O fenômeno da precarização e da flexibilização laboral no âmbito da Universidade Pública Brasileira: o caso dos professores substitutos

The Phenomenon of Precarization and Flexibilization of Labor in the Brazilian Public University: a Case Study on Substitute Teachers

  • Cássio Adriano Braz de Aquino
  • Dimitre Sampaio Moita
  • Guto Mariano Correa
  • Karlinne Oliveira Sousa
O artigo constitui relato de pesquisa acerca do fenômeno da precarização e da flexibilização laboral no âmbito da Universidade Pública Brasileira, investigando a experiência de trabalho dos professores substitutos. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e os dados, construídos a partir da Análise Sociológica do Discurso. Propomo-nos a investigar o lugar ocupado pelo trabalho na vida desses professores e quais as evidências de flexibilização e precarização identificadas por eles em seu exercício profissional. Além disso, pretendemos colaborar com as discussões sobre os processos de subjetivação através do trabalho, investigando os impactos aludidos pelos professores substitutos em sua constituição subjetiva. Âmbito em que a temporalidade constitui recurso privilegiado de compreensão das transformações que caracterizam a contemporaneidade.
    Palavras chave:
  • Trabalho
  • Precarização
  • Subjetividade
  • Psicologia Social
This paper consists in the research report on the phenomenon of precarization and flexibilization of labor in the Brazilian Public University, researching the work experience of substitute teachers. Semi-structured interviews were conducted and the data were built from the Sociological Analysis of Speech. We propose to investigate the role occupied by work in the life of such teachers and which evidences of precarization and flexibilization is made clear by them in their professional practice. Furthermore, we intend to collaborate with discussions on the processes of subjectification through work, investigating the impacts alluded by substitute teachers in their subjective constitution. In this Context, temporality holds privileged resource of understanding the transformations that characterize contemporaneity.
    Keywords:
  • Work
  • Precarization
  • Subjectivity
  • Social Psychology

1 Introdução

Ao longo dos últimos cinco anos vimos empreendendo reflexões sobre as transformações do mundo do trabalho. Tais ideias tiveram início com aportações sobre a relação entre temporalidade e ordem social e foram se desdobrando em análises que privilegiassem as vinculações entre o novo cenário laboral e a reestruturação do tempo social, tomando os processos de precarização e de flexibilização como eixos destacados dessa tarefa.

O texto aqui apresentado constitui uma etapa desse percurso mais amplo e compõe a segunda fase da pesquisa “O fenômeno da precarização e da flexibilização laboral no âmbito da Universidade Pública Brasileira: o caso dos professores substitutos”.

As Instituições de Educação Superior no Brasil estão organizadas, tal como prevê o Decreto 5.773/06 do Ministério de Educação Brasileiro (MEC), segundo sua prerrogativa acadêmica em: faculdades, centros universitários e universidades. Essas últimas, que compõem o foco do nosso estudo, têm como princípio a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. São responsáveis pela formação de quadros profissionais de nível superior em característica pluridisciplinar e se caracterizam por atender as seguintes premissas:

I - produção intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional;

II - um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado;

III - um terço do corpo docente em regime de tempo integral. (Brasil, 2006, parágrafos 7-9).

Atualmente (dados de abril de 2012) no Brasil estão contabilizados pelo MEC 193 Universidades com diferentes formas de organização administrativa, a saber: públicas municipais, públicas estaduais, públicas federais, privadas sem fins lucrativos, privadas com fins lucrativos e regime especial.

As Universidades Públicas Federais, que totalizam 59 dentre as 193 instituições universitárias, têm seu corpo docente estruturado pelo Plano de Carreiras de Magistério das Instituições Federais de Ensino subordinadas ou vinculadas ao Ministério da Educação e ao Ministério da Defesa, tendo por atividade fim o desenvolvimento e aperfeiçoamento do ensino, da pesquisa e da extensão. Delineia-se assim uma isonomia estrutural e de remuneração entre os professores de diferentes instituições do território brasileiro. A carreira dos professores efetivos (com contratos por tempo indeterminado) está organizada com a seguinte estrutura de classes: Auxiliar, Assistente, Adjunto, Associado e Titular1. Quanto ao regime de trabalho, as mesmas estão organizadas segundo os seguintes vínculos: 40 horas semanais, em tempo integral, com dedicação exclusiva; tempo parcial de 20 horas semanais; e, 40 h – excepcionalmente, mediante critérios a serem estabelecidos pela Instituição Federal de Ensino.

Há, no entanto, um tipo de contrato excepcional, estabelecido por tempo determinado e que durante boa parte da década de 1990 e princípio da década de 2000 foi utilizado sobremaneira na composição do quadro funcional docente, que foi denominado de professor substituto. É justamente esse tipo de vínculo que constitui o cerne do nosso interesse de investigação, uma vez que era reconhecido como uma forma de trabalho precário que tinha impacto na auto-percepção dos professores que a ele estavam submetidos e que repercutiam indiretamente sobre os professores efetivos. A limitação de sua atuação (exclusivamente dedicado ao ensino) feria a proposta da própria natureza jurídica da Universidade, que deveria atuar na integração do ensino à pesquisa e à extensão.

No contexto da formulação da pesquisa, o fenômeno da contratação de professores substitutos revelava-se uma estratégia excessivamente utilizada no âmbito das Instituições Públicas de Ensino Superior como forma de compensar um desmantelamento progressivo da carreira docente. Do momento de sua formulação até hoje, essa realidade sofreu alterações e passou a configurar-se numa estratégia pontual e descolada de uma política de vulnerabilização dos vínculos docentes. Essa compreensão, entretanto, não esvazia o propósito de refletir sobre os efeitos dos mecanismos de precarização e flexibilização no cenário contemporâneo e traz à luz os processos vivenciados pelos trabalhadores que hoje são submetidos a essa realidade cada vez mais “naturalizada” no mundo do trabalho contemporâneo.

