A vida é mais parecida com o cinema do que se sonha.
O outro Lado de Hollywood, Friedman & Epstein, 1996).
As artes em geral e o cinema em particular são, por vezes, concebidas como formas livres e desinteressadas de entretenimento. No entanto, a afirmação de que os filmes são somente ficção ou fonte de entretenimento é um poderoso efeito discursivo pelo qual o cinema pode se tornar um lugar de não questionamento das relações de poder que o constituem. Ao considerar que um filme é somente uma ficção, poupamo-nos de discutir a relação de retroalimentação entre os modos de vida e as narrações fílmicas, as maneiras pelas quais as histórias nos afetam, as verdades que os filmes produzem e fazem circular e em que medida eles atuam na produção de subjetividades.
No que se refere às normas de gênero e sexualidade, cada cena cria e prescreve territorialidades afetivas e políticas que nos permite indagar quais formas de subversão são postas em funcionamento, bem como que corpos são tidos como desejantes e desejados (Bessa, 2007). Neste artigo, buscou-se discutir como a linguagem cinematográfica produz verdades sobre homens e mulheres. Ao longo do texto, utilizamos como ilustração alguns filmes que trazem emblemáticas noções de masculinidades e feminilidades. Assim, os filmes não foram escolhidos segundo características que os situam como pertencentes a determinados movimentos e escolas da história do cinema (Mascarello, 2006). São obras que têm estéticas e mercados distintos, com capacidade de suscitar questões relacionadas a gênero e sexualidade ao encontro de discussões sobre amor romântico, identidade, homoafetividade, violência e técnicas de confissão, dentre outras. Analisamos as películas a partir das contribuições dos filósofos Michel Foucault, sobre sexualidade e relações de poder, e Judith Butler, sobre gêneros inteligíveis.
Os filmes escolhidos foram: Masculino e Feminino (Godard, 1966), Gattaca (Niccol, 1997), Meninos não choram (Peirce, 1999) e A verdade nua e crua (Luketic, 2009). O primeiro filme lança um olhar sob a juventude francesa nos anos que antecedem o movimento de Maio de 1968, enfocando Paul, um jovem militante contra Guerra do Vietnã, e Madeleine, sua namorada, que almeja ser modelo. O segundo, uma ficção científica, apresenta os desafios e esforços de seu protagonista para ascender em uma sociedade em que os mais capazes homens e mulheres são frutos de manipulação genética. Meninos não choram é – um drama - baseado na vida de Brandon Teena, e nas repercussões violentas que o seu romance com Lana teve na cidade de Falls City, Nebraska, uma vez que Teena prefere ser denominada simplesmente de “Brandon” e busca ser reconhecido como um homem. No último filme, uma comédia romântica, Abby Richter é uma jornalista que é obrigada a aceitar Mike Chadway como colaborador de seu programa de tv. Após uma briga entre ambos, Mike aposta que, com suas orientações, ajudará Abby a conquistar quem ela deseja. Analisamos as películas a partir das contribuições dos filósofos Michel Foucault, sobre sexualidade e relações de poder, e Judith Butler, sobre gêneros inteligíveis.
Imagine um grupo de pessoas aguardando a projeção de filmes numa sala de cinema. Após alguns minutos de espera, o filme começa. As imagens emocionam os espectadores, mostrando apenas um trem em movimento. A câmera fixa permite ver uma locomotiva vindo de longe até chegar bem próximo à tela e dar a impressão de que o trem vai avançar sobre o público, que se assusta com a cena. Isso aconteceu em 1895 em Paris, quando George Meliés fez a primeira sessão pública de cinema. A imagem era em preto-e-branco e não havia som (ruídos, diálogos, músicas). Ver um trem em movimento era uma novidade, assim como ver um objeto “real” contido na tela (Bernardet, 1981).
Atualmente, filmes de terror ou suspense, com sangue e criaturas mal-assombradas é que podem ainda provocar susto nas pessoas, não o movimento cinematográfico. Aliás, ele nem mesmo causa estranhamento, ainda que a câmera agora propicie a criação de efeitos expressivos numa cena e haja som e cor; elementos ausentes nas primeiras projeções. Esse não estranhamento indica que o cinema está presente no cotidiano. Em termos quantitativos, segundo a Agência Nacional de Cinema, até 2 de janeiro de 2014, estima-se que mais de 149,5 milhões de pessoas foram às salas de cinema de todo o Brasil, durante o período de um ano. Em comparação ao mesmo período do ano passado, houve um aumento de aproximadamente três milhões de pessoas frequentando os cinemas brasileiros (ANCINE, 2014).
A nomeação do cinema como sétima arte somente foi possível após a sua separação de outras expressões artísticas às quais estava inicialmente vinculado. Em outras palavras, ele tornou-se autônomo, no momento em que desenvolveu uma linguagem própria para a narração das histórias. Essa linguagem tem como elemento básico a imagem que é composta pelo som, a cor e os movimentos efetuados pela câmera, e, como elemento mais original (irredutível a outras artes), a montagem. Através da montagem, os elementos são organizados pelo realizador do objeto fílmico e ganham alguma significação (Bernardet, 1981). A significação pode ser confirmada, desafiada ou se tornar indiferente ao espectador, numa relação que promove a recriação de significações sobre a película por quem a assiste.
Além da relação entre objeto fílmico e espectador, um filme envolve uma equipe de produção, compradores, empresas de distribuição, outros filmes com os quais ele se afilia ou se contrapõe, as organizações reguladoras do cinema, as leis de produção e comercialização etc. Logo, ele não é somente a resultante da intenção da equipe de realizadores, mas uma obra que se insere nas relações de poder que envolvem a sua produção e as condições sociais nas quais surge (Passarelli, 2004).
Embora movimentos de vanguarda como o Expressionismo Alemão, o Impressionismo Francês e a Montagem Soviética1 tenham tido extrema importância para a definição de uma linguagem, inclusive das cinematografias atuais, foi a linguagem da ficção que predominou no cinema ou, mais especificamente, a linguagem transparente, como a denomina Jean-Claude Bernardet (1981). É sobre ela que estaremos marcadamente falando neste artigo, em nosso intuito de refletir acerca de como o cinema produz verdades sobre os corpos.
