A pesquisa aqui descrita dá continuidade a um conjunto de iniciativas anteriores que têm buscado acompanhar a produção de conhecimento no Brasil sobre paternidade, no campo de debates sobre gênero, saúde, sexualidade e direitos reprodutivos (Lyra, 1997; Lyra e Medrado, 2000).1
Focalizando textos publicados sobre paternidade entre a segunda metade da década de 1980 e a primeira metade da década de 1990, Jorge Lyra (1997) identificou 39 trabalhos científicos entre livros, capítulos de livros, teses, dissertações, artigos de revistas, comunicações em congressos e relatórios/monografias sobre paternidade.
Benedito Medrado, Jorge Lyra, Ana Roberta Oliveira, Mariana Azevedo, Giselle Maria Nanes Correia dos Santos e Dara Andrade Felipe, (2010), em texto recente, produziram outro levantamento a partir do termo paternidade no banco de teses/dissertações da CAPES, no SciELO e Google Acadêmico obtendo, respectivamente: 1.089 trabalhos, 53 artigos científicos e 11.400 referências entre artigos científicos, livros, resumos, textos produzidos por organizações profissionais, bibliotecas de pré-publicações etc. Um número expressivamente maior que aquele encontrado no levantamento anterior.
A diferença entre os dois levantamentos é explicada pelos autores e autoras a partir de alguns aspectos: a) o advento da internet possibilitou um aumento exponencial no número de veículos de comunicação científica e de fontes de levantamento bibliográfico; b) a facilidade de acesso às publicações indica também maior potencial de produções e o próprio compartilhamento dos conhecimentos; c) e a relevância do tema no contexto acadêmico dada a continuidade e o aumento do número de publicações.
O exponencial crescimento de publicações sobre paternidade e consequente exposição mais ampla do tema em vários veículos de comunicação científica se expressa também na diversidade de saberes que se dedicam a investigá-la, analisá-la, classificá-la, conhecê-la; saberes que incluem Direito, Enfermagem, Psiquiatria, Antropologia, Educação Física, Psicologia, Ciências Sociais, dentre outros.
Para esta pesquisa, focalizamos os resumos de pesquisas indexadas, entre 1987 e 2009, no Banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES2), a partir do termo: paternidade. A escolha do banco da Capes foi orientada pelo fato de ser a base de dados mais ampla de produções científicas brasileiras disponível on-line, que não necessariamente convertem-se em artigos, mas que, de certo modo, orientam a produção desses. Em outras palavras, parece-nos a melhor fonte da produção científica nacional, dada sua densidade e amplitude, que não sucumbe às intempéries da publicação em periódicos. A escolha do período de 1987 a 2009 deu-se em função de englobar todo o período de indexação da referida base, tendo sido a busca realizada em meados de 2010.
Este levantamento compreendeu duas etapas: Na primeira etapa, de caráter geral, objetivamos apenas encontrar trabalhos científicos a partir do referido termo. É extraordinário o número de trabalhos obtidos: 887 dissertações e 303 teses, cujo total corresponde a 1.190 trabalhos produzidos em 23 anos de pesquisa no Brasil. Porém nem todos os trabalhos encontrados investigaram a paternidade humana e ainda existem aqueles que foram obtidos no levantamento, mas em nada se relacionam ao tema3.
Na segunda etapa, de caráter específico, os trabalhos encontrados foram submetidos a uma seleção criteriosa cujos parâmetros seguiram os seguintes pontos: a) que no título da publicação houvesse referência direta à palavra paternidade ou termos correlatos (pai; função-paterna; paternagem etc); b) que fossem publicações voltadas exclusivamente à paternidade humana; c) que os resumos contivessem informações mínimas para compreensão da publicação. Considerando tais critérios, o número de trabalhos selecionados foi reduzido para 234 textos, entre teses e dissertações, que são descritas brevemente a seguir, a partir de uma organização por décadas de referência e por campos de saber, conforme sintetizamos na tabela 1.
| CAMPOS DE SABER | PERÍODO DE PUBLICAÇÃO | TOTAL | ||
|---|---|---|---|---|
| 1987 a 1990 | 1991 a 2000 | 2001 a 2009 | ||
| Psicologia | 2 | 08 | 80 | 90 |
| Direito | 1 | 20 | 37 | 58 |
| Enfermagem | - | 1 | 18 | 19 |
| Psicanálise | - | 5 | 07 | 12 |
| Educação | - | 3 | 11 | 14 |
| Antropologia | - | 2 | 5 | 7 |
| Serviço Social | - | 1 | 2 | 3 |
| Sociologia | - | 1 | 2 | 3 |
| Psiquiatria | - | - | 3 | 3 |
| Ciências Sociais | - | - | 3 | 3 |
| Saúde Pública ou Saúde Coletiva | - | 1 | 2 | 3 |
| Comunicação | - | - | 2 | 2 |
| Saúde da Mulher e da Criança | - | - | 2 | 2 |
| Letras | - | - | 2 | 2 |
| Nutrição | - | - | 2 | 2 |
| Interdisciplinar ou Multidisciplinar | - | - | 3 | 3 |
| Fonoaudiologia | - | 1 | - | 1 |
| Ciências Médicas | - | 1 | - | 1 |
| Educação Física | - | - | 1 | 1 |
| Neurociências | - | - | 1 | 1 |
| Filosofia | - | - | 1 | 1 |
| Políticas Públicas | - | - | 1 | 1 |
| Ciências Matemáticas | - | - | 1 | 1 |
| Ciências da Saúde | - | - | 1 | 1 |
| Total | 03 | 44 | 187 | 234 |
Tabela 1
Distribuição das publicações sobre paternidade indexadas no portal de Capes (teses e dissertações) por campos de saber e período de publicação
Conforme se observa na tabela acima, os principais campos de saber que se dedicaram à construção da paternidade como objeto de estudo científico, nas ultimas décadas, tomando por base as dissertações e teses, foram: Psicologia, Direito, Enfermagem, Psicanálise e Educação. Chama-nos a atenção a grande concentração de trabalhos (mais de 1/3) produzidos em Programas de Pós-graduação em Psicologia, com expressiva produção da década de 2001-2009. A seguir uma breve descrição sobre as preocupações que orientaram estes trabalhos.
