra o seu tempo (Nietzsche, 1874/2003), recolher seus restos, suas dobras, intensidades. É nesse sentido que o agenciamento conceitual entre “Vidas Infames” e “Biografema” se torna efetivo e potente. Michel Foucault aponta uma linha de pesquisa e produção de conhecimento ao examinar nos arquivos de internamento do Hospital Geral e da Bastilha “É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso em livros ou documentos” (Foucault, 2006, p. 199).

Nietzsche nos faz atentar ao excesso de história pelo qual a sociedade de modo geral tem passado, uma história que está ligada ao modo como os acontecimentos são contados pelos vencedores como coronéis, padres, príncipes, políticos, celebridades. Devemos buscar os acontecimentos sub-reptícios, os sussurros, das vidas marginalizadas que passariam sem deixar vestígios mas que, ao cruzarem com o poder, produziram algum registro, deixaram algum rastro, um vulto. “O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. (Foucault, 2006, p. 207). Trata-se de escrever uma biografia de uma vida esquecida, que passa pelas frestas dos discursos estabelecidos. O arquivo e testemunho podem expressar, portanto, potências de esquecimento e de memória, de discurso e de silêncio: “Entre memória obsessiva da tradição, que conhece apenas o já dito, e a demasiada desenvoltura do esquecimento, que se entrega unicamente ao nunca dito, o arquivo é o não dito ou o indizível inscrito em cada dito, pelo fato de ter sido enunciado, o fragmento de memória que se esquece toda vez no ato de dizer ‘eu’ (Agamben, 1998/2008, p. 145). Seria por demais inocente, deixar de expressar as arapucas do juízo de verdade que nos envolvem sutilmente neste jogo. O arquivo nos toma pelo claustrofóbico excesso: uma série de ausências ressonantes ondulam o acontecimento, ar pesado pela saturação de populações de fungos, traças e pó. Nem sempre tudo flui, os pesquisadores não são poetas ou anjos sensíveis e puros.

Quis também que essas personagens fossem elas próprias obscuras; que nada as predispusesse a um clarão qualquer, que não fossem dotadas de nenhuma dessas grandezas estabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do gênio; que pertencessem a esses milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastro. (Foucault, 2006, p. 206).

Escutemos, pois, a escrita de Solange Gonçalves Luciano (Sol), frequentadora da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro e do Ateliê de Escrita. Num dos nossos encontros Sol escreveu:

Por que insistir em querer explicar o que te foi negado por mais de 40 anos? Ô neguinha, vai por mim, eu bem vi que semanas atrás mais uma vez tentaste abrir a porta para que aquele ser que estuda e se envolve no mundo psiquiatral, ele não vigiou, abreviou o curto tempo de espaço o qual você ofereceu pra mais uma vez abrir a porta de teu próprio ser interiorizado o qual só tu conhece, mas que há anos tenta compartilhar com outros seres ou talvez o único ser capaz de te oferecer ou te dar a chance de abrir a tua porta e convidá-lo a tomar café experimental, chazinho experimental e interiorizal ou por que não se banquetear experimentalmente o interiorizar oculto o qual os seres externos teimam em não se dar conta de que estão com óculos escuros e não atinam tirá-los para que possam adentrar em tua casa individual! Que não faz parte desse condomínio que os rodeia. (Luciano, 2014, p. 34).

Sol não é do tipo de paciente que silencia frente às gritarias de um “mundo psiquiatral”. Solange usa a escrita como liberação de forças criativas que a habitam nela. A potente escritora teria sido apenas mais uma vivente a existir nesse mundão afora. Porém, Sol, como é chamada, em algum momento de sua vida cruzou com o poder. Deste cruzamento com o poder psiquiátrico, ela ganha um número e um prontuário. Um registro. Receitas, doses, chás e cafés. O que lhe teria sido negado por esse 40 anos? Sol é mais uma vida real submetida aos regimes disciplinares cotidianos. Ela testemunha as entranhas das instituições manicomiais, faz delas, poesia como uma respiração. Sol adora a cor rosa. É uma das suas preferidas. Não é um rosa comum. É um tipo de rosa singular que ilumina aquelas espécies de espaços onde prolifera musgo de tempos cronificados. Os tons de sua escrita expressam um estilo de composição textual delirante. “Te dar a chance de abrir a porta e convidá-lo a tomar um café experimental, chazinho experimental ou por que não se banquetear experimentalmente o interiorizar oculto” (Luciano, 2014, p. 34). Em suas escrituras e posicionamentos micropolíticos, uma estreita relação entre corpo e silêncio, entre expressão, criação e testemunho. Suas escrituras infames saltam gritos de silêncio

Nos espaços de abandono há corpos que oferecem um testemunho de sua resistência silenciosa. A experiência-limite de um corpo que, no maior abandono, nasce infinitamente, constitui uma intensa experiência de sentido. Essa condição de presença de um corpo singular vai conduzir, simultaneamente, a um pensamento sobre o corpo como acontecimento e a um pensamento sobre o acontecimento do testemunho de um corpo silencioso que resiste (Vilela, 2010 p. 20).