Em termos cinematográficos, pode-se perceber a presença de cortes quase imperceptíveis nas produções, há os enquadramentos que se aproximam das nossas percepções visuais ao passarem, por exemplo, a impressão que temos do geral ao particular quando entramos num ambiente. No filme, isso é manifesto através da sutil substituição de um plano geral2 pelo primeiro plano. Além disso, empregam-se diálogos coerentes com os contextos mostrados nos filmes e enredos que têm começo, meio e fim.
Essas características são familiares para quem tem o hábito de ir ao cinema. Afinal, elas fazem parte da fórmula hollywoodiana presente nos filmes de maior circulação comercial. Ao tornar-se a principal forma de narração, tal fórmula estabelece que algumas cinematografias podem ser consideradas lentas, excêntricas ou de difícil compreensão, sendo, por isso, tidas como desinteressantes, ao fugirem ao “familiar”.
A linguagem transparente consiste na diluição da presença narrativa. Na leitura de um livro ou num diálogo, sabemos quem está falando e podemos, inclusive, especular sobre os posicionamentos que possui ao contar uma história. Na linguagem transparente, há uma preocupação em que o movimento cinematográfico e os enredos estejam próximos da percepção visual e auditiva dos espectadores, bem como de suas ações e reações. Por essa via, as películas tornam-se verdades inquestionáveis, pois os posicionamentos ali mostrados pretendem ser tão evidentes quanto a percepção cotidiana de qualquer objeto – como na ideia de que contra fatos não há argumentos – e não discursos sustentados por regimes de verdade (Bernardet, 1981). Edifica-se a noção de que as cenas ocorrem “naturalmente”, isto é, sem intenções pré-projeção, como se as imagens se apresentassem na tela sem a intervenção humana.
Em artigo publicado em 2010 cujo objetivo foi analisar a contribuição do cinema na formação de identidades de gênero de mulheres, Fernandes e Siqueira discutem os significados construídos por um grupo de idosas sobre filmes que assistiram na juventude. Um dos significados analisados no texto se refere à correspondência dos enredos com os desejos, indagações e sonhos dessas mulheres.
Duas falas da mesma mulher, Noêmia, de 75 anos, são particularmente interessantes:
No cinema, eu sabia que estava vendo fantasias. Nunca me passou pela cabeça daquilo fazer parte da minha vida, não... As loucuras que a gente via nos filmes era uma fantasia que ficava ali.
Tinha esse filme antigo, A Carta – Beth Davis, Herbert Marshall – era a história de um casal, que, quando ela morre, ele descobre que ela o enganava [...]. Eu fiquei tão impressionada com aquela história! [risos]. Eu tinha uns nove anos, mas eu entendia! Conversando com minha prima, ela disse: “Isso aí é mais comum do que você pensa!”. Foi uma informação que uma menina de nove anos recebeu!... Quando o filme é muito bom, que você se envolve bem, esse momento é de reflexão da própria vida. (Fernandes & Siqueira, 2010, p. 113)
A aparente contradição de Noêmia, que, num momento da entrevista, afirma ser o cinema uma fantasia sem relação com a vida e, em outro, aponta que o enredo de um filme teve repercussão em sua história, aponta que o universo fictício não termina com o fim da trama. Ele se prolonga para além de um filme. Através da linguagem transparente do cinema, o “estranho” e o “familiar” se cruzam a cada instante. No cruzamento, novas significações são geradas como forma de possível organização do desconforto gerado por determinada cena.
Embora nem todo filme se proponha a narrar histórias, atualmente há uma predominância de filmes narrativos. Em alguns, há inclusive uma maneira específica de contar enredos: combinando elementos que supõem a ausência de um narrador. Ao comentarmos um filme, falamos dos personagens, do desenlace da história, dos cenários e roupas, mas não dos movimentos da câmera e dos sons expressos na película, por exemplo. É a história apresentada que se torna mais importante. É como se o filme se derramasse na tela sem nenhuma intervenção humana, uma “máquina” que produz o real. Nesse sentido, o cinema atua como pedagogia sexual, educando o público para assimilar suas técnicas e produzindo verdades que atuam na produção de identidades de gênero.
Ao tratar de narrativa, lidamos com um modo específico de constituição da realidade que tem como foco a vida humana em constante transformação, alterando a ordem e coerência aparentemente evidentes à medida que as experiências e significados se transformam. Essa perspectiva se inicia na década de 80 do século XX, com a emergência de posicionamentos que consideram que as histórias orais e escritas constituem um importante parâmetro linguístico, psicológico e filosófico para explicar a existência. Nessa perspectiva, é através da narrativa que compreendemos e explicamos os contextos mais complexos de nossa experiência, organizamos as memórias, intenções e ideais de self (Brockmeier & Harré, 2003).
Contudo, se o estudo das narrativas fílmicas objetiva o entendimento de experiências em constante transformação, elas somente são contadas segundo certas convenções.
A história, seus interlocutores (aqueles que falam e os que ouvem) e a situação em que a própria estória é contada, tudo isso se relaciona a uma base histórico-cultural de produção. Em outras palavras, nosso repertório local de formas narrativas é entrelaçado a um cenário cultural mais amplo de ordens discursivas fundamentais, que determinam quem conta qual estória, quando, onde e para quem (Brockmeier & Harré, 2003, p. 527).
Faz-se necessário desconsiderar a tradicional separação entre discurso e prática, pois o discurso é uma prática. Ao enunciá-lo, estamos agindo e agir é também um discurso. Falar e escrever são práticas concretas colocadas em ação no uso das palavras (Wittgenstein, 1953/1996).
O cinema é um importante veiculador de discursos e produtor de verdades. Ele as cria por meio de sua linguagem de expressão. Nesse sentido, podemos afirmar que ele age na produção e não na representação da realidade. Por tal via, atentar para as narrativas implica não ter como foco o autor da história, o caráter de ficção ou realidade, muito menos descobrir os significados ocultos que remetem à autoria da narrativa ou aos motivos que supostamente nos conduzem à identificação ou não com o filme. Implica os sentidos que podem ser construídos por sujeitos na interação com o filme, uma vez que “o sujeito da enunciação cinematográfica é construído no momento em que alguém assiste a um dado filme, e é somente na relação entre espectador e objeto fílmico que um sentido sobre os filmes pode ser produzido” (Passarelli, 2004, p. 276).