Os campos de saber que se de dedicam ao conhecimento sobre a paternidade, no final da década de 1980, conforme levantamento no banco de teses/dissertações da CAPES são apenas o Direito e a Psicologia.
Os interesses na área do Direito recaem sobre o reconhecimento da paternidade fora do casamento. No Brasil, dois marcos históricos importantes para subsidiar tais análises: a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. Nesses dois documentos se assegurou que filhos havidos ou não fora do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações relativas à filiação e se reconheceu o estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescindível, podendo ser exercido pela força da lei contra pais e seus herdeiros.
Na Psicologia, inserida neste contexto histórico, a investigação é sobre a vivência subjetiva da ausência paterna e a construção subjetiva do tornar-se pai, sendo problematizada a partir das implicações de sua ausência e como construção na história de vida e no desenvolvimento do sujeito.
Uma década depois, a paternidade desponta, pouco a pouco, como temática investigada por uma pluralidade e diversidade de campos de saber científico. Em 1991, no Direito se analisa a tensão entre o código civil vigente e a jurisprudência acerca da paternidade presumida, enquanto na Psicologia se investigam as representações sociais da paternidade e o papel do pai na família. Foram identificadas em 1993 somente publicações no Campo da Psicologia nas quais se analisou o lugar do pai e a tensão entre função paterna e complexo edipiano; e a paternidade como experiência negada por meio do abortamento provocado e do silêncio cultural dos homens diante desse processo.
Em 1994, a produção em Psicologia localizada trata das tensões entre a identidade masculina e uma paternidade que envolveria atribuições antes ligadas à condição feminina como afetividade e cuidado, e a busca de uma nova definição de ser homem, e sobre a vivência da paternidade na clínica. No mesmo ano, a publicação em Saúde Pública se questiona sobre os significados de ser pai, a postura paterna frente aos filhos e seu envolvimento no cuidado dos mesmos.
Em 1995, no campo do Direito, possivelmente por consequência direta do impacto da Carta Magna e do ECA na vida familiar brasileira, o interesse recaiu sobre a nova concepção de família, o estabelecimento da paternidade e a filiação afetiva. Na Psicologia, por sua vez, buscou-se problematizar a construção de uma paternidade (mais consciente e participativa) pela desconstrução da “masculinidade hegemônica”4 (branca, heterossexual, dominante); e a vivência e experiência do pai enfocando a contribuição das mudanças culturais (do ser masculino e feminino) para a configuração de uma nova estrutura psíquica do ser humano, assim como familiar e organização social, a partir de um enfoque psicanalítico.
Em 1996, mais saberes passam a produzir verdades sobre a paternidade. No campo da Antropologia, questiona-se a construção da “nova” paternidade a partir da ruptura do modelo hegemônico de masculinidade. Na Educação, o foco é conhecer e problematizar o discurso paterno buscando as singularidades e diversidades. No Direito, o impacto das novas tecnologias de reprodução é problematizado. A produção em Psicologia localizada focaliza o exercício da paternidade na separação conjugal.
Em 1997, as publicações no Campo da Psicologia recaem sobre a paternidade na adolescência propondo análises e intervenções. Nesse ano, é identificado o primeiro trabalho científico oriundo do Campo da Enfermagem, cujo interesse recai sobre o vivido do pai que aguarda pelo parto, em vias de se tornar pai.
O número de obras indexadas aumenta em 1998. Em 1997 apenas duas publicações foram obtidas, por sua vez, em 1998, o número sobe para cinco. Sem dúvidas, um número diminuto se o compararmos aos 13 trabalhos obtidos em 2008, entretanto, em apenas um ano, o número mais que dobrou. Na Psicologia os focos são as tensões/relações entre paternidade, esquizofrenia e gênero, o arquétipo do pai na cultura e suas influências na relação pai-filho, as representações sociais de paternidade em grupos de homens-pais de gerações distintas, o declínio do pai na modernidade e uma análise das permanências e transformações da paternidade em mídia impressa.
No Campo da Psicanálise, cujas obras foram indexadas desatreladas do termo genérico de psicologia clínica, investiga-se a relação entre paternidade e filiação, assim como o interdito da função paterna na relação entre homem-pai e filho-menino. Na Educação se volta para a tensão entre tradição e reinvenção da paternidade e masculinidade. Pela primeira vez neste levantamento, na Saúde Publica se analisa a paternidade como atrelada à identidade masculina adulta enquanto no Serviço Social, focaliza-se as representações sociais que inscrevem o homem-pai como provedor material.