Ainda que se esteja entregue à experiência de escrever, o que se escreve é, praticamente, o rumores de uma mudez. No entanto, é num impensável silêncio na escrita que está sua potência afetiva, e assim sendo, sua potência de provocar outras invenções possíveis cujas leituras podem vir a efetuar uma ação micropolítica ou uma sutil vontade de escritura. A vontade de escrever pode vir a ser uma ação micropolítica. “Escrever é encarar a impossibilidade de escrever, é, como o céu, ser mudo, “ser eco apenas da mudez”; mas escrever é nomear o silêncio, é escrever impedindo-se de escrever” (Blanchot, 1949/1997, p. 32). Uma ação micropolítica envolve um agenciamento no campo relacional e, portanto, social, e no mais das vezes, não é possível silenciar. E, ao mesmo tempo, é num silêncio vivo que é possível agir. Agir pela força do próprio desejo e assim não se deixar governar peças palavras institucionais que obrigaram silêncios.

Um pesquisador frente a tais afetos sente-se subtraído. Sua pele parece se distender abrindo outros planos de composição numa zona entre mundos. Entre corpos: um encontro. Escreve Waly Salomão: “agora, entre o meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu” (Salomão, 1996, p. 21). É neste ponto que escrevemos. Como escreve Deleuze (2008), um narrador nadador que compõe com a onda buscando a força plena no entre ele e o mar. Entre vida e escrita, um modo de pesquisar passa a verter intensiva e intempestivamente. A escrita biografemática (Barthes, 1977; 1971/2005) se efetua nessa zona de confluência entre sujeito e mundo. Cria planos de composição e consistência afirmando um constante processo de desterritorialização e reterritorialização. Um biografema envolve encontros com fragmentos de uma vida, tramas esquecidas de histórias sub-reptícias. Racha as palavras nos levando a pensar outro modo de escrita, seja ela biográfica, um caso, uma pesquisa. Problematiza o modo como escutamos, escrevemos e inventamos uma vida. Há, pois, uma certa micropolítica contida nesses modos de narrar uma vida: escritas com uma vida sempre escapa. Uma vida não é encontrada como se encontra uma substância concreta, mas sim fabulada. Afirmamos, então, aquilo que poderíamos chamar de um ensaio experimental que flerta com uma escrita na espreita daquilo que não se vê. Um texto como passagem. Breve viagem que não se escora em lógicas racionais, ginga frente a verdades discursivas e se esforça para não cair nas armadilhas da moral ou do juízo cujo campo de possibilidades narrativas provoca justamente a escrita de uma vida a partir de suas imprecisões, seus fragmentos, seus detalhes aparentemente insignificantes, suas intensidades e afectos. Diz respeito a como o outro se presentifica em nós. Como o corpo absorve as passagens, devires e multiplicidades imanentes ao encontro. Algo como escrever agenciamentos tornando possível ao corpo percorrer a enseada louca do espírito, onde ficção e realidade se conjugam. Acontecimento que pode criar a escrita de uma vida.

Na obra de Roland Barthes, não se encontra um conceito de biografema pronto e acabado, mas sim, um modo de operação conceitual e metodológica, um conceito operador de um certo modo de escrever, um modo de relação da escritura e com uma vida.

Uma vida esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra, ou então um filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens (esse flumenorationis em que talvez consista o lado porco da escritura) é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito do intertítulo, pela interrupção desenvolta de outro significante (Barthes, 1971/2005, p. XVII).