No documentário O Outro Lado de Hollywood, “The Celluloid Closet” (Friedman & Epstein, 1995), há alguns depoimentos sobre a relação entre espectador e objeto fílmico. Num dos filmes hollywoodianos nele citados, há uma mulher que sofre por estar apaixonada por uma amiga. Ao final do filme, ela comete suicídio por se sentir suja e indigna. A escritora Susie Bright, entrevistada no documentário supracitado, comenta o que pensa sobre a cena:
Ela se sente baixa e suja. Ainda choro quando vejo. E penso: por que choro? Por que ainda me toca? É um filme antigo. As pessoas não pensam mais assim. Mas não é verdade. As pessoas ainda pensam assim. Levanto as minhas bandeiras de alegria, orgulho, equilíbrio, bissexualidade. Por mais que eu demonstre estar contente comigo mesma, uma parte de mim pensa: como eu posso ser assim? (Friedman & Epstein, 1996).
O comentário da escritora requer que se considere a rede de relações que a enredam e organizam a forma como ela compreende aquilo que vive. O cinema participa dos jogos de produção de verdade, os quais “os seres humanos utilizam para elaborar um saber sobre eles mesmos [...] para compreender o que são” (Foucault, 1976/2000, p. 160).
Segundo Richard Dyer, historiador de cinema no documentário O Outro Lado de Hollywood (Friedman & Epstein, 1995), “é a sua cultura que gera a ideia que você faz de si mesmo. E, na nossa cultura, isso vem do cinema. Aprendemos o que é ser homem, mulher e ter sexualidade”. Isso acontece à medida que o cinema é um produto cultural gerador de significados sobre o que é aceitável a um indivíduo socialmente.
O cinema é um produto cultural e importante pedagogia de sexualidade. Educa os espectadores sobre como ser um homem ou uma mulher, sobre aquilo que deve ser feito e repetido para tornar-se parte de um ideal cultural (Louro, 2000).
O cinema, através dos diferentes gêneros narrativos (dramas, romances, musicais, comédias, sacros, westerns...), ‘educa’ a plateia para identificar e decodificar seus signos, convenções e diálogos estruturais. Os argumentos, o roteiro e as personagens norteiam ‘novas formas de ser e viver’, legitimando, assim, determinadas identidades sociais e desautorizando outras (Fernandes & Siqueira, 2010, p. 102, grifo do original).
De acordo com Michel Foucault (1988), aquilo que se fala e o que pode ser vivenciado modificaram-se ao longo do tempo; motivo pelo qual não é possível enunciar que o modo como concebemos o sexo hoje sempre existiu. O sexo se produz pelo que é falado e silenciado sobre ele pela Igreja, Escola, Família, Mídia etc., mas também pelas Ciências e nas práticas cotidianas (Foucault, 1988). O cinema também é uma dessas tecnologias sociais que produz o sexo por meio das técnicas cinematográficas. Filmes dos mais variados gêneros apresentam discursos através dos quais formas de vivenciar a sexualidade são aprendidas.
Ainda segundo Foucault, é necessário considerar ao se falar sobre o sexo: “quem fala, os lugares e o ponto de vista de que se fala, as instituições que incitam a fazê-lo e que armazenam e difundem o que dele se diz, em suma, [...] a colocação do sexo em discurso” (Foucault, 1988, p. 16). As comédias românticas, um importante gênero fílmico atual, são marcadamente um lugar no qual se apresentam verdades sobre as relações sexuais. Que circunstâncias tornam isso possível? De que forma se fala sobre o sexo nelas?
A sexualidade é um dispositivo histórico que se produz nas relações de poder. Um dispositivo abrange tanto elementos discursivos, quanto práticas e instituições. Estes formam uma rede de elementos heterogêneos que passam a sustentar e ser sustentada por saberes. O dispositivo de sexualidade surge durante o séc. XVIII e tem dentre seus principais efeitos a criação da noção de sexo que conhecemos hoje, amplamente sustentada pela ciência. “Discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições, filosóficas, morais, filantrópicas” (Foucault, 1979, p. 244) podem servir como elementos de um dispositivo.
Assim, podemos avaliar que discursos e saberes estão em jogo no âmbito das relações de gênero, assim como que estratégias eles mantêm, subvertem ou reconfiguram. Por conseguinte, é importante notar também quais daqueles terão status de verdade, a partir do qual o poder pode ser exercido. A respeito de como se estabelece aquilo que é considerado como verdade, Foucault (1979, p. 157) afirma:
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
Foucault elabora a sua noção de poder buscando contrapor-se à abordagem jurídica ou do “contrato-repressão” e à abordagem marxista ou da “guerra-repressão”. Na abordagem jurídica, alguém tem o poder e pode exercê-lo pela existência de um contrato. Na abordagem marxista, o poder se exerce em nome da “economia”. Ele tem o papel de manter os papéis de classe, dominantes e dominados. Uma pessoa ou um grupo que detém os meios de produção se utilizam do poder para se manter na posição dominante. As pessoas que não detêm os meios de produção devem lutar para a mudança dessa relação de dominação. Em ambas as concepções, o poder é algo que é imposto por algumas pessoas e que precisa ser combatido, em razão da opressão que traz àquelas pessoas que não o possuem.
Foucault (1988, p. 88) aponta a necessidade de pensar um poder que perpassa, mas vai além dessas concepções:
Se deve compreender o poder primeiro como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.
Poder na concepção de Foucault implica algo que está presente e é inseparável do domínio onde se exerce. Não há algo que esteja fora das relações de poder. Não podemos concebê-lo também como unidade, mas, sim, como multiplicidade que pode ser analisada nas relações mais locais e imediatas. Outra reflexão de extrema importância ao se tratar das relações de poder são as resistências. A partir delas, podemos pensar que as relações estão em constante movimento.
Se não há resistências, não há relações de poder, porque tudo seria simplesmente uma questão de obediência... A resistência vem em primeiro lugar, e ela permanece superior a todas as forças do processo, seu efeito obriga a mudarem as relações de poder. (Foucault, 1982, p. 5).
Resistir não é somente lutar contra ou defender-se. Dizer “não” não é a única forma de resistência. As resistências são plurais e não casos únicos - a resistência. Os pontos de resistências são móveis, transitórios e locais, assim como as relações de poder nas quais se apoiam. Elas também não se localizam nos indivíduos, mas perpassam seus corpos (Foucault, 1988).
