A coleta de sangue do cordão umbilical é uma decisão de precaução como tantas outras tomadas por pais e mães. Precaução contra o quê? Contra doenças que, muitas vezes, têm baixa probabilidade de incidência. (...) São células com potencial uso no futuro. Hoje, novas doenças são estudadas, nos principais centros de pesquisa do mundo, com o uso de células-tronco para seu tratamento.
CordVida, 2013, parágrafo 31
O mercado privado em torno da coleta, armazenamento e disponibilização de partes do corpo que podem ser úteis num futuro próximo ou longínquo, nos chamados biobancos de células-tronco do cordão umbilical e tecido placentário, vem se tornando um aspecto de crescente importância. No Brasil, a criação dos bancos privados e sua expansão precedem a rede pública. Os bancos privados transformam o sangue do cordão umbilical e o tecido placentário em um capital de risco biológico, que é ampliado por constantes investimentos na difusão de informações. Atraem clientes, não só porque exageram os riscos de que crianças podem precisar de um transplante das células, mas também porque oferecem uma forma de participação na promessa de uma biotecnologia comercial a qual aposta na cura de doenças existentes e outras sequer imaginadas. Junto às empresas privadas, contrata-se a coleta, armazenamento e liberação das células-tronco, quando solicitada comprovadamente por indicação médica, sendo o tempo de criopreservação garantido pelo pagamento regular de taxas anuais.
No circuito econômico da biopolítica contemporânea, as células-tronco do cordão umbilical são mercadorias em um mundial mercado de biotecnologias e, na medida em que as forças de mercado impulsionam a comercialização de tais células, seu valor terapêutico aumenta (Waldby, 2006a). A privatização da vida como biocapital faz parte de toda uma economia política que entra em cena por meio do cálculo da virtualidade, baseado em amostras e indicadores genéticos utilizados como um mapa da gestão da vida, do fazer viver biopolítico, juntamente com a ampliação de habilidades futuras e produtivas da disciplina usada por antecipação, em termos de controle dos corpos no tempo e no espaço.
O desenvolvimento das crianças em etapas cronológicas sucessivas, consideradas evolutivas demarcadas em processos e ciclos, um capital a administrar e a regular, com investimentos simultâneos na segurança pela prevenção e na docilização pela educação. Como investimento na segurança das crianças, entre 2011 e 2012, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância brasileira, foram coletadas 76.832 unidades de sangue autólogo, das quais 77.049 unidades vieram a ser armazenadas, sendo efetivamente utilizadas apenas onze delas, quatro para uso autólogo e sete para uso aparentado. O maior número de unidades armazenadas quando comparado à quantidade de sangue coletados justifica-se pelo fato de que uma unidade coleta pode ser processada e armazenada na forma de uma ou mais bolsas adicionais, a depender do serviço e/ou da característica do material biológico. No mesmo período, a rede pública coletou 1.936 amostras de cordão umbilical, das quais 1.242 foram armazenadas, nove identificadas e empregadas para transplantes alogênicos ou não aparentados e 150 foram destinadas à pesquisa científica (Agência de Vigilância Sanitária [ANVISA], 2013).
As controvérsias em torno dos bancos privados de células-tronco são muitas e, no Brasil, se concentram em torno do questionamento da eficácia das redes públicas onde os materiais biológicos são extensíveis a usos não aparentados, quando contrastada com a eficácia dos bancos privados de células-tronco. Estes as restringem a usos autólogos, os quais, entretanto, continuam a operar e a crescer, baseados na esperança em terapêuticas e em doenças que sequer foram identificadas (Moreira & Palladino, 2005) e talvez nem venham a sê-lo e, em sendo, talvez a quantidade depositada para uso autólogo não seja suficiente (Duarte, Miyadahira & Zugaib, 2009; Pranke, 2004). No cenário transnacional, as controvérsias incidem, também, sobre a autorização para o funcionamento de bancos privados de células-tronco do cordão umbilical em territórios nacionais, aspecto que permeou os debates brasileiros da década de 1990, mas que esmaeceu diante do crescimento do setor.
Alguns países, como França, Itália, Bélgica e Espanha, recomendam a proibição ou limitam a atuação dos bancos privados, por considerá-los improdutivos. A Espanha, por exemplo, mantêm reservas bioéticas acerca do funcionamento de bancos privados, mas recentemente adotou um sistema de regulação que permite o funcionamento destes serviços desde que supervisionados e com a condição de que utilizem os mesmos procedimentos operacionais dos bancos públicos (Comité de Bioética de España [CBE], 2012; Neves, 2012). A França e a Itália continuam a proibir a instalação dos serviços privados de coleta e armazenamento de sangue do cordão umbilical. Dois dos menores países europeus em termos populacionais, Bélgica e Suíça, possuem alguns dos maiores bancos privados de sangue do cordão umbilical ainda que o primeiro mantenha restrições quanto à atuação da rede privada, de maneira que bancos privados podem funcionar somente vinculados a hospitais públicos ou universidades. Apesar das restrições na Bélgica, em 2010 o banco holandês Cryo-Save obteve licença para funcionar de forma independente. Para traçar as linhas que permitem a emergência e funcionamento dos bancos privados é necessário atentar para as legislações como arranjos que são constantemente objeto de exceções.