Em 1999, as obras nos Campos das Ciências Médicas e do Direito se ocupam do tema, respectivamente, investigando os novos sentidos sobre paternidade e analisando tensões, especialmente, no Direito de Família, intensificadas com a popularização do exame de DNA, na segunda metade de 1990, como instrumento jurídico, médico e biológico para determinação da verdadeira paternidade biológica. Neste ano, há um equilíbrio relativo nos números obras e uma variedade de saberes que as indexaram. No campo da Psicanálise os interesses recaem sobre o contexto clínico no qual demandas que envolvem a questão paterna são analisadas (como função simbologia, real e prescindível), assim como o chamado declínio da função paterna na modernidade. Na Educação, Fonoaudióloga, Antropologia e Sociologia a paternidade foi analisada, respectivamente, a partir das implicações da ausência/ presença do pai no processo de socialização; de sua participação no cuidado com a prole e no contexto das Instituições de Saúde que promovem ou excluem a presença paterna; de sua re/construção no espaço das relações familiares, especialmente, entre filhos; e como produto histórico-cultural cujas atribuições ligadas a ordens de sexo/gêneros tem se modificado a partir negociações entre casais (homem-mulher). No Campo da Psicologia, a paternidade surge através das falas dos “pais jovens cuidadores” que “entram em cena” na ausência da mãe ou na perspectiva de perda jurídica dos filhos e do paralelo entre paternidade e pobreza na construção da identidade de homens. Por sua vez, no Campo do Direito, os impactos do reconhecimento do/as filhos/as em qualquer que seja a origem da filiação ainda suscitam questionamento, ou melhor, tensões entre os elos da paternidade para o Direito, com destaque, no de Família.
Em 2001, na aérea da Psicologia, as pesquisas identificadas analisam a função paterna na contemporaneidade e os discursos de pais; os conflitos que envolvem a paternidade em um grupo de homens na tensão entre “o” pai e pai possível; a paternidade adolescente na esfera da experiência de jovens-pais no cuidado do bebê e a participação do pai no parto da criança e os desafios institucionais que a impedem, Ou seja, a participação masculina no cuidado não decorre apenas da vontade do sujeito, mas das condições sociais criadas para propiciá-la.
Na Enfermagem, a paternidade é analisada a partir das vivências cotidianas do homem-pai, assim como na Antropologia, mas esta com foco na construção da relação pai-filho. Nas Ciências Sociais, as reflexões são feitas sobre reprodução e gênero para se chegar às concepções de pai e filho. No Direito se intensifica a investigação sobre o impacto do teste de DNA; as implicações do reconhecimento de direitos e igualdade entre os filhos em qualquer que seja o estado de filiação; e a tensão/crise do “modelo tradicional” de paternidade e o rompimento da autoridade paterna e os dilemas causados pela intervenção médico-legal no corpo da mulher originando uma gestação “sem pai”.
Em 2002 e 2003, na Psicologia pela primeira vez aparece o termo “paternidade participativa”, descrita como afetiva e cuidadora da prole, não restrita ao provimento material nem vivida na companhia de uma mulher, esposa ou alguém. Outros estudos investigam a importância do filho biológico para o homem, presença do pai na família e afeto entre pais e filhos após separação conjugal, a paternidade adolescente e a vivência cotidiana e experiência da paternidade em situações diversas.
Neste biênio, na Psicanálise, foram analisados vínculos com a função paterna e as mudanças contemporâneas, a própria definição de pai na teoria e sua relação com o possível tratamento da psicose e o lugar do pai na subjetividade. Por sua vez, na Enfermagem e Saúde Pública, respectivamente, investigaram a compreensão masculina da gravidez a partir da experiência “barriga-grávida” e os sentimentos do adolescente pai, e as normas de sexo/gênero por meio de relatos de homens em situação de desemprego que passaram a exercer a paternidade no contexto domiciliar. Nas produções da Educação, Saúde Coletiva, Neurociências, Saúde Coletiva, Saúde da Mulher e Criança, diferentes versões do mesmo tema: o impacto da ausência/presença paterna no desenvolvimento infantil e na família, o problema recorrente nos primeiros estudos sobre paternidade foi atualizado.
Na Antropologia, os trabalhos investigaram a paternidade participativa, a adoção e paternidade homossexuais e o vínculo paterno em situações diversas. No Direito se acentuam trabalhos sobre a investigação paterna a partir do exame de DNA e as questões jurídicas associadas como a responsabilização do homem tornado pai e do direito do filho a filiação. Assim como foram analisadas as tensões entre aspectos jurídicos e inseminação artificial a questão dos laços paterno-filiais produzidos pelo processo biotecnológico de inseminação e o reconhecimento do direito à paternidade e maternidade homossexuais por meio da adoção e inseminação.
De 2004 a 2006, na Educação a paternidade foi analisada a partir das concepções de homens-pais sobre seus bebês com deficiência, o declínio da função paterna no contexto escolar, o impacto do turno de trabalho paterno no desempenho acadêmico e do autoconceito da criança, a relação função paterna e o processo de simbolização e as identidades paternidade na literatura infanto-juvenil. Neste período, os trabalhos em Psicologia têm um aumento exponencial (ver tabela 1), sendo cada vez mais abrangentes e pontuais em suas nomeações: indo das concepções de paternidade de meninos em situação de abrigamento, o desejo do homem se tornar pai, as experiências paternas, os sentimentos dos pais de filhos com síndrome de down, a ausência/presença do pai, os dilemas da função paterna e a adolescência, a paternidade na mídia contemporânea, o lugar do homem pai na clínica, a participação paterna na gravidez e no cuidado com o bebê até o cuidado parental na percepção dos filhos. Ressalto que em algumas publicações “o cuidado parental” já é abordado como prática masculina, sem necessariamente invocar rupturas que as explicassem. Os homens são conhecidos a partir de sua diversidade, singularidade e concretude e não de formas genéricas. Além disso, a paternidade aparece sendo analisada não mais isoladamente, mas, por vezes, acompanhada da maternidade ou ainda a relação entre ambas.