Essa perspectiva permite que, ao analisar os modos como as masculinidades e feminilidades são apresentadas nos filmes, nós não tenhamos como foco apontar cenas que funcionem como instrumento de alienação ou imposição de ideias de um grupo de pessoas sobre outras, mas discutir como as verdades são produzidas na linguagem cinematográfica permitindo que um poder se exerça e que haja resistência a ele. Em outras palavras, cada película tem efeitos diferentes para cada um que a assiste.
Nessa perspectiva, o filme Gattaca: A experiência Genética (1995, Niccol, 1997)3 retrata relações e questões que ultrapassam a história cinematográfica. O filme faz a projeção de um futuro em que a Ciência, em particular a Biologia, tem papel central na regulação da vida. As pessoas são posicionadas socialmente e exercem atividades segundo sua programação genética. É um mundo em que a ciência “triunfa” sobre a humanidade. Gattaca é uma base de treinamento espacial que assume rigidamentle esse ideal. Somente aceita entre os seus componentes humanos com determinados padrões genéticos de excelência.
Jerome Morrow é um dos homens que se enquadra no ideal genético de Gattaca. Todavia, sofre um acidente que o impossibilita de andar, evidenciando que o desejado triunfo genético não se encontra acima das circunstâncias às quais uma pessoa está submetida. Vincent Freeman, por outro lado, alimenta desde a infância o sonho de ser astronauta e assume o lugar de Jerome para entrar em Gattaca. No cotidiano de Vincent, uma série de precauções precisa ser cotidianamente realizada para que ele continue a ser Jerome. Os meticulosos procedimentos asseguram a sua identidade e a permanência dentro da organização.
O filme mostra ainda como a escolha do “melhor” parceiro ocorre a partir da análise dos atributos genéticos. Tem mais chances de escolha alguém com menos informações sobre a possível ocorrência de patologias em sua própria vida ou na de sua descendência em seu código genético. Apesar de não haver atualmente seres geneticamente planejados, podemos nos perguntar quão fictício é o interesse de que haja humanos perfeitos. Na contemporaneidade, avanços científicos no campo da genética têm despertado a esperança de encontrar maneiras de originar pessoas sem doenças ou desajustes sociais. O propósito de criação de homens e mulheres com genes “saudáveis” corre o risco de se tornar uma busca por almejados instrumentos para o planejamento de uma sociedade triunfante sobre os indesejáveis entraves da existência e das subjetividades. No filme Gattaca, a saída que Vincent encontra é, ironicamente, retirar-se do planeta em que sempre será avaliado a partir de seu código genético.
Em consonância à ideia de Foucault de que a sexualidade precisa ser pensada em termos políticos - pois ela é produzida por relações de poder –, Judith Butler também privilegia a discursividade para falar do gênero, argumentando que não há distinção entre sexo e gênero uma vez que o sexo é desde sempre gênero. Assim, a filósofa alega a possibilidade de identidades produzidas por estratégias do presente e pelas manifestações usadas comumente para classificar pessoas como sendo de um gênero e não de outro (Butler, 1990/2003). Consideradas como provas de uma identidade de gênero, as manifestações fundariam uma taxonomia de gênero, instituindo a noção de que pessoas heterossexuais tem uma forma de agir, objetos de desejo, formas de sentir prazer e práticas sexuais definidas que permitem que se diga que ele/a é heterossexual.
No entanto, práticas sexuais, desejos, formas de vestir-se e comportar-se são tais manifestações e, não, elementos fundantes ou provas materiais e exclusivas de uma identidade de gênero. Expressões da sexualidade podem somente basear classificações de pessoas em heterossexuais ou não, ou ainda, indicar um esforço de estabelecer o que é permitido ou impensável a quem é homem ou mulher, como se fosse possível, ao estabelecer essas distinções, catalogar formas de ser (Idem).
As classificações são destituídas de importância na perspectiva de Judith Butler (1990/2003), uma vez que não há diferença entre sexo e gênero. A separação entre sexo e gênero foi concebida originalmente para rejeitar a ideia de que a biologia é o destino. Assim, se ao sexo não cabem questionamentos, pela força de sua imposição material e de um saber sobre ele que não é questionado, que possibilidades restariam para que as mulheres pudessem reivindicar a reparação da desigualdade baseada na diferença sexual? O estabelecimento do gênero como instância cultural surgiu dessa necessidade. Contudo, Butler (1990/2003) aponta a viabilidade de subverter também aquilo que acreditamos ser inquestionável, o sexo.
Há diversos critérios para o estabelecimento de que um corpo é de um homem ou de uma mulher: cromossômicos ou hormonais, além do anatômico etc. Eles, muitas vezes, não são convergentes. Logo, se mesmo a biologia indica não ser suficiente ter, desde o nascimento, um pênis ou uma vagina para se dizer que alguém é de um sexo, que mecanismos mantêm a ideia de que um corpo é homem ou mulher? Segundo Butler (1990/2003), a dualidade que delimita os corpos é, na verdade, discursiva. Foi edificada historicamente, principalmente por mecanismos que visam uma coerência em sua enunciação.
Se o caráter do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma (Butler, 1990/2003, p. 25).
A noção de identidade de gênero é também reconstruída pela autora. Segundo ela, pressupondo linearidade e coerência, temos considerado que existem sujeitos que possuem uma identidade de gênero que os permite vivenciar determinadas experiências afetivo-sexuais e que há formas mais ou menos adequadas e normais de vivenciá-las. Tal concepção é denominada por ela de “gêneros inteligíveis”.
Os gêneros inteligíveis “instituem e mantém relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (Butler, 1990/2003, p. 38). Mas, o fato de que possamos localizar sujeitos que estejam inseridos nessa linearidade é, ele próprio, engendrado por discursos. Ao afirmarmos a existência de gêneros inteligíveis e aceitá-los como regra, instituímos, concomitantemente, gêneros fora da regra, desviantes. “A força dessa prática é, mediante um aparelho de produção excludente, restringir os significados relativos de ‘heterossexualidade’, ‘homossexualidade’ e ‘bissexualidade’, bem como os lugares subversivos de sua convergência e ressignificação” (Butler, 1990/2003, p. 57).
