A Psicologia Social brasileira é uma área do conhecimento que apresenta inúmeras definições, abordagens teóricas e objetos de estudo. Alguns(mas) autores(as) a consideram uma subárea da Psicologia, outros(as) acreditam que ela é a interseção da Psicologia com a Sociologia. Há ainda aqueles(as) que afirmam que o adjetivo “social” não delimita uma subdivisão temática ou conceitual, mas enfatiza a importância do compromisso político que todo psicólogo deve ter. Uns(mas) baseiam-se nas leituras do Materialismo Histórico-Dialético para estruturar sua prática profissional, outros(as) preferem as leituras construcionistas ou ainda as da Teoria das Representações Sociais. Há psicólogos(as) sociais cognitivistas, behavioristas, psicanalistas, comunitários etc.
Neste trabalho, argumentamos que esses não são diferentes aspectos ou atributos de um mesmo objeto, mas elementos que ajudam a performar diferentes versões desse objeto – são, portanto, elementos que fazem Psicologias Sociais diferentes, embora relacionadas entre si. Que fazem uma Psicologia Social múltipla, ou seja, que é mais do que uma ao mesmo tempo em que é menos do que muitas (Mol, 2002).
Para sustentar esse argumento, percorremos diferentes caminhos, usamos diferentes materiais, nos referimos a diferentes pessoas. Em nossas primeiras “idas a campo”, visitamos duas bibliotecas de referência da área – a Nadir Gouvêa Kfouri, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Ao digitar o descritor “Psicologia Social” nos bancos de dados dessas bibliotecas, nos deparamos com duas imensas listas de materiais e, como seria inviável lermos e analisarmos todos eles, optamos por estabelecer alguns critérios de seleção: dentre todos os livros e manuais disponíveis, selecionamos apenas aqueles que haviam sido publicados entre 1990 e 2011 e que se caracterizavam como introdutórios à Psicologia Social. Não selecionamos, portanto, obras antigas ou que abordavam somente uma subárea, conceito ou temática específica. Outro critério que utilizamos para selecionar os livros e manuais que compõem o corpus deste trabalho foi a nacionalidade dos(as) autores(as). Dentre todas as obras introdutórias, selecionamos somente aquelas que eram de autoria de pesquisadores(as) brasileiros(as) ou de estrangeiros(as) que atuam profissionalmente no Brasil.
Após uma leitura inicial desses livros, observamos que vários deles abordam a crise de referência que assolou a Psicologia Social brasileira na década de 1970. Ao descrever esse momento histórico, enfatizam as controvérsias e discrepâncias entre a proposta de Aroldo Rodrigues e a de Silvia Lane. Desse modo, decidimos buscar materiais que nos ajudassem a contar melhor essa história. Para isso, consultamos os bancos de dados das bibliotecas da PUC-SP, do IP-USP e do SciElo (www.scielo.br).
Em um terceiro momento, percorremos os corredores das bibliotecas onde estão dispostas as teses e dissertações defendidas nos programas de pós-graduação em Psicologia Social das duas universidades. Após lermos os resumos de todos os trabalhos concluídos entre 1990 e 2011 e identificarmos seus objetos de estudo, linhas teóricas e estratégias metodológicas, selecionamos duas pesquisas (uma de cada universidade) que fazem Psicologias Sociais bastante diferentes e que “transitam” por áreas do conhecimento distintas. A leitura da tese e da dissertação selecionadas nos pareceu tão interessante que resolvemos selecionar mais dois trabalhos. No entanto, desta vez recorremos ao site da associação representativa da área - a ABRAPSO -, no qual buscamos as referências dos dois trabalhos premiados no “II Concurso de Teses, Dissertações e Artigos da ABRAPSO”.