Esse estudo empírico que constituiu a segunda, de um total de três fases, de uma proposta de pesquisa dedicada à compreensão da realidade laboral dos professores substitutos incorpora também reflexões extraídas da primeira fase. A fase I da pesquisa foi realizada entre 2007 e 2008 junto aos professores vinculados ao Centro de Humanidades de uma Universidade Pública Brasileira, e teve por alvo os cursos de Psicologia, Ciências da Informação, História e Comunicação Social. O grupo que a realizou2, a exceção do coordenador, é distinto do que compõe a segunda etapa. A fase II, da qual este escrito é produto, foi concretizada entre os anos de 2009 e 2010 no Centro de Ciências (Biologia, Bioquímica e Biologia Molecular, Computação, Estatística e Matemática aplicada, Física, Geografia, Geologia, Matemática, Química Analítica e Físico-Química, Química Orgânica e Inorgânica) e teve como pesquisadores participantes os próprios autores. A terceira fase está sendo realizada entre os professores substitutos da Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, garantindo uma discussão que melhor reflita as múltiplas vivências laborais nos vários campos do conhecimento.

Partindo da premissa de que os contextos estudados são de debilitamento e vulnerabilidade dos vínculos laborais e que constituem exemplo de relação precária de trabalho, nos propusemos a investigar o lugar ocupado por este na vida desses professores; como identificam seu processo de inserção laboral; e, quais as evidências perceptíveis de flexibilização e precarização identificadas por eles em seu exercício profissional. Além disso - e o que determina a pertinência do estudo à Psicologia Social do Trabalho - pretendemos colaborar com as discussões sobre os processos de subjetivação através do trabalho, investigando os impactos aludidos pelos professores substitutos em sua constituição subjetiva.

Realizamos entrevistas semi-estruturadas com sete professores do Centro de Ciências e a metodologia escolhida para o tratamento dos dados colhidos foi a Análise Sociológica do Discurso como proposta por Enrique Alonso (1998). Esse método qualitativo considera que os discursos remetem a práticas de atores sociais ativos, marcados pela dinâmica histórica e intersubjetiva em que são enunciados. O discurso, assim percebido, deve ser interpretado em seus conteúdos latentes (não inconscientes ou ignorados, mas latentes), buscando-se, a partir da caracterização do contexto, alcançar os significados que envolvem a enunciação (Alonso, 1998).

2 Compreendendo o contexto de precarização e flexibilização laboral

A reestruturação produtiva operada ao longo dos últimos 30 anos tem tido repercussão na outrora sólida estrutura do trabalho, que associou o modelo da sociedade salarial não somente a um modo de produção, mas fundamentalmente a um modo de proteção social. Robert Castel (1995/1997) destaca como esta vinculação implicou não somente na inserção da classe trabalhadora na estrutura de consumo, mas, também, no surgimento de uma nova relação contratual, o que impactou na realidade dos trabalhadores, sobretudo a partir da década de 1950, em um modelo de vida marcado pela estabilidade e seguridade social. O trabalho constitui-se, em alguns contextos, a categoria excepcional da coesão social, ou seja, valor por excelência para reconhecimento da cidadania (Aquino y Moya, 2002).

Nos países capitalistas centrais, a sociedade salarial permitiu a filiação dos trabalhadores a instituições que garantiam uma existência digna e afastada da realidade de penúria e precariedade características da vivência do proletariado nascido com a industrialização. Instituição que tem grande desenvolvimento nesse período é o sindicalismo. A organização coletiva dos trabalhadores possui papel fundamental nas reivindicações junto aos empregadores e ao Estado. Este passa a ocupar o lugar de regulador da norma contratual através do direito do trabalho, reconhecendo que há uma relação de subordinação subjacente ao processo e que a parte mais débil deve ser protegida. A norma de emprego incide fixando a relação biunívoca entre número de empregos e postos de trabalho, medida através da qual se acreditava alcançar o pleno emprego.

No Brasil, o processo se dá de forma diferente, no entanto, podemos identificar um conjunto de análogos desses direitos e instituições que Castel (1995/1997) denomina propriedade social, como o sistema de proteções ligado à carteira de trabalho assinada. Além disso, enquanto podemos constatar nos países capitalistas centrais índices acima dos 70% de trabalhadores formais entre a população ativa, no Brasil, o não assalariamento atingia mais de 50% da população (Nardi, 2006). Nosso país não atingiu o pleno emprego e tem uma história trabalhista fortemente atravessada pela informalidade e vínculos débeis. Ainda assim, o ideal marca sobremaneira as medidas voltadas para o campo do trabalho ao longo do último século e ainda compõem o discurso político majoritário.

Tal como afirmam alguns autores (Gorz, 1995; Mèda, 1995/1998), a sociedade salarial não foi perfeita e nela podiam ser explicitadas profundas distorções, mas hoje, ao depararmo-nos com o rápido processo de complexificação, fragmentação e heterogeneização (Antunes, 1998) que assume o mundo laboral, somos obrigados a refletir sobre os efeitos mais evidentes dessa substituição por uma nova ordem social mediada pelo trabalho. A crise do modelo de produção da sociedade salarial, que culminou na crise do emprego, instaurou novas medidas de gestão social do trabalho. Acompanhamos um longo processo de desregulamentação e conseqüente flexibilização das formas de inserção laboral.