O gênero é performativo, isto é, ele é constituinte da identidade, um ato que faz existir aquilo que nomeia. Um homem masculino e uma mulher feminina, por exemplo, passam a existir partir desses termos pois não há identidade de gênero que preceda a linguagem. Assim, não é a identidade faz o discurso como se houvesse um sujeito que precede o discurso mas é a linguagem e o discurso que fazem o gênero. A identidade é uma prática e os sujeitos culturalmente inteligíveis são efeitos dos discursos. Desse modo, os gêneros inteligíveis e a performatividade contestam a noção de sujeito, sendo o gênero algo que fazemos e não algo que somos. (Salih, 2012).
A partir de tais elaborações, neste trabalho, consideramos gênero como um efeito de relações de poder inscritas em estratégias locais e imediatas que habitam corpos, mas não se encerram neles. Entendemos que, uma vez que possamos rever os critérios que instituem o que é considerado como verdade no campo do gênero, agimos também para desmobilizar práticas cotidianas que atualizam essas verdades.
As comédias românticas, um importante gênero fílmico atual, são marcadamente um lugar no qual se apresentam verdades sobre as relações sexuais. Que circunstâncias tornam isso possível? De que forma se fala sobre o sexo nelas? Práticas como o filme A verdade nua e crua – título original “The ugly truth” (Luketic, 2009) –, que se organiza em torno de verdades sobre relacionamentos amorosos entre homens e mulheres. No início do filme, Abby Richter entra em seu ambiente de trabalho. A música acelerada e o rápido suceder de pessoas, diálogos e informações acontecem ao redor da personagem, caracterizando um estilo de vida comum atualmente: ocupado e dinâmico. Nas cenas seguintes, ela vai a um encontro, no qual submete o pretendente a um interrogatório, segundo a sua lista de exigências.
Ao chegar em casa, Abby está triste e sozinha, sendo recebida somente por seu gato de estimação. O gato brinca com o controle da TV, mudando para o canal em que o programa A verdade Nua e Crua está sendo apresentado por Mike Chadway. Após se irritar com o que Mike diz, a protagonista decide ligar para o programa e, depois de um embate verbal, ele lhe diz que, a verdade nua e crua, é: ela vai ficar sozinha e esperando um cara que nunca vai ter. A concepção romântica de amor funciona aqui como forma de estabelecer condutas e discriminar as consequências para aqueles que a seguem e/ou para aqueles que as subvertem. Como ressalta o psicanalista Jurandir Freire Costa (1998), o medo da solidão, do fracasso emocional e da infelicidade funcionam como forma de manter idealizações sobre o par romântico. O mecanismo do medo é utilizado de forma análoga na política e na religião:
Na religião, as contradições teológicas eram sanadas pela “lembrança” das chamas das fogueiras e do fogo do inferno. Na política, prisões, confinamentos, exílios, degredos, torturas, assassinatos ou o mero ostracismo “resolviam” as dúvidas dos que insistiam em perguntar “por quê?”. No caso do amor romântico, a punição para os dissidentes é o pavor da solidão, o estigma do fracasso emocional e a exclusão do mundo dos felizes. São essas fantasias ou realidades morais que tornam eficientes alguns dos credos românticos (Costa, 1998, p.147).
Recordamos aqui a famosa frase de Vinicius de Moraes4: “É impossível ser feliz sozinho”, a qual, no filme, parece ser uma máxima em especial para as mulheres. Aliás, não é só necessário estar acompanhada, mas também viver um grande amor (Costa, 1998). O amor romântico se torna algo que deve ser incessantemente buscado, o que requer que as exigências da personagem sejam deixadas de lado, pois essas a tornariam racional demais e feminina de menos.
Assim, segundo Costa (1998), o romantismo amoroso tornou-se uma obrigação moral universal e as pessoas que não o seguem são consideradas fracassadas e insensíveis. O amor romântico consiste num modo de ordenação e produção de emoções do Ocidente Moderno que teve início na Idade Média. Ele não tem em si nada de divino ou puro. Trata-se de uma forma de satisfação sexual e afetiva relacionada a interesses de classe, étnicos, sexuais e religiosos.
Em nossa cultura, aprendemos a amar por meio de regras de condutas simples, feitas de palavras de ordem, máximas e clichês facilmente repetíveis e reproduzíveis. É a repetição do lugar-comum que nos educa para o amor, tal como vemos em personagens e enredos da maioria esmagadora dos romances, filmes e telenovelas ou no conteúdo dos conselhos oferecidos em consultórios sentimentais, manuais de autoajuda etc. (Costa, 1998, p.51).
Comédias românticas como a Verdade Nua e Crua são uma das repetições dos lugares comuns através dos quais aprendemos o que é amar. Replicam-se os cenários para o romance, os desafios que fazem com que o amor deva ser conquistado, os amantes virtuosos e os finais felizes. Mas, como toda forma de relação humana, o romantismo amoroso é todo o tempo atualizado e transgredido.
Na Idade Média, havia o modelo de amor platônico, no qual os amantes não buscavam somente a realização do amor. O sacrifício era um dos elementos presentes na época. Atualmente, acreditamos ser o amor incontrolável, algo que exige satisfação imediata e primordial (Rougemont, 1988). Anthony Giddens (1993) denomina Amor Confluente ou Plástico o novo projeto amoroso que demanda o encontro dos corpos e a realização sexual. É a fusão corporal que indica o encontro entre dois amantes e o sacrifício atual está em buscar incessantemente um amor romântico.
No desenlace do filme, Mike convida Abby para dançar. Uma música sensual exige que eles fiquem mais próximos e eles percebem que há atração entre eles. Decidem parar de dançar e, na cena seguinte, estão num elevador subindo para seus respectivos quartos. Ao despedirem-se, um desejo incontrolável surge e eles se beijam. As cenas de proximidade corporal entre Abby e Mike são centrais para a reorganização do enredo. Se, no início do filme, ela o odiava, é após perceber que se sente sexualmente atraída por ele que um romance entre os dois é provável.
Essa configuração amorosa, em voga na atualidade, torna a atração sexual um elemento vital entre os amantes. Assim, a experiência amorosa considerada sinônimo de uma atração sexual que simplesmente acontece se dissocia de questionamentos - quem ou o que pode despertá-la? Como ela se relaciona a marcadores sociais como raça e classe? O amor nos tornam parte de uma universalidade e/ou faz de nós seres únicos? Uma vez que a atração é incontornável.
Prática sexual e amor passam a fazer parte de um mesmo sentimento ideal e sacralizado que possibilita maior vigilância e ordenação sobre os corpos: “ame e goze!”. Assim, os elementos da linguagem cinematográfica buscam tornar lineares os construtos sexo e amor, assim como, a tríade entre gênero, desejo e prazer.