Outro “lugar” que visitamos para falar da multiplicidade da Psicologia Social brasileira foi o debate suscitado pela criação do título de especialista na área. Recorremos, sobretudo, a textos acadêmicos e a documentos de domínio público, tais como os editais e as provas do concurso que dão acesso a essa titulação e o encarte especial dedicado ao tema, publicado no número dezessete da Revista Psicologia & Sociedade.
É importante ressaltarmos que tratamos todos esses artigos, livros, documentos e trabalhos acadêmicos não apenas como “textos”, mas como materialidades que produzem efeitos, se conectam, se articulam com outros textos, com outras práticas. Ou seja, os tratamos como materialidades que produzem certas realidades da Psicologia Social brasileira.
É importante ressaltarmos, também, que estamos usando a palavra “realidade” no plural. Afinal, como dissemos anteriormente, há diversas realidades, ou melhor, há diversas versões da Psicologia Social brasileira. Nos textos de Aroldo Rodrigues (1972; 1979), por exemplo, a Psicologia Social é uma ciência básica, cuja única forma de intervenção é indireta: ela fornece dados objetivos para que tecnólogos sociais possam resolver problemas sociais. Já na obra de Silvia Lane (1981/2006; 1984/2007), ela é, essencialmente, uma ciência comprometida com a transformação social.
Na tese de Silvia Friedman (1992), orientada por Silvia Lane, a Psicologia Social utiliza conceitos como consciência, linguagem e representações sociais, e baseia-se em autores como Alexei Leontiev, Alexander Luria, Lev Vygostsky, Serge Moscovici, Mary Jane Spink, Denise Jodelet e na própria Silvia Lane. Seu método consiste em gravar e transcrever sessões terapêuticas realizadas em uma clínica de fonoaudiologia e submeter os dados produzidos durante essas sessões a uma Análise Gráfica do Discurso.
Nessa tese, a Psicologia Social é algo bastante diferente do que ela é na pesquisa de Aroldo Rodrigues e Eveline Assmar (2003) sobre comportamento normativo. Afinal, a Psicologia Social desenvolvida nessa pesquisa não estuda consciência nem discursos. Não se baseia na obra de autores russos nem de franceses. Não articula núcleos de pensamento nem unidades de significados. Não grava nem transcreve. Ela é uma Psicologia Social que tem como objeto os graus de justiça da punição de comportamentos infratores e, para analisá-los, usa estatísticas, questionários, escalas, tipologias de bases de poder, valores escalares, desvios-padrão, classificações, quadrados latinos, salas de aula e estudantes universitários dispostos a participar de pesquisas científicas.
Já na dissertação de mestrado de Vera Menegon (1998), a Psicologia Social não usa escalas nem faz análise gráfica do discurso; não fala de núcleos de pensamento nem de tipologias de bases de poder; não é “positivista” nem “sócio-histórica”. Mas enfoca o uso de repertórios interpretativos sobre menopausa em conversas do cotidiano e na literatura científica da área de saúde. É, portanto, uma Psicologia Social que acontece em bares, festas, salas de espera e bibliotecas; que envolve ondas de calor, mudanças repentinas de humor, medos, dúvidas, preconceitos, tratamentos hormonais, bancos virtuais de dados e diários de campo.
Essa Psicologia Social não se restringe às quatro paredes de uma sala de aula – como no estudo de Aroldo Rodrigues e Eveline Assmar (2003) – nem de um consultório fonoaudiológico – como na tese de doutorado de Silvia Friedman (1992). Ela pode ocorrer em qualquer lugar, em qualquer momento. Aqui, o fazer pesquisa é um trabalho em tempo integral, que exige que a pesquisadora ande sempre com um caderninho na bolsa para tomar nota de tudo que tenha a ver com seu objeto de estudo. É, também, um trabalho que envolve marido, filhos, amigos, desconhecidos… Que acontece durante as férias, na rampa da faculdade, através de uma linha telefônica… É um trabalho que transforma o banal, o cotidiano, o “sem importância”, em algo relevante, em objeto de estudo de uma ciência.