No Direito, por sua vez, a produção é radicalmente pontual, já que se voltada predominantemente à investigação da paternidade e a elementos associados: a recusa de filhos e homens ao exame de DNA, o princípio da dignidade humana e a investigação paterna, o direito da criança e adolescente a uma paternidade “verdadeira”, os dilemas da filiação sócio-afetiva e o direito ao conhecimento da identidade genética, o paradoxo da atribuição de paternidade pelo exame de DNA e o princípio da afetividade paterna. A Enfermagem também se destaca em número de produções que investigam da paternidade adolescente a experiências de pais-adolescentes com filhos hospitalizados e nascidos prematuramente, de homens-pais que acompanharam o parto dos filhos, os significados da paternidade para homens. Dentre os trabalhos, ressaltos os produzidos em 2006 porque neles a paternidade aparece como cuidado e atitude que se promove e é aprendida, sendo promovida pela instituição e seus profissionais a fim de respeitar o direito do cidadão de exercer a paternidade. No período, os outros saberes que analisam a paternidade são Psicanálise, Antropologia, Sociologia, Ciências Sociais, Serviço Social, Filosofia, Psiquiatria e Letras.
De 2007 a 2009, as produções pesquisadas advêm de diversos campos de saber: Psicologia, Ciências Sociais, da Educação, Comunicação, Direito, Enfermagem, Sociologia, Psiquiatria, Letras, Nutrição, Políticas Públicas, Educação Física. A produção cientifica se acentua em quantidade, abrangência e especificidade. Os focos dos estudos sobre paternidade foram: a diversidade de exercícios paternos (em creche-escola; em comunidades ribeirinhas; em relação a filhos hospitalizados; com síndrome de down; no cuidado do bebê; na adoção e no envolvimento com filhos após fim do casamento; de filhos homossexuais; etc.). O homem-pai (seus sentimentos; seus sentidos acerca dos filhos; como cuidador; acompanhante no pré-natal e parto; autor de violência; vivendo a paternidade após separação conjugal; inserido em programa de intervenção; enquanto adolescente que deseja a paternidade; ausente e os impactos dela nos filhos e no próprio pai; e sua preocupação com o corpo da mulher-esposa grávida; etc.).
A paternidade (a partir das transformações da modernidade da masculinidade; nas gerações familiares e na relação entre orfandade e educação; em desenho animado; no campo da reprodução assistida; monoparental; homossexual; etc.). A paternidade nos contextos jurídicos (por investigação paterna; na tensão entre relações paterno-filial biológica e socioafetiva; por abandono afetivo; por reconhecimento de paternidade por meio do exame do DNA e dos limites científicos do exame em casos de investigação de paternidade em homens gêmeos univitelinos; homoafetiva; o dano moral por não reconhecimento da paternidade; o direito à paternidade genética; a questão da licença paternidade no Brasil e a fabricação da paternidade e dos modos de exercê-la pelo discurso jurídico e muitos outros.
Esta descrição do campo de produção científica brasileira sobre paternidade, durante as últimas décadas, evidencia um amplo e progressivo interesse de diferentes campos de saber em relação ao tema, um fenômeno que, segundo Margareth Arilha (2005), tem sua origem especialmente na reconfiguração familiar proposta pelas lutas sociais ancoradas no feminismo e nos movimentos em favor dos direitos sexuais.
Assim, de objeto de interesse público e do campo dos direitos humanos, a paternidade passa também a ser pensada, dissecada, estudada, enfim, produzida a partir do conhecimento científico. Essa concepção de conhecimento como produção e não como “espelho da natureza” se apóia em diferentes autores, Friedrich Nietzsche (1887/2001), por exemplo, afirma que o conhecimento não é algo inscrito na natureza humana e o conhecer nada tem a ver com uma nobre arte que inspira harmonia, unidade, beatitude e adequação. Ao contrário, conhecimento é o resultado de jogos de força que se efetivam na apoderação sempre parcial das coisas do mundo pelo conhecer, pois não há afinidades entre o mundo e conhecer, “o caráter do mundo [...] é caos por toda eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos” (Nietzsche, 1887/2001, p. 135).
Michel Foucault (1973/1996) não apenas se apropria do argumento nietzscheano, mas o redefine ao analisar o conhecimento como estratégia de poder que produz efeitos, “o conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se encontra situado. É essa relação estratégica que vai definir o efeito do conhecimento” (Foucault, 1973/1996, p. 25.). O conhecimento não, assim, é o destino nem a teleologia humana nem elemento a-histórico universal. Ele é o resultado histórico e situado de condições que não são da ordem do conhecer, mas da ordem de condições políticas e econômicas de existência que são o solo ou matriz para usar uma expressão de Ian Hacking (2001), no qual são produzidos regimes de verdade, sujeitos e domínios de saber.
O conhecimento, portanto, propõe e/ou impõe certos olhares e funções, prescreve e produz o que afirma apenas conhecer e nomear. É nesta cena de lutas que vem suscitar seu funcionamento produtor: esquematiza, ignora diferenças, assimila coisas entre si sem nenhum fundamento de verdade. Não porque seja falso ou mentiroso, mas porque o que se conhece é desprovido de essência ou natureza. De fato, as ontologias são fabricações manufaturadas e sustentadas por relações de poder-saber.
Foucault (1988/2008) argumenta ao refletir acerca das relações entre poder e saber que se dado objeto (a paternidade, por exemplo) constitui-se como domínio a conhecer, isso se deu em função de relações de poder que o instituíram como objeto possível e inteligível de investigação. Assim, a produção de saberes se relaciona diretamente às relações de poder. No entanto, poder não é sinônimo de saber ou vice-versa. Cada um tem um lugar específico e se articula a partir de suas diferenças, um servindo ao outro. Ressalta-se ainda que entre técnicas de saber e estratégias de poder não há exterioridade, o que há são focos locais de poder-saber que veiculam formas de sujeição e esquemas de conhecimentos num movimento incessante que se tece a partir de pontos difusos e sempre múltiplos.
Nesse sentido, não há alguém que possua o poder nem quem é privado dele ou quem teria o direito de saber ou permaneceria na ignorância pela força. As relações poder-saber produzem os sujeitos que vêm a conhecer a partir de modificações internas ao próprio jogo.