Através da construção de situações e personagens, o cinema cria certas verdades sobre a identidade dos sujeitos, sua sexualidade e identidade de gênero, que são apropriadas em uma dinâmica que inclui negociação de sentidos, ampliação dos repertórios ou aceitação de determinadas formas de ser como válidas (Fernandes & Siqueira, 2010, p.102).
Em outro momento do filme acima citado, Mike enuncia regras para que Abby conquiste um pretendente: 1) Nunca critique; 2) Ria para tudo que ele disser; 3) Os homens são atraídos pelo visual. Seja sexy; e 4) Nunca discuta ou fale dos seus problemas. Os homens não escutam nem se importam. Alguns apenas fingem.
Ao falar sobre o item 3 das regras que Abby deve seguir, Mike e ela estão numa loja de roupas femininas. Ele aponta as roupas a serem usadas, como ela deve se comportar; regras parecidas com “seja sexy, sem ser vulgar”. O que parece um imperativo apenas do desejo masculino é também confirmado pela vendedora que concorda com Mike nas regras que ele enuncia. Desse modo, as regras não são enunciadas somente pelos homens, fato que evidenciaria uma dominação masculina sobre o corpo feminino. Elas estão imersas em práticas das quais participam também as mulheres, como objeto de desejo ou como veiculadoras desses discursos. Cabe questionar aqui de que forma essas regras se inscrevem além do modelo binário. Será que as regras enunciadas por Mike ordenam também o desejo de mulheres por outras mulheres? É necessário deslocar a ideia de que um determinado desejo é masculino ou feminino, pois o desejo não exprime o gênero (Butler, 1990/2003).
Nos primeiros minutos do filme, parte destinada aos letreiros que apresentam a equipe de produção, aparece a figura de dois bonecos parecidos com os que vemos nas portas de qualquer banheiro: um de saia e outro sem, que representam o espaço destinado a mulheres e homens, respectivamente. No filme, o boneco de saia tem a figura de um coração na cabeça. Segundos depois, o mesmo coração está no boneco sem saia, mas na região genital. É uma forte sugestão na película de que os homens baseiam afetos por critérios sexuais. Esse discurso permeia todo o filme, acrescido da afirmação os homens são simples. Simplicidade associada a agir sem considerações às emoções, mas sim ao desejo sexual.
As identidades inteligíveis não são determinadas. Elas se tornam materiais pela repetição de regras (Butler, 1990/2003). Encontramos nesse filme um importante locus de repetição de regras que sustentam identidades de gênero tidas como hegemônicas. A ideia de que um homem age somente pelo seu desejo sexual consolida práticas sociais e serve de parâmetro para afirmar que há homens que são “mais homens” que outros.
Ao “montar” uma cena, produz-se e descreve-se uma territorialidade afetiva e política. Por isso a cada filme podemos indagar: essa territorialidade subverte o quê? Dialoga com o quê? Desloca as formas de assédio e humilhação de corpos efeminados (sejam de homens ou de mulheres)? Qual masculinidade é colocada como “desejante” e desejada? (Bessa, 2007, p. 262).
No filme Meninos Não Choram (Peirce, 1999), assistimos a tentativa de Teena Brandon de aparentar ser um homem. Ao sair do banho, Teena entra no quarto somente de toalha e passa rapidamente pelo espelho. Possivelmente, sem querer olhar-se como uma mulher. Ela se afasta do espelho e coloca um absorvente interno. Após colocá-lo, esconde os vestígios do produto embaixo do colchão. A seguir, podemos ver em cima da cama um pênis de borracha, algumas camisinhas, meias, ataduras, um pente, um barbeador e uma cueca. É o arsenal performático de Teena. Ela pega as ataduras e amarra os seios – de forma a torná-los imperceptíveis ao vestir a camisa – veste uma cueca e coloca as meias dentro dela.
Quando termina de se arrumar, ela olha sua imagem refletida no espelho. A imagem que vemos não é a de um homem, mas também não corresponde a uma mulher. Esse é um dos momentos que evidenciam que o gênero se constitui por uma performance (Butler, 1990/2003), a qual, embora baseada em padrões binários, presentifica-se de maneiras diversas, revelando não haver uma única verdade sobre o sexo.
Noutra cena, Brandon aceita uma carona de John para ir a um local acompanhado de Tom, Candace e Lana. Quando chegam ao local, há jovens praticando algo parecido com um surfe de pára-choque de carros. Brandon e Lana flertam. Tom comenta o surfe dizendo: Isso é pra caretas. Me mostre algo realmente perigoso. Brandon diz que quer ser bombeiro para apagar muito incêndio e ganhar muito dinheiro. Em seguida, é convidado por John a participar do surfe de pára-choque. Ele aceita o convite. Segue uma música de ação. Ele cai da traseira do carro e se machuca mais de uma vez, aos aplausos de John e Tom e preocupação de Lana. Ao fim do surfe, John afaga Brandon na cabeça e diz que ele é realmente maluco.
O surfe de pára-choque de carros é uma “brincadeira” perigosa que marca a possibilidade de Brandon ser aceito por John e Tom e continuar a flertar com Lana. A cena assinala a relação entre masculinidade e violência/agressividade. A agressividade e a violência física são formas socialmente aceitas como provas de masculinidade. Ela estimula posturas (auto) destrutivas. Como consequência, há altos índices de mortalidade masculina e internações hospitalares resultantes de episódios de violência. No Brasil, por exemplo, os homens são os que mais matam e morrem por violência (Medrado & Méllo, 2008).
Em geral, os homens são educados, desde cedo, para responder às expectativas sociais de modo proativo, em que o risco não é algo a ser evitado, mas superado cotidianamente. A noção de autocuidado dá lugar a um estilo de vida autodestrutivo, a uma vida, em diversos sentidos, vulnerável (Medrado, Lyra, Azevedo, Granja & Vieira, 2009, p. 33).