A Psicologia Social da tese de doutorado de Belinda Mandelbaum (2004), por sua vez, não relata situações do cotidiano da pesquisadora, mas faz transcrições de entrevistas e sessões de atendimento clínico. Sua produção não acontece a qualquer hora, em qualquer lugar; mas em uma instituição pública de saúde, em horários agendados previamente, com clientes/pacientes escolhidos(as) por apresentar características especificadas em seu projeto de pesquisa. Assim como a Psicologia Social das pesquisas de Silvia Lane, essa tese busca unir investigação com intervenção, no entanto, para isso, articula atores e utiliza técnicas bastante diferentes. Em primeiro lugar, ela parte de um referencial teórico psicanalítico e, sendo assim, fala de Freud, de sofrimento psíquico, de traumas, de sintomas etc. Em segundo lugar, Belinda Mandelbaum (2004) realiza entrevistas e atendimentos clínicos com grupos e famílias de desempregados(as), buscando criar um espaço de “escuta” capaz de lidar com suas dores e histórias. Sendo assim, seu compromisso não é propriamente com a transformação da sociedade, como no caso de Lane, mas com as demandas daqueles(as) que aceitam participar de sua pesquisa.
Até aqui, citamos alguns exemplos de diferentes versões da Psicologia Social brasileira. Mas, como dissemos anteriormente, dizer que há diferentes Psicologias Sociais não significa dizer que elas não estejam relacionadas, e sim que essa área do conhecimento é um objeto fractal, ou seja, é mais do que uma ao mesmo tempo em que é menos do que muitas. Em outras palavras, significa dizer que ela não está totalmente fragmentada e que suas várias versões mantêm alguma relação – afinal, há programas de pós-graduação, uma associação de classe, disciplinas de graduação, manuais introdutórios e até mesmo um título de especialista voltados à Psicologia Social. E, mais, significa dizer que essa singularidade não é dada a priori, mas é o resultado de todo um trabalho de (co)ordenação. Afinal,
Não estamos lidando com perspectivas diferentes e possivelmente equivocadas do mesmo objeto. Ao invés disso, estamos lidando com diferentes objetos produzidos em diferentes ensamblagens metodológicas. Esses objetos sobrepõem-se, sim. De fato, é sobre isso que se trata todo o problema: tentar garantir que eles se sobreponham de modos produtivos. Modos que tornam possível intervir […]. Então, eles se sobrepõem, mas não são iguais. Diferentes realidades estão sendo criadas e mutuamente ajustadas para que possam relacionar-se – com maior ou menor dificuldade. (Law, 2004/2008, p. 55, tradução nossa, itálicos no original).
Um dos modos de articular e (co)ordenar diferentes versões da Psicologia Social é abordar essa área do conhecimento como se houvesse apenas uma maneira de ela existir. Ou seja, é “caixanegrizá-la”, omitindo suas controvérsias, problematizações e condições de produção. Belinda Mandelbaum (2004), por exemplo, utiliza essa estratégia ao afirmar que a Psicologia Social é aquela que estabelece o hífen entre o individual e o coletivo. Em suas palavras:
Toda vez que lidamos com singularidades em Psicologia Social, preocupamo-nos em estabelecer o hífen entre o individual e o coletivo, entre o singular e o plural, visando, como diz Adorno, integrar o homo oeconomicus […] e o homo psychologicus. […] é um aspecto essencial de qualquer estudo desenvolvido no campo da Psicologia Social, não apenas por estabelecer, um modelo teórico qualquer que […] consiga abranger e estabelecer conexões causais necessárias entre os diversos domínios da existência humana e as determinações da vida dos homens, mas porque ajudam a estabelecer um vínculo entre o que seriam as teorias sobre a vida dos homens – as teorias históricas, econômicas, sócio-culturais, psicológicas, etc. – e a expectativa em si da vida humana. […] a Psicologia Social deve ressaltar o hífen entre todo esse campo teórico, as minuciosas e inumeráveis construções elaboradas em seu interior, e a concretude da vida humana em si. (Mandelbaum, 2004, pp. 189-190, itálicos nossos).