Em resposta às restrições quanto ao volume necessário para os transplantes, o setor privado vem se organizando em associações que objetivam promover informações sobre os serviços e ampliar a confiança depositada nessa biotecnologia. Esse é o caso, por exemplo, do fórum Asia Pacific Cord Blood Bank Consortium (s/d), criado por uma série de empresas privadas da Ásia, em 2002, com o intuito de discutir as perspectivas atuais e futuras dos avanços médicos e aplicação das células-tronco do cordão umbilical. Em parceria com o fórum asiático, o Cord Blood Europe (s/d) é uma organização fundada pelos principais bancos privados da União Europeia (EU), e tem como objetivo aumentar o nível de normas de qualidade aplicadas e intercâmbio de boas práticas em relação aos protocolos para a técnica de criogenia de preservação das células. O Cord Blood Europe opera, hoje, em todos os 27 Estados-Membros da UE, e possui parceria com a Association of Family Cord Blood Banks (s/d), uma associação norte-americana criada para disseminar à população dos Estados Unidos informações sobre a coleta e o armazenamento das células-tronco do cordão umbilical.
No Brasil, os bancos privados tendem a operar individualmente. Houve a criação da Associação de Células-Tronco, em São Paulo (ACTSO), em 2006, que tem por objetivo estimular e executar pesquisas com células-tronco, bem como garantir a continuidade do armazenamento do sangue do cordão umbilical e placentário. Porém, esta conta ainda com uma pequena adesão, sendo membros associados e contribuintes apenas quatro bancos privados (Centro de Criogenia Brasil Ltda., Criogênesis Serviços de Médicos SS Ltda., Hemomed Cord Cell e Instituto Medicina de Processamento e Armazenamento de Células-Tronco Ltda. – Cordvida). Em meio às controvérsias, em 2013, 19 bancos privados estão em funcionamento em território nacional, distribuídos da seguinte maneira: 3 (três) na região Nordeste, 3 (três) na região Centro-Oeste, dez na região Sudeste e 3 (três) na região Sul, com apenas um banco a mais do que os existentes no ano anterior (Agência de Vigilância Sanitária [ANVISA], 2011; 2013).
A coleta de células-tronco do cordão umbilical, por ocorrer durante o parto, reforça a colocação da infância como um mercado lucrativo e promissor para os que desejam realizar empreendimentos da vida, no campo das governamentalidades liberais. Robert Castel (1987) afirma que, nas sociedades modernas, gere-se um conjunto de performances biológicas e culturais com vistas a capitalizar e a empreender mercados pela regulação da vida, no plano do governo da saúde, da educação, da seguridade, da política social e dos investimentos em tecnologias, como os biodiagnósticos e os exames técnicos de perícias de cálculos de riscos virtuais. Governar o futuro traz a lógica da gestão do risco para o presente em deslizamento com a do perigo a evitar para defender e assegurar a sociedade daquilo que teme e, portanto, visa a se prevenir como tentativa de controle biologizante e político. Não é por mero acaso que Michel Foucault (1976/1988) assinalou que a biopolítica é uma entrada da vida enquanto espécie biológica na história. “Prevenir é primeiro vigiar, quer dizer, colocar-se em posição de antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis (doenças, anomalias, comportamentos de desvio, atos de delinquência, etc.)” (Castel, 1987, p. 126). Traça-se o que podemos nomear como futuros biológicos dos bebês, expressão adotada para aludir à confiança nas tecnologias que armazenam partes do corpo para intervenções médicas possíveis, em um futuro próximo ou distante, e que se materializam nas práticas de cuidado.
As células-tronco são emblemáticas da capitalização da vida, porque possuem como principal característica o potencial generativo (descrito como a capacidade de dar origem a outras células), isto é, de multiplicação, dando origem a novas células, tecidos, órgãos, elas teriam, em sua constituição, uma “mais-valia”. Isso é corroborado por Naara Luna (2007), ao constatar que as pesquisas acadêmicas brasileiras têm se interessado mais pelas células-tronco embrionárias do que pelas adultas, em função da sua potencialidade de gerar novos tecidos e células. As células-tronco do cordão umbilical vinham sendo amplamente utilizadas, por outras propriedades, pelo setor cosmético, pelo setor farmacêutico e como fonte para pesquisas, já que representavam um material de baixo custo e de pequena regulação, quando comparado a outros materiais biológicos (Waldby & Mitchell, 2006). Além desse aspecto, a Academia Americana de Pediatria vem destacando que cada unidade coleta de célula-tronco, apresentaria, também, a potencialidade de ser combinada a outras unidades, ampliando a expansão do volume de sangue, ponto de fragilidade, não raras vezes, apontado durante as controvérsias (American College of Obstetricians and Gynecologists [ACOG], 2008).