É perceptível também a vontade de verdade sobre o sexo que faz com que Brandon tenha que assumir um lugar (Lésbica? Transexual? Hermafrodita?). Brandon e Lana já estão se envolvendo quando Candace descobre que ele se chama Teena através de um recorte de jornal e revela isso a John. Os vários personagens dessa cena querem saber, então, se Brandon é ou não uma mulher. Brandon chega nesse momento e John lhe diz: Você é um pervertido. Você é ou não é uma garota? Tom diz que só há uma maneira de resolver o problema. Ele se aproxima de Brandon e subentende-se que ele tirará sua roupa. Lana pede para John que confie nela. Ela verá a genitália de Brandon e contará a ele a verdade. John consente. Ao entrar no quarto, Lana diz a Brandon que ele não precisa mostrar-lhe. Ela sabe que ele é um homem. Ele afirma que nasceu com essa estranheza, mas que há médicos cuidando disso. Sugere, assim, ser hermafrodita – possui ambos os órgãos sexuais. Lana aconselha que Brandon diga o que eles querem ouvir e então estarão livres.
Percebemos aí a estreita relação entre a confissão e a verdade levantada por Foucault (1988). A confissão é um ritual importante para a produção de verdades desde a Idade Média. Inicialmente, confiscada aos domínios da Igreja, ela se presentifica atualmente em outros contextos: “na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes” (Foucault, 1988, p. 59).
Na cena descrita acima, Brandon é impelido a falar sobre seu sexo, a produzir uma verdade sobre ele. A verdade seria a condição para que ele e Lana ficassem livres dessa situação. O saber sobre o sexo, que se transforma em verdade sobre um sujeito, é produzido pela descrição minuciosa dos confessandos (Foucault, 1988). Brandon é autenticado e se torna inteligível pelos discursos de verdade, que é obrigado a produzir sobre si. Ele estará livre no momento em que se confessar a um interlocutor em condições de avaliá-lo, absolvê-lo ou puni-lo (Foucault, 1988). Mas, não é suficiente confessar para que algo seja tido como verdade, é preciso confessar aquilo que o interlocutor acredita ser verdade. Nas relações de poder, é criado aquilo tido como verdade.
Na sequência, Lana diz que Brandon é um homem, mas John não acredita. Avança violentamente sobre ele e o leva com a ajuda de Tom para o banheiro afirmando que quer só saber a verdade. Em meio a socos e pontapés, Tom pergunta a John: O que você vê? Se tiver um (pênis) aqui é o menor que eu já vi. Ponha a mão! Brandon luta com John e Tom para que não tirem sua roupa. No entanto, ele não resiste e acaba sendo despido de sua calça. Tom coloca a mão entre suas pernas para se certificar da existência de um pênis e diz que não lhe parece nenhuma crise de identidade sexual, ou seja, Brandon não é hermafrodita.
O trecho acima denota a persistência de um discurso biológico sobre a sexualidade. Se há um corpo que possui ambos os caracteres sexuais (pênis e vagina), essa seria uma falha com a qual Brandon teria nascido. A falha genética tornaria a situação mais aceitável, pois o gênero é algo que pode ser resolvido por meio de cirurgia e reposição hormonal. Recorrer à ciência seria uma forma de corrigir um “corpo falho”, não sendo o sujeito responsável por sua condição. Porém, se Brandon for lésbica, ele é posicionado como alguém que faz uma “escolha não heterossexual”, fato que passa a ser considerado uma perversão. A perversão é justamente não ter desejo, prazer e identidade ditos “naturais” e é um problema do sujeito.
No decorrer da cena mencionada, John e Tom obrigam Lana a olhar para a genitália de Brandon. Ela resiste, fecha os olhos, coloca a mão no rosto, mas, por fim, acaba vendo. Um corte anuncia a mudança de cena. Cessam os sons e a imagens estão mais lentas. Como se estivesse num sonho, Brandon ocupa o centro da imagem e olha para a porta do banheiro. Como se acompanhasse o seu olhar, a câmera mostra quem está na porta: Candace, a mãe de Lana e ele mesmo. Ele está ao mesmo tempo dentro e fora do banheiro. O Brandon de fora do banheiro assiste impassivo ao que acontece, como se não entendesse aquilo que vê. A câmera volta a mostrar Brandon dentro do banheiro, assustado, ainda sendo segurado em cada braço por Tom e John e curvado tentando esconder a genitália. A cena termina com a volta dos ruídos – gritos e o choro de Lana – e o fim da câmera lenta.
É uma cena muito breve e não há qualquer som ou diálogo, somente os movimentos da câmera. A significação, mais do que em outras cenas, é feita pelos espectadores. Para nós, o fato de Brandon se olhar de fora parece o momento de constatação de algo que ele buscava negar: não se vê como Teena. Ao deparar-se tão violentamente com ela, é como se ele saísse de seu corpo e não conseguisse entender o que acontece, pois não pode aceitar uma verdade que não é a sua.
Após a “descoberta da verdade” e o enquadramento dele como mulher, Brandon é estuprado por John e Tom. Ao ser interrogado novamente, só que agora na delegacia, Brandon afirma não saber o que eles lhe fizeram. Diante de sua negativa, o delegado pergunta: Você não se surpreendeu que depois de descobrir que você é uma garota, eles não tenham posto a mão na sua calcinha e brincado um pouco com você? A violência passa a significar uma “brincadeira”, que é justificável pelo fato de Brandon ser uma garota.
Relacionando a fala do delegado à afirmação do filme A verdade Nua e Crua, segundo a qual os homens são guiados pelo desejo sexual inteligível – desejam mulhe-
res –, nada mais natural do que John “brincar” com Teena. Esse é um desdobramento do discurso que aponta o desejo como natural e de ordem biológica; motivo pelo qual satisfazê-lo seria um desfecho óbvio. A violência também seria sancionada pelo discurso cultural de que o comportamento agressivo, ou mesmo abusivo, faz parte da construção da identidade masculina.
[...] há um problema quanto a tratar seres humanos como espécimes. Do ponto de vista clínico, da sala de aula, ou do antropólogo médico, os múltiplos [em nosso caso os homens que cometem violência contra as mulheres] parecem incrivelmente semelhantes uns aos outros, todos agrupados em torno do protótipo. Mas cada um é diferente: cada um tem uma história única... (Hacking, 2000, p.47).
Tratados os seres humanos como espécimes, não há nada a ser feito diante da violência sofrida por Brandon/Teena. O questionamento se torna algo estranho, em razão da ideia de haver uma prerrogativa biológica ou (?) cultural de que há a verdade sobre os corpos, a qual se refere à existência de somente dois: um masculino e um feminino.