Podemos dizer que, neste trecho de sua tese doutoral, Belinda Mandelbaum (2004) fala em nome de todos(as) psicólogos(as) sociais, convertendo-se, assim, em porta-voz de seus interesses, práticas e preocupações. Ao fazer isso, desconsidera que muitos(as) desses(as) profissionais posicionam-se como contrários(as) a dicotomias como indivíduo-sociedade ou conhecimento-realidade, de tal maneira que, para eles(as), não faz sentido “colocar hífens”. Desconsidera, também, que outros(as) tantos(as) focam somente um lado dessa dicotomia: estudam questões individuais ou aspectos sociais; produção de conhecimento ou a “realidade em si”. Ao fazer isso, a pesquisadora transforma a Psicologia Social na prática de “colocar hífens”; faz com que o vínculo entre as teorias sobre a vida e a expectativa em si da vida humana seja um ponto de passagem obrigatório.
Márcia Moraes (2011) nos chama a atenção para o fato de que a “caixanegrização” de um objeto é uma estratégia de construção de “verdades” apresentadas como a-históricas e universais. Em suas palavras: “há, aí, embutida, sem dúvida, uma certa concepção de conhecimento atrelada a um desengajamento: quanto mais desengajado das condições práticas, locais, situadas, tanto mais verdadeiro é o fato.” (p. 55).
Os autores e autoras que fazem uso dessa “caixanegrização” apresentam a Psicologia Social como algo pronto, estabilizado; e não como algo que está em constante transformação e que é alvo de inúmeras controvérsias. Em seus textos, a Psicologia Social é traduzida: o que é complexo e difuso é transformado em algo ordenado, coerente e singular.
Esse modo de lidar com multiplicidade se preocupa, sobretudo, em produzir objetos singulares e definidos. Em outras palavras, esses textos criam singularidade “apagando”, “camuflando” ou desconsiderando a existência de diferentes versões da Psicologia Social brasileira. No entanto, de acordo com John Law (2004/2008), há maneiras de evitar pluralização sem criar objetos singulares que, na melhor das hipóteses, podem ser olhados a partir de diferentes perspectivas – aquilo que Annemarie Mol (2002) chamou de “distribuição” é um exemplo disso.
A ideia central da distribuição é que diferentes versões de um objeto podem coexistir “pacificamente” desde que não tentem ocupar o mesmo lugar no tempo e no espaço (Mol, 2002). Dizemos, por exemplo, que, nas escolas, a Psicologia Social busca evidenciar a estrutura concreta e simbólica dos conflitos escolares, além de viabilizar propostas de intervenção que permitam a participação de todos(as) os(as) interessados(as) (Alves & Silva, 2006). Que, nas instituições de saúde, a Psicologia Social visa compreender processos de saúde e doença e o funcionamento dos serviços (van Stralen, 2007). Enquanto que, nas comunidades, a Psicologia Social preocupa-se em desenvolver a consciência de seus(uas) moradores(as) como sujeitos históricos e comunitários (Neves & Bernardes, 1998/2007). A despeito de possuírem diferentes objetivos e métodos, essas Psicologias Sociais não entram em conflito. Afinal, cada uma acontece em um ambiente determinado: a primeira ocorre em escolas, a segunda em instituições de saúde e a terceira em comunidades. Ou seja, assim distribuídas, as diferentes versões dessa área do conhecimento podem coexistir sem que essa coexistência seja considerada uma contradição.