Michel Foucault (1976/1988) já nos alertou que a biopolítica é a vida como espécie biológica que entra na história e ganha relevância, uma vez que opera um governo por totalidade de acontecimentos estatística e geograficamente avaliados, economicamente calculados e demograficamente administrados. A saúde e a vida são entrelaçadas em um mercado do cuidado por antecipação, por promoção e, somente a posteriori, em formato de tratamentos (Foucault, 1976/1988). Com o desenvolvimento da biotecnomedicina contemporânea, as intervenções, além do corpo-espécie, passaram, ainda, a se darem sobre fluxos de informação, nos quais a materialidade biológica é uma das suas formas moleculares (Braun, 2007). A vida molecularizada é cambiável, sendo codificada e recodificada em dispositivos de governo que ora aludem às fronteiras que delimitam as espécies, ora as borram, criando híbridos que requerem novas tecnologias políticas para seu governo e a reordenação das práticas de normalização e normatização de condutas.
Gerenciar a vida traduzida em biocapitais envolve a ação, cada vez mais ampliada, de companhias e tecnologias, multiplicando-se as práticas de consumo e bens comercializáveis, dentre eles, a de segurança. Proliferam serviços que objetivam assegurar e proteger da incerteza, bem como se desvela o acirramento da antecipação do futuro expresso nos cálculos de suscetibilidade e num mercado de investimentos biológicos. A generalização da tecnociência com o capitalismo racionalizado no neoliberalismo implicou o advento da biociência como mecanismo de subjetivação, nesse mundo técnico legitimado mundialmente por demandas de respostas de gestão de risco. Tal atitude tem gerado efeitos tecnicistas e resulta em possibilidades de forjar uma suposta eficiência e produtividade, na constituição da saúde, em combinação com a economia política (Rabinow, 1999). É assim que a criopreservação das células não requer apenas duplicá-las, mas também preservá-las e permitir que, num futuro, próximo ou distante, possa revitalizar o corpo doente ou envelhecido (Waldby & Mitchell, 2006), o que aciona um mercado voltado à produção de equipamentos de processamento e criopreservação em tanques de nitrogênio. Como exemplo, podemos citar o Biosafe SEPAX®, uma máquina, criada em 2001, especificamente para o tratamento do sangue do cordão umbilical. Atualmente, esse sistema é adotado pela maioria dos bancos de células-tronco do cordão umbilical (Hamblin, 2010).
Acena-se para uma mutação na própria efetivação da biopolítica, porque a valoração do código genético, das características de educação, das relações sociais e das afetivas são elementos da lógica empresarial de si e dos outros, em que a vida ganha uma dimensão empreendedora em políticas de subjetividade nas quais a saúde é tomada como um bem. Os recentes desenvolvimentos da Medicina Regenerativa e das Biotecnologias provocaram a reconsideração da materialidade corporal que adquire novos sentidos: de uma materialidade fechada e idêntica a si mesma, passa, nos circuitos da bioeconomia, a formar, igualmente, um plano aberto às trocas das suas partes – a vida como investimento e operador na economia política (Waldby, 2008). Nessa direção, Catherine Waldby (2000) emprega o conceito de biovalor para se referir aos modos pelos quais a própria vitalidade tem se tornado uma fonte potencial de valor. Nos biobancos privados, as células-tronco se tornam objeto de investimento afetivo e econômico realizados por pais, enquanto componentes da defesa social e da elasticidade liberal. A feição neoliberal do mercado de células-tronco produz como subproduto tanto a legitimação jurídica quanto uma espécie de “consenso permanente” atrelado ao crescimento econômico (Foucault, 1978-1979/2008). A bioconomia comporta um modo de produção de subjetividades vinculadas a interesses econômicos e de consumo que entrelaçam afetos e capitalização, de maneira que o cordão umbilical é, além de uma transição comercial, também um “laço” o qual liga pais e o futuro das crianças a um mercado biológico globalmente emergente (Brown & Kraft, 2006).
A bioeconomia e seu biocapital estão inscritos e representados em números baseados na virtualidade do risco e/ou na inexistência de danos comprováveis que pauta a precaução: “taxas de investimento, números de companhias, taxas de retorno sobre o capital, números de produtos levados ao mercado, divididos por setores, países, regiões, mapeados ao longo dos anos para mostrar crescimento ou declínio” (Rose, 2011, p. 24). Não é difícil ver como a virtualidade da vida pode ser articulada com medo e pavor, nem é preciso muita imaginação para perceber que a globalização, ao enquadrar o presente em termos do colapso do tempo e do espaço, aumenta ainda mais a sensação difusa de terror biológico interior e exterior aos corpos. A vida tratada em termos de virtualidade transforma nossa relação com o tempo, traçando um futuro biológico aberto e cheio de surpresas, formando um presente povoado por riscos desconhecidos e incognoscíveis. As operações de codificação, decodificação e recodificação dos genes têm permitido laços cada vez mais leves entre a biologia e o capital. Traduzida em redes móveis e fluidas de informações, os materiais biológicos podem ser comercializados e adquiridos com base nos sistemas de patenteamento de tecnologias que garantem futuros somáticos (Rose, 2011).