Entretanto, para que tais jogos funcionem, eles precisam estar inseridos numa estratégia global. Ao mesmo tempo, nenhuma estratégia global poderia proporcionar efeitos, se não estiver amparada em relações locais que lhe sirvam de ponto de fixação. Porém, a relação entre estratégias locais e globais não é causal nem representativa do tipo “micro reflete o marco” ou vice-versa. O dito sobre a paternidade não é uma simples projeção de estratégias locais e globais. Em toda discursividade sobre o tema se articulam poderes e saberes. Não há discurso excluído ou dominante, e sim uma multiplicidade segmentada e descontínua de discursos que podem entrar em estratégias diversas. O discurso é instrumento e efeito de poder, reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita, permite barrá-lo, ponto de resistência.
Nesse sentido, a partir de tais considerações sobre as relações poder-saber, ao analisar a história da sexualidade, Foucault (1988/2008) recusou a noção do poder como opressor do sexo, desta suposta força selvagem e natural que a modernidade capitalista precisou domesticar. O autor afirma que desde meados do século XVI, na Europa, houve uma proliferação de discursos sobre o sexo. As pessoas eram incitadas a confessá-lo, manifestá-lo, descobrirem suas “verdades individuais” a partir da sexualidade. Mas tal incitação não se dava de maneira idílica, pois era o poder regulatório que as convida a falarem através de certas instituições e dados saberes.
A sexualidade e o sexo ao invés de oprimidos foram paulatinamente produzidos a partir do que o autor denominou de “dispositivo” de sexualidade. Ou seja, um conjunto heterogêneo, múltiplo e difuso que engloba discursos científicos; intervenções institucionais; organizações arquitetônicas; proposições filosóficas, morais, religiosas, midiáticos; leis; medidas administrativas; etc. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Foucault, 1979/2008). A partir desta rede, uma sexualidade “normal” (heterossexual, familiar) e outras “desviantes” (masturbatória, homossexual, pervertida) foram sendo estabelecidas normalizando e normatizando os corpos, desejos e práticas e se constituindo como peças fundamentais na estratégia governo das populações.
Sobre o “dispositivo” é preciso compreendê-lo como um tipo de formação que tem como função principal responder a uma urgência em determinado momento histórico. Isto é, sua função estratégica dominante é gerar uma área de inteligibilidade que legitime e justifique determinadas práticas de governo dos corpos. O autor define o dispositivo ainda por dois movimentos: 1) por um lado, cada efeito, desejado ou não, entra em relação de ressonância ou contradição com outros, e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente. Ou seja, as relações entre poder-saber que compõe o jogo de forças estão sempre movimentando novos arranjos; 2) por outro lado, certos efeitos produzidos não estão previstos nem têm algo haver com a astúcia estratégica de alguém trans-histórico que os houvesse querido ou planejado. Por vezes, tais efeitos se constituem como resistências, ao mesmo tempo, que são elementos de novas estratégias reinseridos no jogo (Foucault, 1979/2008).
Nesse sentido, ao fim da revisão da literatura que compreendeu 23 anos de publicações indexadas na CAPES, fica evidente que o tema paternidade se tornou relevante para o contexto científico brasileiro e alimentou muitas publicações em diversas áreas de saber. Precisamos compreender quais arranjos entre poder-saber, a paternidade (ou certas paternidades) foi instituída como objeto possível e relevante. Ressaltamos que nossas análises empreendidas foram fabricadas considerando o exercício analítico proposto por Juliana Perucchi (2008), na qual a partir do referencial foucaultiano e dos estudos feministas de gênero e da análise dos “acórdãos5”, argumenta que o discurso jurídico não reproduz ou representa a paternidade, mas, produz regimes de verdade obre ela e atuam produzindo pais.
Compreendemos os saberes científicos, ou em outros termos, as ciências como dispositivo, uma vez que atuam suturando peça por peça a partir de elementos estranhos entre si, um regime de verdade sobre a paternidade que engendra um campo de inteligibilidade que responde e justifica práticas de governo dos corpos e da possibilidade das pessoas de negociarem criativa e subversivamente suas próprias relações de parentesco, filiação, paternidade ou meramente suas relações afetivas.
Regime de verdade que se relacionam com práticas institucionalizadas de poder, intervenções pedagógicas, organizações espaciais, medidas administrativas, tecnologias médico-jurídicas, técnicas reprodutivas, produções midiáticas, leis e etc. que fabricam paternidades, produzem pais, estilos de “paternagem”, experiências subjetivas, íntimas, sentimentos, sensações e mesmo o quando e como o homem se torna pai. As ciências delimitam o dito e não dito em torno, sobre e dentro da paternidade, assim, criam e autorizam possibilidades paternas e impossibilidades paternas.
Lyra (1997) argumenta que as mulheres foram historicamente posicionadas (se posicionaram) como as responsáveis naturais pela reprodução e criação de filhos enquanto o homem foi excluído da experiência da criação da prole. Os homens, por sua vez, foram posicionados como produtores do provento material e moral da família. Muitos mecanismos de poder foram/são usados (religião, escola, Estado, saberes científicos, etc.) para normalizar e organizar a vida social em função da desigualdade de gênero gerando fixação e relação causal entre mulher-maternidade-reprodução e homem-paternidade-produção.
Desta maneira, a mulher foi envolvida na maternidade como se essa fosse seu destino biológico cuja experiência é descrita como “realizadora” e mesmo gloriosa. Seu corpo estaria preparado para enfrentar as dores do parto e seu sentido auditivo e olfativo seria, respectivamente, receptivo ao choro do bebê e insensível para as fezes. O homem, por sua vez, após o coito fecundante restaria aguardar a paternidade, encarar uma lacuna temporal em relação à criança, atuando apenas como provedor (Parceval, 1986).