O sociólogo espanhol Andrés Bilbao (1999) afirma ser esta flexibilização alternativa à regulamentação estatal do direito do trabalho, adotada sob a orientação dos ideais neoliberais que penetram, a partir da crise, os discursos sobre a condução da economia – discursos que apontam a flexibilização como única forma de combate ao desemprego crescente. Ao longo das últimas décadas, o direito do trabalho é enfraquecido, sobretudo no que se refere à norma de emprego, como explica Bilbao (1999), pondo abaixo a relação parelha entre empregos e postos de trabalho observada no período de pleno emprego. O mundo do trabalho passa a ser regido cada vez mais pelas oscilações de mercado, e para tanto, é necessário que indústrias e empresas prestadoras de serviços tenham maior flexibilidade de contratação e demissão de pessoal e de contratação em tempo parcial e em horários atípicos, além de buscar terceirizar parte de seu processo produtivo. Todo esse desenvolvimento possui estreita relação com as já citadas complexificação, heterogeneização e fragmentação da classe-que-vive-do-trabalho de que trata Ricardo Antunes (1998).

O discurso a favor da flexibilização se estrutura em torno das vantagens do processo tanto para empresas como para trabalhadores. Aumento produtivo e competitividade, redução de custos e otimização de recursos são vantagens enumeradas para o funcionamento das empresas. Ao tratar dos adventos para o trabalhador surgem fatores como possibilidade de maior autonomia, maior controle sobre a própria atividade e a possibilidade de conciliar o trabalho a outras esferas da vida. Apesar do discurso das vantagens, o que se percebe é uma associação cada vez mais presente entre formas de flexibilidade e a precarização do trabalho (Aquino, 2008; Garrido, 2006).

As características acima apontadas marcaram sobremaneira as instituições privadas, mas de certa forma estavam resguardadas no setor público. As idéias neoliberais, entretanto, buscaram pouco a pouco desestabilizar o sentido social do Estado, dando passo a um setor público cada vez mais mercantilizado. No caso específico do Brasil, tal adoção deu origem ao que se conhece no âmbito da administração pública como gerencialismo. Tal como apresenta Bresser-Pereira (1996), o gerencialismo é concebido como uma reação às práticas de gestão burocrática, e visa à implantação de uma administração ágil com foco na sociedade tratada agora como “cliente”. De forma simplificada seria a implantação de princípios básicos da gestão de empresas privadas, levadas ao âmbito da gestão pública. Com isso, rapidamente, as ideias e modelos gerenciais de fundo privado começaram a ser validados também para os serviços públicos, e constituiu-se a noção de políticas mercantis atuando em instituições voltadas para o bem-estar público.

Bilbao (1999) reforça a diferença entre o significado do processo de precarização para os trabalhadores e para a gerência – categorias claramente percebidas como antagônicas. Enquanto a flexibilização representa, para a maioria dos trabalhadores, a insegurança e a incerteza quanto às expectativas de futuro, para a gerência representa a segurança na certeza do cálculo de custos diante das flutuações do mercado. De onde o autor afirma:

El significado de la flexibilización está estrechamente relacionado con el de la seguridad en la gestión económica. Este es su contenido central y, en consecuencia, la flexibilización comporta dos aspectos: uno que es la introducción de formas de contratación temporal para cubrir puestos de trabajo fijo; el otro alude a la ruptura de cualquier capacidad por parte de la fuerza de trabajo de sustraerse a las determinaciones de la lógica del mercado (Bilbao, 1999, p. 25).

A partir de então, várias categorias profissionais assistem a vulnerabilização de seus direitos e garantias trabalhistas, submetidas a situações de trabalho consideradas precárias e atravessadas pelos imperativos da incerteza, da descontinuidade e da imprevisibilidade temporal. É este fenômeno processual e delimitado historicamente pela flexibilização das formas de inserção no mundo do trabalho que denominamos precarização laboral, que não deve ser confundido com a própria precariedade, que remete às difíceis condições próprias de cada realidade de trabalho e que sempre as demarcaram em diferentes momentos históricos, embora de forma pontual e não articulada (Aquino, 2008). A noção de precarização relaciona-se com o futuro, com a duração e com a solidez não asseguradas, características diretamente associadas ao sentido da temporalidade. Reflete o que é fugaz, frágil, instável ou incerto (Cingolani, 2005). Se a precarização é o fenômeno por nós privilegiado (em sua complementaridade à flexibilização laboral), é a precariedade que constitui a grande categoria de reflexão.

A Universidade Pública Federal não ficou imune a essas transformações, sendo percebidos, também, nestas instituições, efeitos da política gerencialista. A intensificação do trabalho docente, caracterizada pela prática produtivista, através da exigência do aumento da publicação de trabalhos científicos e do aumento da carga horária nas atividades de ensino (disciplinas e orientações discentes), ocorreu concomitantemente à perda de benefícios vinculados à carreira acadêmica (a exemplo, a licença sabática) e à diminuição progressiva dos rendimentos auferidos pela categoria docente. Tais mudanças aproximam a realidade laboral da Universidade Pública Federal à realidade da iniciativa privada, deslocando o foco da sua função social anterior para uma perspectiva mais instrumental do ensino, caracterizando-se por práticas de formação voltadas a interesses menos críticos e mais orientadas pela demanda do mercado e por formas produtivas dominantes.

3 O Contrato de professor substituto como referente da precarização

No contexto estudado, podemos nos referir ao processo de precarização do trabalho docente nas Instituições de Ensino Superior (IES) do Brasil (Bosi, 2007), pela perda e debilidade gradual de direitos e garantias conquistadas em momento anterior e pela ampliação da norma de emprego própria da profissão. Desenvolvimento ligado ao sucateamento da universidade pública que teve seu ponto mais alto na década de 1990 e início dos anos 2000.