Outra forma de evitar o “choque” entre diferentes Psicologias Sociais é distribuí-las geograficamente e dizer, por exemplo, que na Europa a Psicologia Social é de um modo, enquanto que nos Estados Unidos ela é de outro. Ou ainda, distribuí-las temporalmente, dizendo que antes da crise da década de 1970 a Psicologia Social era positivista e depois da crise passou a ser comprometida com a transformação social. Ou distribuí-las de acordo com sua origem e seu objeto de estudo, separando-as em Psicologia Social psicológica e Psicologia Social sociológica.
Muitas vezes, as diferentes Psicologias Sociais recebem nomes distintos: a Psicologia Social “pré-crise”, por exemplo, é conhecida como “experimentalista” ou “positivista”, enquanto que a “pós-crise” é “crítica”. O trabalho em comunidades frequentemente é chamado de “Psicologia Comunitária” ou “Psicologia Social Comunitária”, enquanto que o que ocorre em instituições seria parte da “Psicologia Institucional”, da “Psicologia Escolar” ou da “Psicologia do Trabalho”. No entanto, quando os(as) profissionais que atuam nesses diferentes lugares ou momentos históricos dialogam, usam um nome comum: Psicologia Social. Nos encontros da ABRAPSO, por exemplo, participam profissionais e pesquisadores(as) que atuam em diversos lugares, leem diferentes autores(as), estudam temáticas distintas e militam por causas específicas. Mas durante os encontros da associação, todos(as) – ou pelo menos quase todos(as) – são psicólogos(as) sociais. O rótulo “Psicologia Social” funciona, portanto, como um mediador, como uma espécie de ponte que liga as diferentes versões dessa área do conhecimento que estão distribuídas no tempo, no espaço e nas disciplinas acadêmicas.
Outro mediador que muitas vezes impede que distribuições acabem por fragmentar a Psicologia Social em uma série de objetos não relacionados é o discurso sobre a necessidade de promover transformações sociais. O Conselho Federal de Psicologia (CFP)1, por exemplo, afirma que a Psicologia Social “atua fundamentada na compreensão da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais e coletivos, sob diferentes enfoques teóricos e metodológicos, com o objetivo de problematizar e propor ações no âmbito social.” (Resolução 05/03, artigo 3º, parágrafo 1º). Ou seja, para o CFP, a despeito de estarem distribuídas em diferentes correntes teórico-metodológicas e campos de atuação, as diferentes Psicologias Sociais estão conectadas por um objetivo comum: problematizar e propor ações sociais.
Em outros textos, Psicologias Sociais distintas não se unem por uma preocupação política comum, mas pelo fato de se referirem às relações dinâmicas entre o indivíduo e a sociedade ou, ainda, pelo fato de serem capazes de compreender o “homem” (sic.) como sujeito da cultura.
Assim como os objetos podem ser distribuídos, eles podem, também, ser recombinados para formar entidades compostas. Annemarie Mol (2002) chama esse modo de (co)ordenação de “adição”. Frequentemente, documentos oficiais e textos introdutórios definem a Psicologia Social somando uma série de práticas e objetos. A resolução 005/2003 do CFP, por exemplo, afirma que:
O psicólogo nesse campo desenvolve atividades em diferentes espaços institucionais e comunitários, no âmbito da Saúde, Educação, trabalho, lazer, meio ambiente, comunicação social, justiça, segurança e assistência social. Seu trabalho envolve proposições de políticas e ações relacionadas à comunidade em geral e aos movimentos sociais de grupos e ações relacionadas à comunidade em geral e aos movimentos sociais de grupos étnico-raciais, religiosos, de gênero, geracionais, de orientação sexual, de classes sociais e de outros segmentos socioculturais, com vistas à realização de projetos da área social e/ou definição de políticas públicas. Realiza estudo, pesquisa e supervisão sobre temas pertinentes à relação do indivíduo com a sociedade, com o intuito de promover a problematização e a construção de proposições que qualifiquem o trabalho e a formação no campo da Psicologia Social. (Resolução 05/03, artigo 3º, parágrafo 1º).