No entanto, Lyra (1997) argumenta que a literatura científica e de apoio a intervenção, a partir de 1980, veio questionar e tratar da participação dos homens na esfera privada, seja pela falta de informações sobre homens e paternidade, seja pelo impacto de políticas publicas no comportamento de homens individualmente. O autor afirma que começa a se levantar a hipótese de que a maior participação dos homens na vida doméstica dinamizaria as relações de gênero alterando a fixação mulher/privado e homem/público e de que estaria ocorrendo outra mudança de visão: da não participação masculina na vida doméstica como decorrente apenas do machismo de cada homem, para outra, que procura compreender quais as condições criadas pela sociedade para facilitar ou dificultar o envolvimento dos homens na vida familiar (Lyra, 1997).
No entanto, as discussões sobre a participação ou não participação do homem no cuidado com a prole a partir dessa hipótese, isto é, não reduzida a aspectos intrapsíquicos e problematizando as condições sociais, culturais e políticas disponíveis para que tal participação se dê ou não se dê, caminhava com outras discussões que não apenas se cruzam e se chocam, mas se excluem acionando outras estratégias de poder-saber. Por exemplo, crescia a discussão sobre a participação mais efetiva dos homens no cotidiano familiar a reboque das crises da masculinidade e declínio do patriarcado em razão de crises econômicas e com a emancipação da mulher. Campo fértil no qual se afirmava nascer uma “nova” identidade masculina e o “novo” homem-pai.
Na vontade de saber mais acerca deste “novo pai”, destacamos o nome do psicólogo americano Michael Lamb (1986), autor recorrentemente referido em nossa revisão da literatura, para quem este novo modelo era um dos elementos-chaves na análise as relações parentais em meados da década de 1980 cujo trabalho marcou as produções científicas posteriores. Ao mesmo tempo, crescia na psicologia uma defesa acerca da importância do pai para o desenvolvimento infantil, tanto quanto a mãe, não resumida à provisão material, mas também das relações de afeto e cuidado. Postura nutrida a partir da compreensão dos impactos da ausência paterna (Corneau, 1989).
É importante ressaltar que, nesta década, o movimento feminista já problematiza as desigualdades de gênero no espaço doméstico considerando a participação masculina como recurso para modificá-las – por propostas e reivindicação que se materializaram, por exemplo, na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento no Cairo/Egito, em 1994, e na IV Conferência da Mulher em Beijin/China, em 1995 (Lyra, 2008). Discussões que se intensificaram localmente, no Brasil, sendo publicizadas na década seguinte. Mas o foco é a mulher, estamos distantes da discussão sobre paternidade como direto ou mesmo desejo masculino.
A respeito da infância e juventude, as lutas da sociedade civil brasileira e organizações internacionais travadas ao longo da década culminaram com a produção do ECA (Silva, 2005), estando diretamente ligadas ao processo de configuração e expansão dos direitos civis (Bobbio, 1992/2004). Argumentamos que a legislação dos documentos demarca um deslocamento com a estrutura patriarcal que protegia os homens de implicações em relação aos/as filhos/as advindos de relacionamentos extraconjugais ou não desejados (Bilac, 1999). A partir dos textos legais, na perspectiva do direito, os homens passaram a ser responsabilizados pelo Estado por sua reprodução biológica, sendo o melhor interesse das crianças, advindas de qualquer tipo de relacionamento, uma obrigação do homem-pai.
A produção de saber se relaciona com a relação de poder ao mesmo tempo em que certos domínios a conhecer, sujeitos e regimes de verdade só são possíveis a partir de modificações internas ao próprio jogo político no qual relações poder-saber são imanentes e atuam de maneira diretamente produtiva. A redemocratização da sociedade brasileira, a responsabilização legal do homem por sua reprodução biológica, as reivindicações do movimento feminista e a luta pelos direitos das crianças e adolescentes, são exemplos pontuais de modificações nas condições políticas globais e locais. Solo fértil que possibilitou a fabricação de novos objetos, conceitos e sujeitos. No final da década de 80 surge a “novo pai”, a experiência da paternidade passa a ser confessada por homens inquéritos por pesquisadores, psicólogos, juristas; a presença ou ausência paterna no desenvolvimento infantil começa a ser qualificada; a participação do homem no cuidado da prole se torna opção para promover a emancipação da mulher.
De fato, podemos afirmar a partir do levantamento realizado que houve um aumento exponencial no número de trabalhos produzidos sobre a paternidade, uma expansão das áreas de saber (além de
Direito e Psicologia, surgem Saúde Pública, Antropologia, Enfermagem, Fonoaudiólogia, etc.) que se dedicaram a analisá-la e uma diversificação nas maneiras de questioná-la, esquadrinhá-la6.
Consideramos que tal aumento, expansão e diversificação das produções científicas visibiliza a multiplicidade segmentada e descontinua de discursos sobre a paternidade que entram em diferentes jogos de poder-saber. O que permite que percebamos melhor discursos que os reforçam, mas também os expõem, mina-os, sendo pontos de resistências, redefinem os jogos veiculando outras estratégias.
Em relação à década de 1990, argumentamos quatro episódios que acreditamos determinantes para as ciências no que tange a produção do regime de verdade sobre a paternidade, como enfatizaremos adiante, pois evidenciam modificações internas ao próprio jogo poder-saber científico implicadas diretamente na fabricação de pais. Ademais, argumentamos ainda sobre um ponto que consideramos de resistência, clareira surgida no ceio da ciência.