A mercantilização do ensino superior e a falta de recursos na universidade pública causaram verdadeira diáspora entre os docentes. Grande parte desses profissionais migrou para o ensino privado e o restante recorreu à aposentadoria como forma de evitar a perda de direitos (Coimbra, 2004). Foi nesse contexto que em 1991, através da portaria Nº 1007, a Universidade investigada regulamentou a contratação de professores substitutos, em regime de 20 ou 40 horas por um período de 12 meses, mediante contrato de locação de serviços, sujeito à renovação conforme solicitação do Departamento interessado. O salário é fixado à vista da qualificação do contratado, com base no valor do vencimento estabelecido para o nível I da classe das carreiras do Magistério correspondente à respectiva titulação. O Governo Federal dispôs sobre a contratação de pessoal por tempo determinado em 1993 através da Lei Nº 8.745, considerando-a necessária em ocasiões de interesse público especiais, tais como calamidade pública, emergências em saúde pública e recenseamento. Tal realidade se viu ampliada a ponto de subverter exceção e regra. A proliferação de contratação de substitutos mudou o perfil do quadro docente em muitos cursos dentro da Universidade. Mesmo havendo limitações, na prática e diante de uma política de fragilização das instituições públicas, os contratos por tempo determinando acabaram sendo contabilizados como um “mal menor”.

A atividade do professor substituto nasce em situação de precariedade e constitui fator de precarização da carreira docente na medida em que instaura a convivência de duas normas de emprego em torno de uma mesma categoria de trabalho. É utilizada como expediente alternativo a contratação de pessoal fixo, interno e coberto pelo conjunto de garantias de que gozam os professores efetivos (Bilbao, 1999).

É importante destacar a diferença percebida entre os dois momentos de realização da pesquisa, apontados ao inicio do texto. As políticas voltadas às Instituições Públicas de Ensino Superior a partir de 2002 sofreram profundas transformações, que em função da sua complexidade ainda estão em fase de implantação.

Durante os anos do governo Fernando Henrique Cardoso, foi possível perceber um processo claro de debilitação da carreira docente, onde se denotavam aspectos como perda de direitos e garantias estabelecidas através da legislação constitutiva do Regime Jurídico Único (RJU), retração dos concursos públicos para (re)composição do quadro docente, perdas salariais, dentre outras. Foi nesse contexto onde surgiram os contratos por tempo determinado, com características restritivas de atuação docente. Emergia assim a figura do professor substituto, não apenas como uma estratégia compensatória a problemas pontuais que impediam a contratação de um professor efetivo, mas como forma de expandir uma vinculação fragilizada, sem incorporação ao quadro docente permanente.

Os chamados “substitutos” tiveram um rápido crescimento e passaram a representar em alguns cursos quase 50% do quadro docente. Essa realidade, associada à restrição de uma participação mais efetiva em atividades como pesquisa e extensão, nos chamaram atenção e fomentaram a curiosidade sobre as conseqüências dessa opção de política laboral no seio das Universidades Públicas Brasileiras.

O projeto de pesquisa que subsidia o presente artigo surge nesse contexto e responde de forma clara a um processo de precarização da carreira docente, alvo dos nossos estudos. É bem verdade que ao longo dos últimos anos, sob o governo Lula, tal realidade se viu alterada. No que diz respeito à figura dos substitutos, pelo menos, passou a ser restringida como política de contratação, chegando tal como afirma a redação do § 2, do Inciso VII da Lei 9.849 de 1999, a um máximo de 10% do total do quadro docente e com critérios muito claros de sua utilização como política de contratação laboral. As restrições estão mais claramente definidas no ofício da Universidade investigada:

  • Vacâncias (posse em outro cargo inacumulável, aposentadorias, exonerações, demissões e falecimentos) ocorridas a partir de janeiro de 2008, sem o devido reposicionamento de professor efetivo, através de concurso público;
  • Afastamentos para realização de mestrado, doutorado e pós-doutorado, não podendo ultrapassar o percentual de 10% do total de professores efetivos da unidade de lotação.
  • Licença médica e licença gestante.
  • Licenças de caráter obrigatório, como requisição para o TRE e cessão a Secretaria da Presidência da República. (Ofício Circular nº 32/2010/SRH/UFC, Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 1).

Essa mudança nas políticas de contratação dos professores substitutos e a restrição efetiva de seu uso, como alternativa de composição do quadro docente, não devem, entretanto, minimizar as reflexões que daí se empreendem, ao contrário, reforça nossa compreensão de que a precarização não é uma conseqüência natural das alterações do mundo do trabalho, mas fundamentalmente uma opção política que direciona as práticas laborais no âmbito social.

No primeiro momento de pesquisa, junto aos professores da área de Ciências Humanas, o grupo de entrevistados foi composto por nove professores, sendo cinco mulheres e quatro homens, na faixa etária de 23 a 42 anos. Do conjunto de professores ligados ao Centro de Humanidades foram excluídos da amostra aqueles com menos de um ano de atividade docente como substituto. Ressalte-se que o contrato de substituto nas Universidades Públicas Brasileiras, definidos pelo Ministério da Educação, não pode superar os dois anos. Os cursos a que estavam ligados esses profissionais eram: Psicologia; Ciência da Informação; História; e Comunicação Social3. Quatro desses professores desenvolviam outra atividade, um exercia a docência e os outros três o jornalismo.