A minúcia da polícia da saúde realiza-se pelo poder disciplinar, em práticas de repartição dos corpos, de gerência de suas perfomances no tempo e no espaço, esquadrinhadas pela vigilância do olhar panóptico, do olho do poder. A arqueologia do olhar, realizada por Michel Foucault (1963/1977), em O Nascimento da Clínica, destaca como, historicamente, o olhar ganhou importância na prática de observação e controle da saúde e da segurança. A vigilância hierárquica e o olhar do exame especulam, delimitam, repartem, tornam visíveis, jogam luz e, ainda, disciplinam condutas por prognósticos (Foucault, 1975/1999). A distinção binária entre o normal e o patológico persiste numa sociedade cada vez mais obcecada pela segurança dos espaços externos e internos ao corpo (Beck, 1998; Castel, 1987). Coadunam preocupações com as condições exteriores que afetam os corpos e com a manutenção dos fragmentos biológicos que ora são alçados à vida, ora são alçados ao estatuto de mercadorias. Dispositivos de segurança são combinados com a biopolítica e a disciplina, passando a encontrar na dimensão biológica e da economia política alguns de seus lócus de controle. É preciso entender que esses dispositivos articulam saberes, poderes e corpos numa maquinaria complexa, a qual, conforme aponta Kleber Prado-Filho (2010, p. 189), apoiando-se em Michel Foucault, envolve “jogos de objetivação – pelos saberes e poderes – e de subjetivação por parte daquele que se reconhece como sujeito/objeto dessa maquinaria e sofre os efeitos de sua ação, que é a produção política da sua subjetividade”.
No curso O Nascimento da biopolítica, Michel Foucault (1978-1979/2008) analisa a comercialização dos riscos em saúde de maneira privada, apontando como o seguro contra riscos se tornou uma política de saúde no neoliberalismo alemão e no norte-americano. Neles, pais, casais e filhos pensam suas vidas e vínculos como um cálculo de custo e benefício, mediados por contratos de risco computados tecnicamente, lançando mão de estratégias sistêmicas e ambientalistas, concomitantes à utilização de vetores evolucionistas e da manipulação genética. Lucrar e governar a infância passou a ser um negócio em um mercado da vida e das relações afetivas que deve ser lucrativo e sempre empreendedor. É sobre esses vetores biopolíticos que se sustenta o mercado das células-tronco, emblemático da privatização do cálculo de riscos numa esfera paraestatal, a qual agrega prevenção e precaução em prol de uma pretensa garantia de segurança, pelo medo que capta em suas tramas a lógica operacional dos seguros de vida. Não é diferente com a pesquisa na área.
Paul Rabinow (1999) assinala como estão sendo forjadas as biossociabilidades, em que as lutas passam a ser travadas pelo direito à manipulação do código genético e os grupos se organizam em demandas, em função de nomeação de genes ou pelos riscos de desenvolverem determinada doença, por possuírem uma suposta pré-disposição genética. Nesse processo de biossociabilidades, as relações ganham atravessamentos de bioidentidades, com a mediação permanente de exames por meio de biodiagnósticos. Entra em cena, politicamente, a vida situada como biocidadania, marcada por grupos que reivindicam o seu reconhecimento pelos biodiagnósticos e classificações medicalizantes da infância e da família, na atualidade. Esses grupos se afirmam socialmente por um rótulo que os apresenta em seus limites e dificuldades de desenvolvimento.
Michel Foucault (1978-1979/2008), no já citado curso O Nascimento da Biopolítica, destaca que um capital relacional é constituído pelas tecnologias de segurança, sustentadas por práticas de empresariamento da conjugalidade e da aposta em ter filhos e quando e/ou como tê-los, a partir de um cálculo econômico de custo e benefício de investimentos a realizar ou não. Junto às camadas médias, ao lado das preconizadas preocupações com a saúde do feto, com o acompanhamento pré-natal, busca-se garantir o usufruto futuro de tratamentos ainda incertos ou de doenças não detectáveis. Um aparentemente amplo diapasão de escolhas que mantém um modo homogêneo de subjetivação pautado pelo tempo do progresso: quais alimentos ingerir? Quais exames devem ser realizados? Qual empresa de armazenamento de células-tronco deve ser contratada? A invenção de novas técnicas e patologias faz com que a saúde se torne objeto de escolhas sempre incertas frente às quais devem ser acionadas estratégicas de modulação e segurança.
O funcionamento dos bancos privados de células-tronco se assemelha à lógica do investimento em outros capitais asseguráveis. Os pais armazenam o material biológico para uma eventual utilização futura, por parte do seu filho. Em caso de doença, os pais devem apresentar um exame médico o qual comprove a finalidade terapêutica para resgate do material. No Brasil, para os serviços privados que oferecem o armazenamento de células-tronco de cordões umbilicais e de tecido placentário, assegurar a vida passa pela efetivação de um contrato entre empresa e cliente sobre o trânsito de partes do corpo. Tais estabelecimentos, por parte da regulamentação do Ministério da Saúde e Agência de Vigilância Sanitária, requerem finalidades terapêuticas que são condições para que as “unidades” possam ser “resgatadas”, porém, por parte da Previdência Pública, a contratação do serviço privado não é dedutível do imposto de renda, como ocorre com os seguros de saúde (Neves, 2012). Pressões no sentido de disponibilização pública das unidades armazenadas vêm, sobretudo, das organizações mobilizadas por pessoas que necessitam ou apostam nas terapêuticas de células-tronco do cordão umbilical como possível cura, sendo este o caso de vários pacientes diagnosticados com câncer. Tais pressões, aliadas a um grande segmento da comunidade científica envolvida com a pesquisa e inovação, conduziram à criação da rede pública de bancos, todavia, esta não gerou uma diminuição significativa dos serviços privados.