O primeiro episódio diz respeito ao ganho de força do questionamento acerca da relação entre homens e mulheres como dinamizadora de uma maior equidade de gênero que não poderia ser satisfatória apenas com a emancipação feminina. As Conferências de Cairo/Egito e Beijin materializam reivindicações da década anterior – como já evidenciamos –, de que os indicadores de saúde das mulheres só poderia se modificar na medida em que a população masculina também se envolvesse e modificasse seus padrões de comportamento em relação ao cuidado de si e do outro (Arilha, Unbehaum e Medrado, 1998). Mas os tempos são outros e o aumento da força do argumento estava consonante com reivindiçaões empreitadas no ceio do movimento feminista acadêmico em razão de críticas das mulheres e outros movimentos como o gay, lésbico e negro, por exemplo, que se mostraram descontentes com a representação e política associada ao sujeito mulher feminsta (branca, classe média, europeia) que não suportava intercessões com modalidade de raça, classe, étnica, sexual e acabava reinterando excluções (Butler, 1990/2008).
O segundo episódio, consonante com o primerio, trata da mudança dos estudos de gênero cujo termo era sinômino de mulheres e feminismo. Intensifica-se, em meados de 90, o uso do gênero enfatizando o aspecto relacional ao invés do binarismo radical (homens/dominadores vs. mulheres/dominadas). O gênero constitui-se como categoria de análise da constituição das relações sociais baseadas nas diferenças sexuais e dos significados atribuídos a elas por meio dos quais as relações de poder se articulam (Scott, 1995). Tal definição promoveu diversos desdobramentos, dentro os quais, os estudos foram além das relações homem-mulher englobando também as relações mulher-mulher e homem-homem; outro desdobramento diz respeito aos estudos das masculinidades (Medrado, 1997).
O terceiro episódio diz respeito à ruptura com os estudos sobre o homem como sinônimo de humano, generificado e universal e a ênfase nas singularidades, diversidade de homens e de suas relações consigo, com mulheres e outros homens em diferentes contextos e diversas situações localizadas cultural, histórica e geograficamente (Medrado, 1997). Os homens se constituem como novos domínios a conhecer e a partir das modificações no jogo poder-saber novos conceitos, sujeitos, verdades são possibilitadas. Intensifica a investigação de sentidos/significados/representações/ em torno, sobre e dentro deste homem-pai situado, as tensões entre modelos tradicionais de homem, masculinidade e paternidade e os “novos” homens, as masculinidades e paternidades. Além da dúvida sobre quando e como o homem se torna pai: pela concepção, após o nascimento de seu filho ou pela experiência/participação no cuidado? Questionamento gerador do dilema: a paternidade é eminentemente cultural ou natural? Pesquisadores/as inquiririam homens, mulheres, filhos/as, instituições, etc. a fim de responder tais questões e conhecer as histórias, experiências, narrativas, sentimentos dos homens-pais.
O quarto episódio está relacionado ao dilema da paternidade. Embora tenha sido desenvolvido no final dos anos 1980, o teste de DNA para verificação de laços de paternidade que saltou do mundo da ficção científica e se popularizou em meados nos anos 90, trazendo consigo um potencial para uma “mudança profunda” nas maneiras de conceber família, relações de gênero e parentesco. A simples existência do teste atiça a vontade de saber a verdade cientificamente demonstrável da paternidade colocando em xeque qualquer possibilidade fora de sua certeza de 99, 99% (Fonseca, 2004). O que supostamente resolveu a dúvida em torno do dilema da paternidade. Ironicamente a popularização do teste de DNA pela opinião pública e poderes públicos (legisladores, juristas, etc.) coincidiu com a efetivação das cláusulas constitucionais sobre a responsabilização dos homens sobre sua reprodução, não apenas a lei estipula, como nunca antes, obrigações do pai em relação aos seus filhos, como hoje a ciência fornece meios para identificar esse pai e, assim, atribuir tais obrigações a um individuo preciso (Fonseca, 2002).
Ainda no campo da ironia, a participação do homem na vida reprodutiva outrora invisível ao Estado (Lyra, 1997) passou a ser visibilizada, porém, não da maneira como um convite, pois sua participação se dá pela intervenção de práticas institucionalizadas de poder, sendo imposta ou mesmo sancionada. Entretanto, um homem declarado como pai pelo tribunal pode não cumprir seu compromisso paterno, pois “a afirmação de um fato biogenético, o cumprimento de uma lei e o desenvolvimento de uma relação social são processos distintos” (Fonseca, 2004, p. 15). A paternidade é fabricada pela técnica médico-jurídica, ao mesmo tempo, parece resistir como uma verdade eminentemente social.
Acerca do ponto de resistência. Embora a referida década tenha sido generosa na quantidade e recorrências de trabalhos descobrem/investigam/enfatizam os aspectos intrapsíquicos do sujeito homem-pai, por vezes, fabricando uma paternidade como identidade que se vivida pelo cuidado e afeto despertaria no homem (heterossexual) o uma sensibilidade latente que a cultura machista reprime impedindo-o de experienciá-la. No final dos anos 1990 aparece um trabalho com a hipótese da participação masculina no cuidado com a prole a partir das condições culturais e sociais criadas pela sociedade para obstruí-la ou promove-la. Ou seja, analisa a paternidade problematizando os mecanismos institucionais que a produzem como invisível (Lyra, 1997). Assim, põe em xeque tal invisibilidade como uma escolha autônoma do sujeito e decorrente de seu machismo. Dentro das ciências, um ponto de resistência que se constitui como outra possibilidade de analisar a paternidade que no século XXI encontra eco7.
Na década de 2000, por sua vez, a paternidade continua sendo celeiro fértil de conhecimento, questionamentos, nomeações, experiências, fabricações, cada vez mais singulares e diversificadas: paternidade homossexual, solitária, em situação de institucionalização, afetiva, por inseminação, após dissolução conjugal. Pela primeira vez, a paternidade aparece adjetivada com o termo “participativa”, sendo, então, definida como relação afetiva e próxima a prole, não restrita ao provimento material e nem mesmo vivida na companhia de uma mulher, esposa ou outro homem. Ou seja, no novo século, forjam-se paternidades como direito, compromisso com a filiação e desejo do homem não apenas heterossexual, produção, vivida em família nuclear e ligada ao sexo e sangue.