A noção de biografema aparece em livros como Roland Barthes por Roland Barthes (1977) e Sade, Fourier e Loyola (1971/2005). No primeiro, Barthes escreve com sua própria vida, um texto composto por séries de fragmentos, onde o autor não escreve somente em primeira pessoa, como seria de se supor, mas sim escreve usando a terceira pessoa do singular.A leitura do livro acontece de forma distraída, dispersa, prazerosa. Barthes escreve passagens de sua vida, detalhes, intenções, fragmentos, pequenezas. Assim, ao efetivar esta operação com a escrita, afirma a potência intempestiva da vida pulsante em sua existência. Escrita tornada experiência. Não se trata simplesmente de uma autobiografia, ou biografia, e sim um inspiradora experimentação. Variando expressões e acontecimentos de sua própria vida. Como escreve Waly Salomão:

Eu nasci num canto num canto qualquer duma cidade pequena fui pequeno qualquer duma cidade pequena fui pequeno depois nasci de novo numa cidade maior depois nasci de novo numa cidade maior de um modo completamente diverso (...) não me conheço como tendo nascido só num único canto num único só lugar (Salomão, 1983, p. 141).

O poema segue: “virando uma pessoa que vai variando seu local”. E assim é numa escrita biografemática. Ela produz e afirma tais variações da escrita e leitura de nossas vidas. No prefácio do livro “Sade, Fourier e Loyola”, Barthes escreve:

Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelo cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir a tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão. (Barthes, 1971/2005, p. XVII).

Escrita e experiência nos encontros com uma vida. Pensamos uma escrita biografemática situada longe do desejo de escrever através de uma cronologia e de seus signos notáveis de poder identitário: “O biografema eclode na relação que estabelecemos com aquele sobre o qual escrevemos, é um testemunho do detalhe e do minúsculo” (Costa, 2012, p. 12). De modo geral, no sentido maior e hegemônico, uma biografia é escrita seguindo padrões de verdade, cronologia e história fixos. Basta observar algumas biografias tidas como ‘best-sellers’ e veremos que o autor pretende dizer como aconteceu a vida daquele que ele escreve. Não nos filiamos a essa noção, pelo contrário. De acordo com François Dosse, “o biografema surge numa sólida relação com o desaparecimento, com a morte; remete a um tipo de arte da memória (...) a evocação possível do outro que já não existe.” (Dosse, 2009, p. 306). Trata-se pois de um exercício de escrita que ganha fôlego entre seus descaminhos e potências, suas inspirações e fracassos. Sopro de sentidos na direção de uma produção narrativa que envolva a experiência tal como foi vivida e a experiência de escrevê-la, compondo um texto como passagem, uma paisagem ao vento. Efetua uma operação sensível do pensamento: a narrativa se tornando a própria experiência. “Escrever tateando, suspendendo a avidez. Experimentar ir perambulando, de posse de um instinto réptil que vá sulcando o pensamento, enfeitiçando-o com seu modo coleante de existir” (Preciosa, 2010, p. 25). Esfarrapado narrador toca seus limites, experiência de escrita onde permuta continuamente as impossibilidades da escrita. Estar no instante, senti-lo passar, contínuos instantes que passam. Devir e experiência na escrita acontecem como uma passagem: um texto que passa e que pode compor ou não com outras vozes e corpos, mas que não cessa de seguir diferenciando-se à medida que se lê. A própria palavra escolhida carrega em si, de uma forma ou de outra, a intensidade vivida no instante. “Fazer vibrar sequências, abrir a palavra para intensidades interiores inauditas, em resumo, um uso intensivo, a-significante da língua” (Deleuze e Guattari, 1977, p. 34).

Roland Barthes também cita os biografemas no livro “A Câmara Clara”. Nesse, o autor expressa seu desejo de escrever sobre fotografia: “gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de “biografemas”; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia.” (Barthes, 1984, p. 51). Na esteira do desejo barthesiano, tomemos a fotografia como “uma agitação interior, uma festa, um trabalho também, a pressão do indizível que quer se dizer” (Barthes, 1984, p. 35).

Escrever uma vida atentando às sutilezas imanentes ao seu espaço-tempo buscando expressar o indizível que quer se dizer, sendo o escritor como aquele que está junto, que faz passagem, gesto de experimentar o acontecimento, de costurar palavra por palavra na superfície do texto. Escrever afirma a experiência, o gesto, intensidade e geografia. Afirma uma zona de incerteza entre presença/ausência, escritor/escritura/leitor. O biógrafo-arquivista costura com séries de verdades frágeis. Um gesto ético. “O gesto do autor manifesta-se na obra à qual dá vida, como uma presença incongruente e estranha” (Agamben, 2006, p. 96). Ética que leva o escritor a abandonar a hegemonia da ‘forma-homem’ e embarcar entre devires minoritários, inumanos e plurais. Escrever “é desertar do eu, essa forma hegemônica, personalógica, edipiana, neurótica, esse estado doentio que a literatura insiste em perpetuar-se” (Pelbart, 2000, p. 71). Quando encontramos uma vida colocada à margem, encontramos a própria margem em nós, quantos discursos hierarquizantes são acometidos diariamente, quantas vidas são diagnosticadas infames e indignas ao convívio social e que, portanto, devem ser enclausuradas e esquecidas. Pretende-se aqui uma escritura menor, que navega pelas brechas e se faz estrangeira ao discurso hegemônico, seja ele psiquiátrico, religioso ou moral.