O Brasil, apesar de ser um país com uma oferta de cobertura integral de saúde provida pelo Estado, por meio do Sistema Único de Saúde, criado em 1988, é também um país no qual empresas de seguros privados de saúde possuem uma penetração intensa, principalmente nas camadas médias, as quais recorrem à chamada Medicina Suplementar, ou seja, aos planos privados cujas operadoras são fiscalizadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Considere-se, ainda, que a separação entre sistema público e privado de saúde é instável e que se acena para uma crescente contratação de serviços privados pela gestão pública. A distinção entre público e privado termina operando muito mais em termos da natureza, daquele que paga diretamente pelos serviços, do que pelos serviços ofertados pelas empresas, uma vez que estas podem atuar tanto no SUS como na Saúde Suplementar (Bahia, 2010). Voltando às empresas de células-tronco de cordão umbilical, elas não são integradas à rede Pública de saúde que, como enunciado anteriormente, mantém uma rede de bancos para armazenamento desse material biológico, correspondente a 10 bancos públicos em funcionamento (ANVISA, 2013).
A oferta dos bancos privados de células-tronco se junta aos demais gastos das famílias na saúde privada, cujos planos considerados mais completos ofertam, inclusive, segurança patrimonial. Contribui para o movimento mais amplo de privatização e segmentação social, o qual opera dividindo a população entre aqueles que possuem uma cobertura duplicada pública e privada e aqueles que possuem apenas a primeira, bem como diferencia as pessoas quanto ao tipo de seguro e cartela de serviços que podem contratar (Cordeiro, Conill, Santos & Bressan, 2010). Dessa maneira, é inconteste o papel dos bancos privados de células-tronco no movimento de privatização da saúde que reforça a segmentação e as desigualdades sociais. Podemos argumentar que os bancos brasileiros do cordão umbilical arregimentam a lógica dos setores de hemoderivados e de planos e seguros de saúde. É importante frisar que este segmento não é fiscalizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. São regulamentadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária as questões consideradas como atinentes à segurança da coleta, da preservação, da utilização e à qualidade das células-tronco coletadas.
Nas empresas privadas brasileiras, o custo corrente para a coleta, a criopreservação e o armazenamento do sangue do cordão umbilical varia entre R$ 3.000 a R$ 5.000, com uma taxa anual de manutenção do material entre R$ 500 a R$ 800. Trata-se, portanto, de um serviço direcionado a segmentos com médio ou elevado poder aquisitivo. O valor a ser pago pelo armazenamento do material biológico independe de cálculos sobre as condições de saúde dos usuários, não havendo, portanto, emprego da ciência atuarial, o que o diferencia da lógica dos seguros de vida (idade, sexo, ocupação etc.) e, também, dos planos de saúde privados (cálculo por idade e sexo). Entra-se no que Gilles Deleuze (1992) descreve como característico das sociedades de controle, que reside na venda de dispositivos de segurança operados em um mercado de seguros, funcionando como uma modulação da vida pelo tempo fluido, pela privatização da saúde e pela comercialização de serviços aos clientes ávidos por performances e por marcas de si em circulação permanente.
Assegurar a vida compreende evitar riscos e estes logo se tornaram palpáveis, calculáveis, previsíveis, sendo a programação das populações “a contrapartida lógica de um planejamento consequente, mas ela é mais difícil de ser realizada por razões a um só tempo técnicas e políticas” (Castel, 1987, p. 113). Nessa perspectiva, os seguros ofertam a venda de certezas por aproximações de confiança técnica, materializam o mercado dos vínculos e dos corpos organizados por códigos, mapas e incapacidades reais e potenciais, biológicas e culturais, e, simultaneamente, acentuam o medo. Isso acontece com os seguros de saúde privados que, apoiados pelo artigo 129 do Decreto-Lei Nº 73/66, oferecem cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar, pelos sistemas de livre escolha ou convênio, mediante o pagamento do que se denomina prêmio, que é a função dos riscos, onde o segurador suporta os custos financeiros do tratamento médico do segurado. O mesmo se dá nos seguros de vida; quando há ocorrência de acidente ou sinistro, a seguradora indeniza o mutuário com um capital ou bem, com base no cálculo atuarial. Nos bancos de células-tronco privados, conforme enunciado anteriormente, o cálculo atuarial não é usado; contudo, desde 2004, as empresas devem relatar mensalmente à Gerência Geral de Sangue, outros Tecidos, Células e Órgãos (GGSTO) da ANVISA o número de unidades “descartadas” e os motivos de “descarte”, bem como a destinação das unidades, quando contratos são suspensos (ANVISA, 2011; Neves, 2012).