Após a escolha dos sujeitos a serem entrevistados, procedeu-se o contato para a realização das entrevistas. Foi acordado com os mesmos que estas seriam gravadas e posteriormente transcritas. As entrevistas eram de caráter semi-estruturado e foram realizadas no ambiente de trabalho dos pesquisados. O material coletado foi interpretado a partir do reconhecimento dos professores como atores concretos – na condição de professores substitutos da Universidade Pública – e produtores de práticas significantes, inseridos num espaço comunicativo – o momento preciso em que esse discurso é enunciado – demarcando sua força social. Tal procedimento orientou a metodologia de pesquisa ao longo de todas as etapas, porém, no segundo momento, detalhado no tópico seguinte, o aprofundamento dos estudos da relação entre subjetividade e trabalho ganharam relevo, permitindo maior foco nos aspectos psicossociais da precarização.

Pudemos constatar, entre os professores do Centro de Humanidades, que a percepção dos aspectos de precariedade estava fortemente influenciada pelo lugar ocupado pela atividade de professor substituto na vida docente:

Dessa forma, os professores entrevistados que apontaram o exercício da docência sua principal atividade e fonte de remuneração, parecem sentir de maneira significativa os impactos da flexibilização desta relação. Já para os professores que possuem cargos de trabalho já consolidados na iniciativa privada e atribuem à docência um caráter paralelo, os aspectos da flexibilização são percebidos de forma mais amena (Aquino, Kerr, Moura e Nobre, 2008, p. 4).

De maneira distinta, a percepção dos professores do Centro de Ciências é marcada pelo contexto de construção de conhecimento específico da área. Os entrevistados, em grande maioria, são licenciados – um grau de ensino superior voltado para a atuação nos níveis infantil, fundamental e médio. Todos afirmaram ter a carreira docente no ensino superior como meta. Afirmam ainda ser difícil manterem-se pesquisando fora da Universidade, mesmo que o façam de maneira não autônoma – vinculado a um professor efetivo. Daí a condição de substituto ser vista como um período de formação necessário, por mais que precária.

Mas, é aquela história, você precisa ter experiência pra colocar no currículo pra no dia que abrir o edital pro efetivo você ter como. Então, ai isso acaba levando não só eu, mas muita gente a exercer o cargo de professor substituto (Entrevistado nº 3, entrevista pessoal, 2ª fase, 09 de abril de 2010).

Essa distinção por áreas emergiu no contexto da própria pesquisa e das interlocuções teóricas, resultado de uma compreensão de que os efeitos dos processos de precarização e flexibilização tendem a ser distintos de acordo com a área acadêmica e o potencial de inserção no mercado laboral, pelo menos no âmbito da docência universitária.

Tal como anteriormente afirmado a mudança da política de contratação dos professores substitutos ocorreu no contexto por nós estudado, a partir de 2008, quando se voltou a impor limites mais rígidos à prática dos contratos por tempo determinado e diante da consolidação de uma política voltada a Universidade Pública Brasileira, a saber, a implantação do REUNI4.

No momento onde demos início a pesquisa, a utilização do professor substituto como alternativa ao esvaziamento do quadro docente, causado pelas aposentadorias ou mesmo abandono da carreira em função da sua pouca atratividade, ainda era um traço marcante e bastante significativo na compreensão do fenômeno da precarização, daí sua relevância manter-se intacta, apesar da alteração do quadro na política desenhada para educação pública superior. Historicamente, compreender a utilização dessa “norma de trabalho”, se torna profundamente reveladora de uma política de precarização levada a cabo durante a década de 1990 e princípio do século XXI. Ademais dessa constatação, a figura do professor substituto não desapareceu como norma de vínculo laboral, apenas ficou limitada, mas a ela continuam a recorrer milhares de trabalhadores que fazem do contrato determinado uma alternativa para o ingresso no mundo do trabalho.

4 A Investigação com os Professores do Centro de
Ciências

Durante o primeiro semestre de 2010 realizamos entrevistas semi-estruturadas com sete professores do Centro de Ciências, na seguinte composição: Departamento de Química Analítica e Físico-Química, Departamento de Biologia, Departamento de Computação, Departamento de Física e Departamento de Matemática. Seis professores do sexo masculino e uma do sexo feminino, na faixa etária de 21 a 36 anos. Todos os profissionais tinham somente a docência na Universidade Pública como atividade.

Os estudos acerca do papel ontológico do trabalho – espaço tanto de produção da realidade quanto de produção subjetiva, além de lugar privilegiado de socialização e desenvolvimento psicológico (Antunes, 1998; 1999; Clot, 2007; Dejours, 1987/1992) orientaram alguns questionamentos:

  1. Como você chegou ao cargo de professor da Universidade?
  2. Como é o seu relacionamento com os outros professores?
  3. Como é o seu relacionamento com os alunos?
  4. Você desempenha alguma outra atividade além da de professor substituto? Se sim, qual dessas atividades você considera a principal?
  5. Por favor, fale a respeito do seu trabalho na Universidade. O que você considera que o mantém aqui?
  6. Quais são os pontos positivos no seu trabalho? Quais os pontos negativos?<

As perguntas não eram realizadas de maneira compulsória, uma vez que, respondendo à primeira delas, os professores contemplavam os temas implícitos nas seguintes e que nosso interesse maior era, como orienta a análise de discurso, permitir uma fala extensa e livre por parte de nossos entrevistados. E foi o que colhemos como resultado. Após as transcrições, compilamos uma série vasta de discursos que versavam sobre a trajetória laboral dos professores, as atividades paralelas que exerciam, a percepção da condição de professor substituto comparada com a sensação de não ser efetivo, o motivo que os levou a tornarem-se professores substitutos, as perspectivas futuras em relação à profissão e a forma como vivenciam essa situação laboral.