Tá bom – É isso aí! Tranque a porta e não deixem que violem, que levem de qualquer maneira teus pertences enigmáticos o qual com certeza é capaz de servir como primeiro passo da evolução de seres incapazes em capazes de adentrar o nosso refúgio subterrâneo de tesouros psíquicos com o qual pode fazer a diferença, a grande diferença de adentrar e desfrutar dos saberes inimagináveis e inacreditáveis os quais nem por um segundo se quer ocupou sua mente; seres que não se dão conta das muitas vidas descartadas e negligenciadas por vocês mesmos que ocupam o mesmo posto de resgatadores de seres de mentes que parecem ser danificadas; pena que muitas vezes vocês, muitos ou alguns, são os danificadores; e se não são, por enquanto até esse momento, 14:42 do dia 22/06/11, tão pouco conseguiram ser os chaveiros competentes capazes de resgatar a chave quebrada, ou recuperar a chave perdida, dessas tantas portas que precisam ser abertas; o tempo tá se esgotando, pois já começou a contagem regressiva e, infelizmente, a muito tempo (Luciano, 2014, p. 35).

5 À guisa errante de conclusão

Uma conclusão não significa dizer finalização. Sabemos que desse ponto a que chegamos, já se desdobram outras pregas em nosso horizonte experimental. Refere-se a um dizer cartográfico, a um registro das passagens em tempo real, mesmo que se considere que esse tempo real corresponda ao ponto denso e espesso dos lençóis de todo um passado. A experiência desse dizer excede a delimitação de objetos, de coisas e estados de coisas, não se configurando em contornos precisos e atemporais. Quem canta nela, é a voz do tempo expressa em corpos-de-passagem, voz que sempre irá ecoar como intervenção atmosférica, catalisando instantes de passagem e acontecimentos disruptivos componentes do incessante murmúrio que envolve e impregna as formas visíveis e dizíveis já instituídas. Nesse ponto, a experiência narrativa elide o que usualmente chamamos de autor solipsista, tornando-se dispositivo de “acesso ao plano compartilhado da experiência”, como nos mostra Sílvia Tedesco (2013, p. 300). A direção captativa e expressiva dos acontecimentos que fluem nos processos da vida e das vivências passa a ser guiada por um ethos que altera pela inversão o próprio sentido tradicional do método (metá-hódos), sendo que ao ser pensado como hódos-metá, converte-se em “aposta na experimentação do pensamento – um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado” (Tedesco, 2013, p. 301). A narratividade comporta uma política, expressa “uma posição que tomamos quando, em relação ao mundo e si mesmo, definimos uma forma de expressão do que se passa, do que acontece” (Passos e Benevides, 2009, p. 151). Muda-se o modo de dizer, confere-se à palavra um outro regime de dizibilidade, ela é rachada e liberada das prisões dos significados existentes, abre-se em novas conexões sintáticas, efetua-se como abertura para o não-dizível dos discursos vigentes, esparge respingos que nossos ouvidos, nossas bocas e olhos jamais ousaram experimentar. Nessa abordagem, o narrar institui-se como agenciamento coletivo de enunciação.

O comum, agora, diz respeito a essa experiência coletiva em que qualquer um nela se engaja ou em que estamos engajados pelo que em nós é impessoal. Mesmo quando vivido, enunciado, protagonizado por uma singularidade , a narrativa não remete a um sujeito (Passos & Benevides, 2009, p. 168).

O que podem então as narrativas ficcionais para a Psicologia Social que se debruça sobre os restos de vidas dos infames macerados pela máquina disciplinar? Pode apresentar novas possibilidades que revertam os destroços de vidas não ditas em novas potências do dizer. Não apenas para as vidas já a muito vislumbradas sobre a luz da infâmia, mas também para os modos de existência dos antes célebres pesquisadores e profissionais da psicologia que tanto já falaram para fazer calar aos incautos e indômitos. A profanação da sacralidade científica pela ficção é um exercício constante de reinvenção da infâmia em nós mesmos: uma prática heterotópica (Foucault, 2001), uma experimentação de cuidado de si (Foucault, 2004) que acontecimentaliza (Foucault, 1978) a "nós" e a "eles" em um só gesto.

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