O emblema da biopolítica moderna passou a ser a identificação e cálculo dos riscos, tendo em vista preveni-los ou, pelo menos, administrá-los por meio do cálculo econômico e de intervenções médico-psicológicas que produzem mães e crianças “em risco” (Castel, 1987). No entanto, tais riscos se tornam cada vez mais difíceis de governar, levando o cálculo a ocupar, em algumas configurações, um lugar secundário em relação à esperança ou mesmo à aposta num futuro técnico diferente. Nas reflexões foucaultianas, os dispositivos de segurança correspondem ao conjunto de instituições, de natureza biopolítica, responsáveis pelo governo da proteção da vida, no plano do governo das populações ou da conduta dos indivíduos, incluindo-se aí o aparato policial, os órgãos de vigilância sanitária, as empresas seguradoras, até a psicobiologia, a nanotecnologia, a estatística aplicada à saúde, a pedagogia das competências, os direitos sistêmicos, as arbitragens de mediação descentralizada e as diplomacias internacionais. Esses dispositivos operam através de instituições disciplinares ligadas à ascensão de algumas ciências (da vida, humanas e medicina clínica) e da compreensão da vida como um conjunto de acontecimentos que se tornaram passíveis de regulação, a exemplo da natalidade, mortalidade e morbidade que constituíram um dos primeiros alvos desse novo governo. Cada indivíduo passa a ser inserido no conjunto dos fenômenos da população, os quais tendem a se ampliar e integram sem cessar novos elementos, desenvolvendo circuitos e processos de circulação cada vez maiores.
Vale a pena demarcar que os bancos públicos também mobilizam intensos fluxos de capital. Quando da criação de um banco público, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) investe aproximadamente R$ 3,5 milhões. Em 2004, os bancos públicos passaram a ser articulados numa rede nacional – Brasilcord – por meio da Portaria Ministerial nº 2381 de 29/10/2004. A rede gerencia e reúne os bancos públicos de células-tronco do cordão umbilical, tendo como principal objetivo beneficiar um maior número de receptores. Essa rede é coordenada pelo diretor do Centro de Transplante de Medula Óssea do INCA e recebeu, em 2008, R$ 31,5 milhões do BNDES para expandir-se no país, com a instalação de mais biobancos; dessa forma, estima-se que mais biobancos sejam criados. Nos bancos públicos de células-tronco, os serviços de coleta, criopreservação e armazenamento do sangue do cordão umbilical são gratuitos, mas a sua criação e manutenção requerem um arranjo de financiamentos públicos e privados.
Seja na ascensão dos bancos públicos, seja na dos bancos privados, exacerbam-se as estratégias preventivas que, segundo Robert Castel (1987), visam a rastrear mães e crianças em busca de correlações, cuja ampliação é sempre possível até o limite em que o cálculo se torna acessório, pois o que está em xeque é o imperativo da velocidade das tecnologias as quais podem ser desenvolvidas para doenças previsíveis, porém, ainda não efetuadas nos corpos, apenas prováveis em função de exames variados que operam o governo da infância pela prevenção de riscos. É nesse sentido que o depósito privado de “células-tronco” funciona como uma forma de propriedade, cujo valor é orientado para o futuro biológico, tanto do titular da conta quanto da biotecnologia. Uma economia que se assenta em complexos arranjos legislativos entre mercado e Estado, entre Público e Privado numa máquina de produzir heterogeneidades. Maurizio Lazzarato (2008/2013, p. 45) esclarece esse ponto, ao afirmar que as modalidades de funcionamento da racionalidade liberal operam jogando um dispositivo contra o outro, por jogos de capturas, de oposições de fricções, de alianças; com efeito, acrescenta, “heterogeneidade para Foucault significa tensão, fricção, incompatibilidades mútuas, ajustamentos bem sucedidos ou fracassados entre estes diferentes dispositivos”.
No Brasil, para o funcionamento dos bancos privados, concorrem legislações não coincidentes. Primeiro, destaquemos a Lei nº 8.974, de 05 de janeiro de 1995, que impulsionou, indiretamente, a coleta e o armazenamento de células-tronco do cordão umbilical e placentário, ao estabelecer normas para o uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização e consumo de Organismos Geneticamente Modificados. Segundo, elenquemos a Resolução nº 1.544/99, de 09 de abril de 1999, do Conselho Federal de Medicina, que impede o comércio de partes do corpo humano, mas regulamenta os Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário, o que culminou com a publicação da Portaria MS nº 903, de 16 de agosto de 2000, a qual dispõe sobre a criação de bancos de sangue de cordão umbilical e placentário. E terceiro, a Resolução RDC nº 190/03, da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que determina normas técnicas para o funcionamento dos bancos de sangue de cordão umbilical e placentário.
Passando às regulações no contexto europeu, atualmente, os bancos privados são controlados pelas Diretrizes para Tecidos e Células da União Europeia (EUTCD). O EUTCD, aprovado pelo Conselho de Ministros, em 2 de março de 2004, tem como objetivo mediar a segurança e os padrões de qualidade das células e tecidos humanos em toda a União Europeia. As Diretrizes, por sua vez, foram elaboradas para regular os serviços de tecidos e células. O EUTCD é composto por três diretrizes: (1) a Diretriz 2004/23/EC, de 31 de março de 2004, que regula os serviços públicos de coleta, análise, processamento, preservação armazenamento e distribuição do tecido humano, incluindo o sangue do cordão umbilical; (2) a Diretriz 2006/17/CE da Comissão, de 8 de fevereiro de 2006, que aplica a Diretriz 2004/23/CE, no que concerne a determinados requisitos técnicos aplicáveis à doação, coleta e análise de tecidos e células de origem humana; e (3) a Diretriz 2006/86/CE da Comissão, de 24 de outubro de 2006, que aplica a Diretriz 2004/23/EC do Parlamento Europeu e do Conselho, no que se refere aos requisitos de rastreabilidade, à notificação de reações e incidentes adversos graves e a determinados requisitos técnicos para a codificação, processamento, preservação, armazenamento e distribuição de tecidos e células de origem humana. Arranjos legislativos também assumem conotações singulares, nos países-membros da União Europeia. No Reino Unido, por exemplo, essas Diretrizes formaram a base da Lei de Tecidos Humanos de 2004, a qual, por sua vez, resultou no desenvolvimento do órgão regulador Autoridade de Tecidos Humanos (HTA). A HTA emite alvará de funcionamento para os bancos públicos e privados de sangue do cordão umbilical, utilizando tanto a auditoria documental quanto a inspeção formal (Hollands & McCauley, 2009). Em Portugal, a operacionalização dessas Diretrizes culminou na criação da Lei 12/2009, de 26 de março de 2009, que regula os serviços dos bancos privados e compete à verificação do funcionamento das empresas privadas à Autoridade para os Serviços de Sangue e Transplantação (ASST) e Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA).