Ao mesmo tempo, intensificam-se produções que esquadrinham a paternidade a partir da di-visão natureza/corpo versus cultura/gênero e a reiteram, sempre sem o sucesso definitivo, mas nunca sem coerções, as ordens biológicas (espermatozóide, sêmem, sangue, DNA) e culturais que a inscreve no corpo do homem. Produções que naturalizam/essencializam/fixam normas de gênero (mesmo quando pretende relativizá-las). Desta maneira, acabam forjando homens-pais e a coerência entre sexo-pênis-sêmem-masculino-racionalidade-heterossexualidade-procriação.
Ao empreendermos as ciências como dispositivo que produz um regime de verdade sobre a paternidade que responde e justifica práticas de governo dos corpos e das possibilidades das pessoas de negociarem, criativa e subversivamente, suas próprias relações de parentesco, filiação, paternidade e afetivas, e fabrica pais. E mais, delimita o dito e não dito; constrói possibilidades e impossibilidades. Nesse sentido, é preciso ficar claro que as ciências não reproduzem, representam ou apreendem as paternidades como se fossem fragmentos de realidade. Nada disso, elas as produzem. Mas não no sentido de produzirem outros sentidos (sócio-afetiva, homossexual, solitária, monoparental, etc.), mas de produzirem a própria materialidade das paternidades, de organizarem modos de existir e autorizarem sua inteligibilidade na cultura. Porém, ao mesmo tempo, as ciências nunca apreendem plenamente a paternidade que produzem (que, por vezes, julgam apenas descrever ou analisar), pois ela como efeito incontínuo e incoerente, por vezes, cria paradoxos e abre espaço para produção do novo, de fissuras e transformações.
Arilha, Margareth (2005). O masculino nas conferências e programas das Nações Unidas: para uma crítica do discurso de gênero. Tese de Doutorado em Saúde Pública sem publicar, Universidade de São Paulo.
Arilha, Margareth, Unbehaum, Sandra G. & Medrado, Benedito (1998). Introdução. Em Margareth Arilha, Sandra G. Unbehaum & Benedito Medrado (Org.), Homens, Masculinidades: outras palavras (pp. 15-28). São Paulo: Editora 34.
Bilac, Elisabete Doria (1999). Mãe certa, pai incerto: da construção social à normatização jurídica da paternidade e da filiação. Em Reinaldo Pereira Silva & Jackson Chaves Azevedo (Org.), Direitos da família: uma abordagem interdisciplinar (pp. 13-28). São Paulo: LTR Editora.
Bobbio, Noberto (1992/2004). A Era dos Direitos – Nova Edição (8ª Ed.). Rio de Janeiro: Campus.
Butler, Judith (1990/2008). Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade (2ª Ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES (s.d.) Retirado 21 de março de 2010, a partir de www.servicos.capes.gov.br/capesdw
Corneau, Guy (1989). Pai ausente, filho carente. São Paulo: Brasiliense.
Fonseca, Cláudia (2002). A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea. Em Cristina Bruschine & Sandra G. Unbehaum (Org.), Democracia e Sociedade Brasileira (pp. 273-274). São Paulo: FCC, Ed. 34.
Fonseca, Cláudia (2004). A certeza que pariu a dúvida: paternidade e DNA. Estudos feministas, 12(2), 13-34.
Foucault, Michel (1973/1996). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed.
Foucault, Michel (1979/2008). Microfísica do poder (26ª Ed.). Rio de Janeiro: Graul.
Foucault, Michel (1988/2008). História da sexualidade I: a vontade de saber (18ª Ed.). Rio de Janeiro: Edições Graal.
Hacking, Ian (2001). ¿La construcción social de que? Barcelona: Paidós.
Lamb, Michael (1986). The father’s role: applied perspectives. New York: John Wiley.
Lyra, Jorge (1997). Paternidade adolescente: uma proposta de intervenção. Dissertação, Mestrado em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Retirado em 14 de junho de 2010, a partir de www.papai.org.br
Lyra, Jorge (2008). Homens, feminismo e direitos reprodutivos no Brasil: uma análise de gênero no campo das políticas públicas (2003-2006). Tese de Doutorado em Saúde Pública sem publicar, Centro de Pesquisas Ageu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz.
Lyra, Jorge & Medrado, Benedito (2000). Gênero e Paternidade nas pesquisas demográficas: o viés científico. Revista Estudos Feministas, 8(1), 145-158.
Medrado, Benedito (1997). O masculino na mídia. Repertórios sobre masculinidade na propaganda televisiva brasileira. Dissertação, Mestrado em Psicologia Social. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Medrado, Benedito; Lyra, Jorge; Oliveira, Ana Roberta; Azevedo, Mariana; Santos, Giselle Maria Nanes Correia dos & Felipe, Dara Andrade (2010). Políticas públicas como dispositivos de produção de paternidades. Em Lúcia Vaz de Campos Moreira, Giancarlo Petrini e Francisco de Barros Barbosa (Org.), O pai na sociedade contemporânea (pp. 40-55). Bauru: EDUSC.
Nietzsche, Friedrich (1887/2007). Gaia Ciência (4ª Ed). São Paulo: Companhia das Letras.
Parceval, Geneviève (1986). A parte do pai. Porto Alegre: L&PM.
Perucchi, Juliana (2008). “Mater semper certa est pater nunquan”: discurso jurídico como dispositivo de produção de paternidade. Tese de Doutorado em Psicologia sem publicar, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
Scoot, Joan. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99.
Silvia, Maria Liduina de Oliveira (2005). O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Menores: continuidades e descontinuidades. Serviço Social e Sociedade, 83, 30-48.