Assim, de acordo com essa resolução, o(a) psicólogo(a) social faz pesquisa e propõe políticas públicas; trabalha com movimentos sociais e com a comunidade em geral; intervém no âmbito da saúde e da educação; atua no mundo do trabalho e da justiça; lida com questões referentes ao meio ambiente e à comunicação social… Essas diferentes práticas e locais de atuação são alinhados e somados de tal maneira que passam a referir-se a um objeto único: a Psicologia Social.
É importante ressaltarmos que a (co)ordenação para a singularidade não depende da possibilidade de referir-se a um objeto preexistente, mas ela é uma tarefa (Mol, 2002). Desse modo, não existe uma Psicologia Social que pode ser pensada a partir de diferentes perspectivas que, ao serem devidamente identificadas e somadas, podem nos dizer o que essa área do conhecimento de fato é. O processo é inverso: ao definir a Psicologia Social desta maneira, o CFP soma e subtrai uma série de práticas e como resultado cria uma Psicologia Social singular.
Além de singular, essa Psicologia Social criada pelo CFP é composta. Ou seja, é uma unidade formada por uma série de elementos agrupados. É como um trabalho de patchwork, no qual tecidos com diferentes texturas, cores e padrões são cortados, alinhavados e costurados formando um todo. No entanto, esse todo não é igual à soma de suas partes, afinal uma colcha de patchwork não é um mero agrupamento de retalhos; mas é algo que cobre camas, decora quartos, evoca lembranças e aquece corpos. Do mesmo modo, a referida Psicologia Social também não se reduz à soma das atividades descritas na resolução 005/2003. Ela provoca debates, estabelece normas, define quem pode e quem não pode receber o título de especialista na área, influencia políticas educacionais, embasa concursos públicos etc.
Ao definir as especialidades da Psicologia, o CFP cria uma identidade para cada “tipo” de profissional. Mas, se partimos do pressuposto de que uma prática profissional não é algo singular, definido ou estável, não faz sentido tentarmos delimitar a identidade do(a) psicólogo(a) social ou discutirmos em que medida ela se diferencia da de profissionais de outras áreas ou subáreas do conhecimento. Assim como também não faz sentindo tentarmos hierarquizar ou escalonar os diferentes campos do saber.
Neste trabalho, tentamos pensar as áreas do conhecimento de uma forma intransitiva: não como uma matryoshka, na qual as áreas “maiores” incluem as “menores”; mas, usando a metáfora proposta por Michel Serres (1994/1995), como bolsas maleáveis que podem incluir-se mutuamente – como, por exemplo, aquelas sacolas de compras reutilizáveis (ou “ecobags”), que possuem saquinhos acoplados para guardá-las. Quando vamos ao supermercado, dobramos a sacola e a colocamos dentro bolsinho, mas, quando precisamos utilizá-la, retiramo-la e guardamos o bolsinho dentro da sacola.
Assumir essa postura evita, entre outras coisas, problemas na hora de definir o “tamanho” das áreas, subáreas e especialidades. Afinal, o que é maior: a Psicologia Social ou a Psicologia Comunitária? Intervenção Psicossocial ou Clínica Psicanalítica? Muitos(as) pesquisadores(as) se deparam com essa dificuldade ao preencherem formulários ou cadastrarem seus currículos na Plataforma Lattes (lattes.cnpq.br)2 – tanto que, nessa plataforma, o escalonamento dos campos do saber não é padronizado. Alguns(mas) pesquisadores(as) colocam, por exemplo, a Psicologia Comunitária como uma subárea da Psicologia; outros(as) a colocam como uma especialidade da subárea Psicologia Social (Cordeiro & Spink, 2011).