Poder-se-ia supor que o investimento em segurança acionado pelos biobancos de células-tronco, dentre eles os bancos do cordão umbilical, abrandaria o medo, sendo a base para subjetivações previdentes e sensações de tranquilidade. Todavia, o que assistimos é diferente, pois diz respeito à produção de grandes apostadores que sequer contam com a certeza que outrora depositavam nos cálculos da ciência atuarial, a qual deu origem às empresas de seguros. O medo exacerbado sustenta uma indústria securitária que nos produz receosos e, paradoxalmente, grandes apostadores que jogam suas fichas no mercado biológico. Aporia que se vê também em campos correlatos, como o dos esportes de aventura, pois praticá-los seria resistir ao medo, o que acaba por ser um falso-problema, já que a aventura só se concretiza pela tentativa de romper com o medo e não questioná-lo como fabricado.
É na esteira do medo que a racionalidade da segurança surge como apaziguamento de possíveis conflitos e tensões, os quais visam a legitimar procedimentos. O mercado se sobrepõe ao público e regula as novas fronteiras da medicalização da vida, indo ao encontro das reflexões de Félix Guattari (1977/1986) sobre o capitalismo mundial integrado, que previam a heterogeneidade dos fluxos acionados pelas grandes corporações e as decorrentes reconfigurações das subjetividades. A gestão dos bancos privados, apesar de fortemente ligada ao mercado, está apoiada num quadro jurídico que se molda às suas transformações e que envolve problematizações em torno da segurança traduzida em regulamentações técnicas. Aliás, Robert Castel (1987) já apontava que estamos migrando de técnicas de saúde terapêuticas para táticas de prevenção e regulação de performances a serem potencializadas e/ou minimizadas por meio de dispositivos biotecnológicos, exames, perícias, expertises de gestão de riscos e por todo um aparato de uma administração social da segurança, pelo retorno das racionalidades pautadas em uma objetividade médica, psicológica e judicializante.
À biocapitalização das células-tronco se vincula toda uma dimensão normativa numa sociedade neoliberal regulada por grandes corporações e legitimada pelo Estado. Isso pode ser visto quando evidenciamos que a autorização para o funcionamento dos bancos privados, no Brasil, resulta de um arranjo legislativo, já que se apoia na defesa de que o que está sendo comercializado é o serviço e não o próprio material, que, portanto, se manteria incólume. Lembremos que, em 09 de abril de 1999, o Conselho Federal de Medicina, pela Resolução CFM nº 1.544/99, que ainda se encontra em vigor, postulou que a obtenção de amostras de sangue de cordão umbilical é de natureza gratuita e voluntária, mediante esclarecimento da finalidade e da técnica, sendo vedada a comercialização com fins lucrativos. O que está em pauta é uma governamentalização “com uma capacidade cada vez mais sutil de intervenção, de inteligibilidade, de organização do conjunto de relações jurídicas, econômicas e sociais, do ponto de vista da lógica da empresa” (Lazzarato, 2008/2013, p. 45).
A incerteza e a desconfiança, a prevenção e a cautela são forjadas em dinâmicas de subjetivação, características de alguns setores da sociedade brasileira, nas quais cuidar das crianças reforça uma lógica individualista baseada na retenção de um bem biológico, em contraponto aos bancos públicos que recebem doações e disponibilizam células para terapêuticas aprovadas. No mercado da saúde expresso pelas biotecnologias, do qual os biobancos de célula-tronco fazem parte, os processos de subjetivação vão se constituindo por linhas técnicas e por biossociabilidades administradas e capitalizadas econômica e politicamente, em nome da sociedade de segurança: monitoração constante, paranoia e práticas de prevenção baseadas na vigilância (Castiel, 2011) e na lógica da segurança, a qual garante a circulação e a atenção detalhada a tudo o que se coloca como impasse para as artes de governo (Lazzarato, 2008/2013). A vigilância e a prevenção ganharam, com os biodiagnósticos para evitar doenças e com o medo persecutório aliado à incerteza, os contornos de um mercado de saúde que comercializa promessas. Forjam-se subjetivações as quais apelam ao empreendedorismo individual, ao gerenciamento de riscos, às cautelas prudenciais e à colaboração com o futuro da biotecnologia regenerativa, expresso na forma de incertezas e apostas (Waldby, 2006b, 2011; Waldby & Mitchell, 2006).