A partir de então, nosso trabalho foi realizar uma sociohermenêutica a partir do discurso (Alonso, 1998), exercício de reconstrução dos sentidos pautado na compreensão do texto concreto em seu contexto social e na historicidade de suas colocações, levando em consideração os interesses do atores implicados no discurso. O conjunto das relações humanas implica em interações e conflitos que demarcam territórios de enunciação. As falas são produções reflexas de censuras, coerções e interesses sociais e orientam a tomada de atitudes por parte dos participantes de uma situação comunicativa. Assim, não nos coube reconhecer nas falas dos entrevistados estruturas semióticas imanentes ou realizar a análise de correlações entre palavras-sinais – objetivos das análises estrutural e de conteúdo, respectivamente –, mas compreender como o discurso orienta a práxis e discrimina os referentes sócio-grupais a partir dos quais os professores significam sua vivência.

Um dos grupos que referenciam os discursos dos professores substitutos é o dos trabalhadores precários, cujas características os campos de conhecimento que lidam com o trabalho ainda estão por elaborar com maior propriedade. A precarização crescente de um grande número de atividades institui a precariedade como norma no mundo do trabalho, impactando sobre este de maneira multidimensional. Isso era percebido desde a distribuição de renda e produção à inserção e instalação sociais – já que a sociedade salarial consolidou uma relação da esfera laboral com a sociedade global em que o trabalho, na sua forma emprego mais fortemente, implicava não somente uma retribuição financeira, mas, o acesso a suportes sociais que permitiam o controle dos projetos de vida (Nardi, 2006).

As respostas dos professores à primeira pergunta do roteiro elaborado e todas as explicações e justificativas para o exercício da função de substituto evidenciam duas constatações em torno da inexorabilidade do acontecimento: ingressam no cargo por não ter titulação suficiente para concorrer por vagas de efetivo, pois a grande maioria desses concursos exige o doutorado como titulação mínima, e por necessitarem da experiência curricular que representa a atividade.

Esta necessidade de aceitar o que se tem à mão é detectada por Bilbao (1999) entre os trabalhadores precários espanhóis. Compromissos como moradia e o sustento da família obrigam os sujeitos a aceitarem qualquer trabalho que se apresente, qualquer forma de rendimento que permita arcar com as responsabilidades firmadas. A duração determinada e a fugacidade dos contratos laborais lhes impõem a dificuldade/ impossibilidade de planejamento em longo prazo, derivando daí uma das características fundamentais da precariedade, a saber, a impossibilidade de lidar de forma estruturada com o futuro.

O autor afirma que para quem vive essa experiência o tempo só existe no presente. Para alguns trabalhadores, como os do setor de vendas, por exemplo, a situação toma matizes ainda mais agravantes, o contrato mercantil, contrato de trabalho por comissão, submete o poder de consumo dos trabalhadores às oscilações de mercado. Nesse sentido, muitos dos nossos entrevistados possuem outras fontes de remuneração – os professores do Centro de Humanidades exercem atividades variadas que não a docência na iniciativa privada e os do Centro de Ciências exercem a docência em outras instituições tanto privadas quanto públicas. Isso viabiliza de alguma forma, atender às suas necessidades de consumo e minimizar as chances de perder os rendimentos por completo.

Sujeitos às lógicas do consumo, os trabalhadores contemporâneos estão, muitas vezes, alheios dos espaços de reivindicação e organização coletiva, ou mesmo de reflexões que implicam a alteridade. Considerando a ética como uma prática reflexiva da liberdade que permite a comparação entre os vários regimes de verdade, não seria incorreto dizer que esses sujeitos estão debilitados em sua capacidade de perceber o conjunto das relações de poder que influenciam diretamente sua vivência de trabalho.

Um aspecto positivo constatado é o aumento de retribuição financeira que aconteceu no ínterim do exercício de pesquisa. Na primeira fase, quando das entrevistas com os professores do Centro de Humanidades, o salário era aproximadamente um terço do percebido hoje. “É complicado você ganhar pouco e trabalhar muito, muito, muito.” (Entrevistado Nº 2, entrevista pessoal, 1ª fase, 17 de março de 2008), “Antes era pior, você pagava para melhorar seu currículo” (Entrevistado Nº 6, entrevista pessoal, 2ª fase, 21 de maio de 2010).

A distinção entre professores substitutos e efetivos é patente e envolve as decisões do próprio departamento, visto que os mesmos têm direito a voz, mas não a voto nas reuniões – aspecto que implica tanto a restrição ao espaço de debate e deliberações sobre sua realidade de trabalho quanto a sobredeterminação das suas atividades. A diferenciação alcança também a problemática da extensão, pesquisa e monitoria, que assumem aspectos restritivos aos substitutos. Alguns entrevistados apontaram que essa restrição impede o desenvolvimento e a evolução do professor dentro da Universidade, mesmo que por curto período, e acabam por significar uma defasagem de sua atividade – por compreenderem a ação universitária alicerçada sobre a tríade ensino, pesquisa e extensão. É o que está explicito neste relato do professor:

Mas, você exercer, ser... estar professor substituto é algo que a própria universidade, ela deixa meio de lado. Só pra você ter idéia: aqui, nas reuniões de departamento, professor substituto não é contado como membro, portanto, não dá quorum, não dá voto, não tem direito a voto, não tem direito a nada, então já é um grande diferencial, né? Sem contar as próprias (...) você requerer alguma coisa ou da coordenação ou do departamento, dificilmente você consegue e então tem todo um processo que vai (Entrevistado Nº 1, entrevista pessoal, 2ª fase, 12 de abril).