Mas, no dia-a-dia de um(a) pesquisador(a), esse escalonamento de saberes muitas vezes não tem tanta relevância. Na tese de Mandelbaum (2004), por exemplo, a Psicologia Social e a Psicanálise não estão distribuídas hierarquicamente. Uma não está dentro da outra, mas ambas andam lado a lado. Na maior parte da tese, a autora concentra-se em fazer um bom trabalho psicanalítico: cria um espaço de “escuta”, identifica pulsões, diminui sofrimento psíquico etc. Mas, no início da parte II, abruptamente, muda seu foco para a Psicologia Social: “ser desempregado é um aspecto do real ou uma condição da vida psíquica? […] Toda vez que lidamos com singularidades em Psicologia Social, preocupamo-nos em estabelecer o hífen entre o individual e o coletivo.” (Mandelbaum, 2004, p. 189). Em tal tese, a atenção dirigida à vida psíquica é facilmente voltada ao vínculo entre o individual e o coletivo. Mas isso não se dá “tirando o zoom” e ampliando o escopo, mas mudando a “câmera” de lugar e focando outro objeto (Mol, 2002).
Dizer que disciplinas acadêmicas incluem-se mutuamente nos remete à discussão sobre “transdisciplinaridade” – sendo esta entendida não como a simples ação de conectar áreas afins, ou buscar enriquecer uma disciplina com contribuições oriundas de outras disciplinas; mas como a supressão de fronteiras entre diferentes ciências. Afinal, quando não mais buscamos traçar fronteiras, complexificamos a realidade. Permitimos que um método, uma teoria ou um objeto de estudo estabeleça diferentes relações, pertença a diferentes campos disciplinares, seja “topologicamente” múltiplo.
Ao defender essa complexificação da realidade, esperamos que este trabalho contribua para fazer uma diferença (ainda que pequena) no campo da Psicologia Social brasileira. Que chame a atenção para a possibilidade de ordenar e de coordenar a realidade de diferentes modos. De reconhecer que nessa disciplina cabem múltiplos e diversos atores. De fazer uma Psicologia Social que “ao invés de isolar variáveis, busca conexões complexas que articulam humanos a não-humanos e que performam múltiplas realidades” (Moraes & Monteiro, 2010, p. 112).
É importante ressaltarmos que a Psicologia Social que fizemos nesta pesquisa não é a única possível; nem é mais verdadeira, mais abrangente ou mais bem intencionada que as outras. No entanto, o fato de ela não revelar a verdade sobre o mundo não significa que seja falsa. De acordo com Law (2004/2008), se admitimos que a realidade é múltipla, a verdade não pode mais ser o único árbitro na decisão de que métodos e teorias devemos seguir – ainda que, obviamente, ela permaneça sendo importante. A
Assemblage metodológica [method assemblage] não trabalha na base do capricho [whim] ou da volição. Ela precisa ressoar em e através de um conjunto estendido e materialmente heterogêneo de relações padronizadas se quiser manifestar uma realidade e uma presença que está relacionada a esta realidade. Então, verdade é um bem [good]. Ela permanece sendo um bem. (Law, 2004/2008, p. 148, tradução nossa, itálicos no original).
Neste trabalho, temos, portanto, um compromisso com a verdade – mas com uma verdade que não é a única possível. Temos, também, um compromisso político: buscamos tornar certos arranjos mais prováveis, mais fortes, mais reais. Arranjos que permitem que a Psicologia Social brasileira seja múltipla.
De acordo com John Law (2004/2008), criar imaginários ônticos/espitemicos múltiplos pode ou não ser desejável – isso dependerá das circunstâncias, do conteúdo desses imaginários e de como nos posicionamos ao avaliá-los. No entanto, para o autor, propor a proibição completa desses imaginários nunca é desejável. É uma política de alteridade (politics of Othering) que pressupõe e impõe “que singularidade é destino, que o desencantamento está na natureza das coisas, e que multiplicidade é um erro.” (p. 149, tradução nossa). Sendo assim, neste artigo, não estamos propondo que todos psicólogos e psicólogas sociais devam sempre fazer e falar de uma Psicologia Social múltipla; estamos apenas chamando a atenção para essa possibilidade.
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