No filme Masculino e Feminino, “Masculin féminin”, de Jean-Luc Godard (1966), uma jovem mulher francesa é interpelada por uma voz masculina com perguntas que se referem à política e à ordem social, tais como: Você acredita que o socialismo tem futuro? Vê alguma diferença entre viver como os americanos ou ser socialista? A palavra “reacionário” significa algo para você? A expressão Frente Popular lhe diz algo? Sabe o que é controle de natalidade? Para essas e outras perguntas, a jovem parece não ter respostas ou as dá muito vagamente. Somente quando questionada sobre a facilidade com que se apaixona, ela consegue desenvolver uma resposta. O American Way of Life é também descrito pela jovem como um modo de vida mais livre e no qual as mulheres são importantes, porque trabalham muito.
Antes de tal enquete, há um letreiro que diz: diálogo com um produto de consumo. Segundo tal dizer, a personagem é um produto de consumo ao não conhecer os ideais socialistas e preferir viver como os americanos, enredada numa lógica em que é necessário muito trabalhar e consumir. Percebemos aqui uma das formas pelas quais discursivamente as mulheres podem ser inseridas no “mundo do trabalho”. Se não são predestinadas ao lar, é apenas trabalhando muito, inserindo-se na ordem capitalista, que poderão sair do lugar de mãe e esposa. Esse discurso subverte e conforma ao mesmo tempo. Subverte o papel durante muito tempo destinado às mulheres e sanciona uma das premissas que sustenta as regras do mercado de trabalho. No filme, nota-se também a ausência de cenas em que as mulheres tenham algum envolvimento em atividades partidárias, assim como de homens que sejam produtos de consumo. As cenas reiteram a binaridade homem x mulher.
Em outra cena, Madeleine tem um diálogo com Paul, no qual inicialmente falam sobre o interesse dele em sair com ela. Durante a conversa, Madeleine expressa facialmente trejeitos de cinismo. Parece zombar do interesse de Paul por ela. Após várias perguntas sobre a intimidade dele, ela lhe pergunta o que para ele ocupa o centro do mundo. Ele responde que é o amor. Ela retruca que ela própria é o centro do mundo. Uma frase parece significar de maneira explícita o masculino e feminino no filme: os filhos do socialismo e os da coca-cola. Os homens, politizados e ativos, filhos do socialismo e, as mulheres, não politizadas e centradas em si mesmas e nos relacionamentos amorosos, filhas da coca-cola.
Há também uma cena emblemática por seu caráter “casual”. Paul vai ao banheiro e, ao abrir a porta do mictório, encontra dois homens se acariciando. Ele permanece alguns segundos parado e sem saber o que fazer. Os homens o mandam sair agressivamente. O episódio não possui outras repercussões na trama. Paul volta para a mesa e continua a conversar com Madeleine e sua amiga.
Por qual motivo um longa-metragem denominado Masculino e Feminino apresenta apenas breve e sorrateiramente dois homens acariciando-se? Será essa é uma prática que não faz parte do masculino? Seria necessário então outro filme para contar a história daqueles homens, a história de um “universo gay”? A afirmação de um “universo gay”, que não é contemplado no masculino, não faz mais do que tentar assegurar um “universo hetero”, no qual um homem gay ou uma mulher lésbica não cabem. Esse intento seria contrário à ruptura do modelo binário de sexualidade. Argumentamos a necessidade de ampliação das noções de masculino e feminino, o que implica o reconhecimento da diversidade de modos de ser homem e mulher. A cena citada parece uma concessão conferida à diversidade do desejo, mas que deve ser logo esquecida, a fim de que o enredo continue. O filme discorre abundantemente sobre masculinidades e feminilidades inscritas em normas heterossexuais, mas muito pouco sobre a diversidade fora dessas normas.
Por outro lado, o filme foi realizado no ano de 1966, isto é, quase uma década antes da homossexualidade – outrora homossexualismo – ser retirada da categoria de transtorno psiquiátrico dos manuais médicos. Esse fato demonstra que pensar a relação entre homens naquele período figurava operar noções como degeneração moral, jurídica e médica. Assim, o cineasta ocupa uma posição vanguardista na história do cinema, expondo de maneira breve e alusiva uma cena de como a homossexualidade entre homens era vivenciada na época: condenada em espaços públicos e restrita a espaços privados. Nessas condições, a simples menção numa película, ainda que rapidamente, pode também ser considerada uma ousadia.
Neste artigo, buscamos discutir como o cinema produz verdades sobre os corpos através da linguagem cinematográfica. O discurso numa obra cinematográfica se constitui não somente pelos diálogos entre personagens ou as falas de um narrador, mas também por uma série de técnicas desenvolvidas na sétima arte desde o seu surgimento. Enfatizamos também que o sujeito da enunciação cinematográfica se constitui no momento em que se assiste a um filme, tanto por suas resistências quanto por suas conformidades ao que é projetado na tela.
Falamos também da linguagem transparente, na qual os posicionamentos acerca do gênero se propõem a ser “naturais”. Ao tratar de alguns filmes, deparamo-nos com verdades sobre relacionamentos amorosos, masculinidades, feminilidades, desejo, prática sexual e política, que nos ajudaram a refletir acerca de como a heteronormatividade se presentifica na tela de maneira marcante. Segundo Guacira Louro (2000, p. 09), “É à imagem e semelhança dos sujeitos heterossexuais que se constroem e se mantém esses sistemas e instituições”. Contudo, o cinema nos mostra que as realidades construídas discursivamente por pessoas nas relações sociais, que sustentam e são sustentadas pelas verdades sobre os corpos produzidas e veiculadas nas películas, são constantemente negociadas. São negociadas por movimentos de conformação e resistência que indicam que, se a matriz heterossexual é a norma, ela não é aceita sem questionamentos aos finais das histórias. Os enredos particulares continuam.
Os filmes discutidos neste trabalho podem gerar movimentos de alienação e, ao mesmo tempo, de resistência. Podem fazer rir, chorar, causar aversão etc. Na linguagem transparente do cinema, o desconforto gerado diante de uma cena produz significações que se, por um lado, afirma determinados gêneros inteligíveis, também cria outros. Com isso, cenas como a dos dois homens se acariciando no filme Masculino e Feminino não aparecem mais de modo tão fugaz na tela. Mas, a produção de verdades e de relações de poder sobre os corpos permanece e os roteiros construirão outras formas de mostra-las.
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