A convivência entre as duas categorias de professores é marcada por relações de dependência e submissão. Para que possam realizar atividades fora do âmbito do ensino em “sala de aula”, como supervisão de estágio extracurricular, pesquisa e orientação de monografia, os substitutos precisam contar com a anuência de professores efetivos que se responsabilizem pela atividade diante do departamento.

O professor de educação ambiental, que acabou de sair, passou uma menina que ele ia orientar pra mim. Então, eu estou orientando não oficialmente, quem vai orientar oficialmente é a professora X que é efetiva. Mas, eu estou buscando me inserir em outros espaços e não ficar só na sala de aula (Entrevistado Nº 4, entrevista pessoal, 2ª fase, 21 de março de 2010).

A coexistência entre trabalhadores precários, com contratos pré-determinados e efetivos, com contratos indefinidos é reflexo da tendência de segmentação que ocorre dentro da classe-que-vive-do-trabalho evidenciada por Antunes (1998). De acordo com ele, é possível identificar um centro do processo produtivo formado pelos que tem estabilidade no trabalho e a grande periferia composta do subproletariado, marcadamente os que vivem a experiência da instabilidade e da subqualificação. Além disso, como a precarização é um fenômeno processual, há muitos contextos laborais em que os trabalhadores afastados vão sendo substituídos por trabalhadores com contratos flexíveis. Os que se aposentam levam consigo a norma de emprego estável e as formas flexíveis tomam paulatinamente o espaço. As considerações de Bilbao (1999) sobre os grupos focais com trabalhadores temporários apresentam reflexões interessantes sobre a percepção destes em relação aos trabalhadores fixos com que conviviam. São vistos como um segmento livre de problemas, que goza de estabilidade e graças a ela pode fazer frente ao trabalho, não precisam aceitar as arbitrariedades comumente impostas aos temporários. A linha de demarcação da diferença para os participantes espanhóis apontada pelo autor é a possibilidade de autonomia diante do trabalho, algo muito próximo da percepção dos substitutos quanto à dependência e a defasagem de sua atividade.

O desejo de uma vinculação laboral mais estável aparece também de forma muito clara no discurso dos entrevistados, revelando a expectativa por alguma segurança temporal: “Se hoje me chegassem e perguntassem: Olhe, a gente vai prolongar seu contrato de substituto por dez anos, você deixaria outras atividades suas? Eu deixaria tranquilamente. Sem problema nenhum” (Entrevistado Nº 3, entrevista pessoal, 2ª fase, 09 de abril de 2010).

Bilbao chama atenção para esse sentimento de incerteza em relação aos planejamentos futuros: “la inestabilidad en el trabajo es simétrica a la incertidumbre en la vida cotidiana (...) la falta de estabilidad en el empleo impide cualquer proyecto a largo plazo” (1999, p. 63).

A realidade do tempo de contrato dos professores substitutos apresenta-se como evidência do processo de vulnerabilização e debilitação dos seus vínculos que impactam significativamente sobre sua capacidade de planejamento de vida. Ser professor substituto é sempre um “estar entre”, antes que um ser.

Fica patente a importância do discurso na orientação da práxis desses sujeitos. Um exemplo dessa evidência está na distinção da percepção do processo de precarização entre os entrevistados no primeiro e no segundo momento. Entre os professores do Centro de Humanidades a precariedade da atividade está associada à baixa remuneração, que, no entanto, não os afasta da docência, uma vez que há o interesse pela experiência curricular que a atividade proporciona. O aumento da remuneração, percebido entre os dois períodos da pesquisa, faz com que os vencimentos não figurem entre os caracteres de precarização apontados pelos substitutos do Centro de Ciências, pelo contrário, esta é apontada como um mantenedor da atividade. Neste contexto, o discurso se volta para a organização do trabalho docente, as restrições impostas pelo contrato e a relação com os professores efetivos.

5 Algumas Reflexões Parciais

Ao longo dos últimos cinco anos a figura do professor substituto atravessou diferentes territórios, ora mais, ora menos precários. O lugar de escuta dos discursos dos sujeitos implicados nessa seara, entretanto, sempre foi nebuloso. Muitas vezes sem darmo-nos conta, naturalizamos a precariedade da sua situação e a colocamos como uma condição prévia da vida acadêmica. Isso foi tão difundido que os próprios “substitutos” também a introjetaram.

Reconhecendo, como afirma Patrick Cingolani (2005) que a temporalidade é um recurso privilegiado de compreensão do processo de precarização, vemos que a instabilidade de um futuro pautado na condição do substituto, a determinação do fim do seu contrato e a ausência de uma série de prerrogativas delegadas aos professores efetivos esvaziam ainda mais o sentido da sua atividade e a tornam cada vez mais vulnerável. Dentro da política de Recursos Humanos das Instituições Universitárias Públicas a definição do tempo de contrato que antes era de dois anos, segue cada vez mais o ritmo da efemeridade da sua condição, uma vez que seu contrato não deva superar, segundo a orientação do Setor de Recursos Humanos das Universidades Federais, seis meses.

A excepcionalidade de seu vínculo se insere de forma quase icônica no contexto daquilo que vimos estudando, a saber, a precarização é um recurso de controle perverso, mas profundamente eficaz no movimento do mercado de trabalho sob a ótica do capital.