Nos folhetos e páginas eletrônicas de bancos privados, os pais expressam que devem fazer tudo o que consideram possível para o bem da criança, incluindo-se aí a compra dos serviços de criopreservação de células-tronco, culpando-se ou buscando se justificar, em caso de não fazê-lo (Mendes-Takao, Diaz-Bermúdez, Deffune & Santis, 2010). Questionamentos sobre o futuro do bebê, bem como estratégias para garantir-lhes uma vida saudável, por meio do armazenamento de células-tronco do cordão umbilical, misturam-se àquelas sobre saúde gestacional e a educação da criança instaurada pela medicina obstétrica do final do século XIX. No advento da Medicina Regenerativa, armazenar as células-tronco tornou-se questão de compromisso para com a saúde e o desenvolvimento da criança que agencia os dispositivos herdados da Higiene e da Medicina Social às tecnologias de segurança, rearticulando-os em novos contornos liberais. A prática de utilização dos serviços privados está se enraizado de tal maneira que os “cordões umbilicais congelados” passaram a fazer parte das biografias familiares brasileiras, constando nos álbuns das crianças, misturados a “cachos de cabelo, sapatinhos metalizados, alfinetes que prendem as chupetas, roupa do batismo” (Spink, 2010, p. 37).
As páginas eletrônicas brasileiras que divulgam os serviços privados de coleta e armazenamento de células-tronco do cordão umbilical e placentário estão repletas de depoimentos e fotografias de famílias felizes e de argumentos que reclamam por prevenção e precaução. Defendem que uma patologia para a qual hoje não se tem “a cura”, amanhã pode vir a tê-la, arrogando-se da esperança depositada na ciência; quem hoje está saudável, pode ser portador de uma doença ainda não descoberta, prerrogativa do medo diante do incerto. Colocam em circulação os momentos em que o cordão umbilical é cortado do corpo do bebê, os processos de coleta, transporte, criopreservação e armazenamento e, também, os registros de momentos familiares que mostram o futuro de famílias cuja saúde está assegurada. Reúnem, igualmente, informações na literatura científica existente para justificar que o sangue do cordão umbilical oferece várias vantagens sobre a medula óssea e/ou as células estaminais periféricas, uma vez que, biologicamente, um maior grau de incompatibilidade antígeno leucocitário tolerado pelo receptor e a incidência de contrarreação do enxerto é diminuída. Intensificam as pressões biopolíticas morais que constrangem os “embaraçáveis”, responsabilizam os “negligentes” e submergem a todos numa atmosfera não apenas precaucionária, mas, também, paranoica e persecutória (Castiel & Alvarez-Dardet, 2007).
Além das estratégias de divulgação nas páginas virtuais, os bancos montam stands nas feiras voltadas a gestantes, para ofertar os serviços; médicos são arregimentados para explicar às famílias a importância de armazenar as células-tronco do cordão umbilical; folhetos são divulgados em consultórios. Em outros países, como, por exemplo, os Estados Unidos, os bancos privados financiam médicos obstetras para transmitir informações sobre seus serviços às gestantes, no momento da consulta (Meyer, Hanna & Gebbie, 2001). No Brasil, não dispomos de dados sobre tal relação mercantilizada entre médicos e bancos privados: o que sabemos é que os panfletos e propagandas dos serviços podem ser encontrados em consultórios e laboratórios clínicos, assim como em feiras voltadas para gestantes. Também sabemos que em diversos bancos privados, as equipes responsáveis pela coleta são remuneradas por cada serviço prestado aos bancos (entenda-se por unidade coletada) e que estas não são necessariamente compostas por médicos; ao contrário, inscrevem percursos de precarização laboral com contratação de terceiros que sequer contam, em alguns casos, com uma sede física: recolhem o material, seguem as instruções de preservação e logo o remetem para os grandes centros que possuem tecnologias de criopreservação.
Nikolas Rose (2011) nos lembra da lição deixada por Michel Foucault (1963/1977), em O nascimento da clínica, de que, para entendermos algumas práticas, não podemos olhar para “uma única causa”, mas tentar “mapear o modo pelo qual múltiplos deslocamentos permitem que algo novo emerja – algo que não se estabiliza, mas que continua mudando” (Rose, 2011, p.13). Dessa forma, interrogar as tramas biopolíticas das empresas que comercializam a coleta e o armazenamento de células-tronco sinaliza para dinâmicas de privatização da vida, na forma de capital, sob a égide desse promissor mercado de serviços biotecnológicos que objetiva assegurar pessoas cada vez mais amedrontadas diante de incertos e assoladores futuros. Mercado este que é correlato ao mercado de segurança pessoal e patrimonial, o qual se expressa na construção de muros, cercas e alarmes que, como nos mostra Teresa Caldeira (2000), são onipresentes nos bairros das camadas médias brasileiras. Visa-se a assegurar as células-tronco enquadradas como um patrimônio familiar – algo que se deixa para um filho ou filha – às casas e condomínios – também patrimônios e investimentos – numa vida mobilizada em torno de interesses econômicos mais do que em torno de direitos de envergadura pública.
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