Para a compreensão da vivência dessa constante disponibilidade para o mercado e de não ter autonomia frente ao trabalho, remetemos às contribuições de Enrique Alonso e Carlos Jesús Fernández Rodríguez (2009) em sua dissertação sobre a precariedade laboral como ferramenta disciplinar do mundo do trabalho. Partindo de um referencial pós-estruturalista, com ênfase nos estudos de Foucault, Deleuze, Guattari e Rolnik, entendem o trabalho precário e a sua disseminação na sociedade de controle suave como um novo instrumento da biopolítica (conceito foucaultiano que remete às práticas de governabilidade sobre um conjunto de seres vivos definidos como população, através da qual a vida e os corpos são encerrados como objetos de poder). Não vivemos a sociedade disciplinar dissecada por Foucault, em que o poder incidia sobre os indivíduos como controle moralizante rígido através da vigilância e da punição, mas uma organização social pautada no autocontrole. Se nas sociedades disciplinares os sujeitos tinham sempre que recomeçar, fosse no circuito da fábrica ou da escola, em nossas sociedades não se chega a concluir nada, é sempre possível exigir mais esforço, mais formação, mais horas, mais compromisso, seguindo uma espiral sem fim perceptível (Alonso & Fernández, 2009).

A precariedade laboral, apresentada como um efeito indesejado da transição para a sociedade de serviços constitui na verdade fator estrutural dessa nova conformação sócio-econômica e política, sem a qual seu funcionamento ótimo está ameaçado.

La precariedad laboral no se plantea así como un problema meramente contractual, sino de carácter biopolítico. No se trata de un subproducto, un efecto no deseado, una excrecencia, una irregularidad: es un elemento central en el capitalismo neoliberal, el núcleo sobre el que se asienta la organización del trabajo y la adhesión ideológica al sistema (Alonso & Fernández, 2009, p. 250).

O sucesso do sistema de acumulação flexível depende da desregulamentação do direito laboral e da constante disponibilidade daqueles que precisam vender sua força de trabalho, de outra forma não se alcança a almejada adaptação ao mercado. Para tanto, o sentido social do trabalho estruturado no período do pleno emprego é desconstruído, ocorre o esfacelamento das organizações sindicais e dos laços sociais implicados acirrando a competitividade entre os trabalhadores. Além disso, a precarização, experimentada como mobilização e insegurança generalizada, faz da mera sobrevivência o incentivo central para o trabalho (Alonso, 2001). Incentivo considerado como perverso, individualizador e atomizador do mundo do trabalho (Alonso & Fernández, 2009; Antunes, 1998; Bilbao, 1999). Acrescido à exaltação do consumo e do hedonismo, o imperativo da sobrevivência ocupará a função da vigilância e do exame em nossa sociedade.

Nesse contexto, o mercado e a competência são entes absolutos e há a institucionalização do risco e da insegurança. Transformam-se o papel do Estado e o caráter da cidadania. De benfeitor e produtor, o primeiro passa a condição de administrador, ajusta os indivíduos às disciplinas competitivas de todos os mercados possíveis. A cidadania passa da condição de direito pautado na natureza pública do bem social a dever de normalidade econômica. Ser cidadão consistirá em poder arcar com seus débitos. Neste processo disciplinar de autocontrole em que a subjetividade é fundamental para a adequação e o ajustamento ao mundo do trabalho é compreensível o tom de determinismo presente entre os professores, já que a sobrevivência acena como a principal motivação e os meios de reivindicação e solidariedade entre os trabalhadores estão ausentes.

Com essa configuração, o mundo laboral apresenta efeitos danosos sobre a construção ética dos trabalhadores. Nardi (2006) demonstra como a propriedade social (Castel, 1995/1997) criada no período do Bem-Estar foi importante para a constituição do trabalho como fator de coesão e solidariedade social. O trabalho era o dispositivo de subjetivação por excelência e, como citado anteriormente, meio de acesso ao suportes sociais tais como seguridade e saúde. É justamente nesse período que ocorrem os grandes movimentos de emancipação e liberação de mulheres, negros, homossexuais, estudantes e de modos de vida alternativos. É o que o leva a afirmar:

Acreditamos que o grau de liberdade possível para a construção de uma ética que se formula, de fato, a partir de uma prática reflexiva possibilitadora da alteridade, depende dos suportes materiais que permitem ao indivíduo afirmar-se para além do mundo da necessidade, ou seja, para além da luta cotidiana pela sobrevivência (Nardi, 2006, p. 37).

A condição dos professores substitutos, relatada em seus próprios discursos denota algumas das características mais marcantes da noção de precarização que se estabelece processualmente na nossa sociedade. A temporalidade de seus contratos e a submissão da renovação dos mesmos a uma permanência das condições que levaram a sua contratação os submete a incertezas sobre a sua própria situação laboral. A vulnerabilidade da sua inserção e a limitação das atividades que podem ser desenvolvidas os coloca diante de restrição pautada pelo modelo de contrato que estão submetidos. Por fim a impossibilidade de fazer previsões acerca do próprio futuro, pela instantaneidade da sua condição, põe tais trabalhadores diante de fluxo de produção de si que raramente foi experimentado por sujeitos com o mesmo grau de qualificação no período de prevalência dos modelos salariais.

Mesmo considerando que no decorrer da pesquisa foi possível identificar uma mudança nas remunerações desses trabalhadores, a condição de vulnerabilidade e incerteza, marcas decisivas da precarização, se mantém. Não seria ousado, inclusive, imaginar que o aumento das remunerações dos substitutos tem se constituído como uma compensação em troca das práticas conflitivas do reconhecimento da sua própria atividade.

Romper o processo de naturalização da precarização parece ser o grande desafio para compreender o contexto laboral complexo em que vivemos e quem sabe reconhecermos a alteridade diante de lógicas econômicas cada vez mais homogeneizadoras. O estudo com os professores substitutos reafirma essa condição.

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