Athenea Digital -núm. 5 primavera 2004-
A busca do
território: uma aproximação à diversidade
do seu significado entre os sem-terra
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Nashieli Cecilia Rangel Loera Universidade Estadual de Campinas |
Dom Tomas Balduíno (1999) identifica o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil como um movimento “com um caráter surpreendentemente novo e inédito”, que se diferencia de outras organizações principalmente por três características: 1) A ocupação massiva da terra; 2) a proposta de um novo modelo de produção; e 3) a abertura do movimento a uma diversidade de objetivos que vão além da reforma agrária. (Balduíno, apud Stédile e Fernandes 1999). No meu modo de ver, é por meio desse conjunto de elementos e suas diferentes dimensões que conseguimos enxergar não só “a forma” mas também “o fundo” desse movimento chamado sem-terra.
Torna-se necessário explicitar que faço referência ao termo sem-terra na sua acepção nativa, isto é, como o conjunto dos acampados e assentados que não necessariamente consideram-se membros do MST. Isto é, para alguns sem-terra, principalmente militantes, o MST significa um todo: militantes, acampados e assentados formam parte da organização de Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas, para outros, principalmente os recém-acampados e alguns assentados, existe diferença entre ser do MST e ser sem-terra. O primeiro destes termos se traduz para eles como os militantes ou, mais especificamente, o que eles chamam as militâncias, as “cabeças” do acampamento ou do assentamento e, em termos mais gerais, as “cabeças” dessa organização (MST). O segundo termo refere-se ao conjunto dos acampados e assentado, “todos aqueles que se vêm como candidatos à reforma agrária” (Sigaud, 2000: 84). Além disso, faz-se referência ao movimento ora para designar o conjunto dos sem-terra, ora para designar especificamente o MST como organização.
Uma vez feito esse esclarecimento, permito-me mencionar que, neste trabalho, enfatizei a primeira das características acima mencionadas: “a ocupação massiva da terra”, propondo que é precisamente por meio dela que as outras se fazem visíveis. Assim, a dissertação teve como principal locus da pesquisa o acampamento Terra Sem Males-Povo Feliz, que, em mais de dois anos de existência, tem realizado várias ocupações de terras no estado de São Paulo. Uma delas foi no município de Cajamar, onde foi realizada a maior parte do trabalho de campo.
A primeira ocupação desse acampamento foi feita em terras privadas, na fazenda Capuava, na região de Bragança Paulista, no estado de São Paulo. Segundo alguns militantes do MST, já se sabia de antemão que “essa terra era improdutiva” e esperava-se que, depois da vistoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma agrária (INCRA), essa terra fosse declarada “oficialmente” como improdutiva, para ser expropriada. É bem sabido que no Brasil, os movimentos que realizam as ocupações, no nosso caso o MST, mantêm uma comunicação constante com os órgãos de governo envolvidos na desapropriação das terras e, em outros casos, essa comunicação estabelece-se com os próprios fazendeiros. Portanto, antes de realizar qualquer ocupação, já se sabe quais terras são suscetíveis de desapropriação.
O acampamento, foco desta pesquisa, ficou só alguns meses na fazenda Capuava. Uma juíza de Bragança Paulista decretou que o acampamento podia ficar até 60 dias naquelas terras. O passo seguinte, depois do cumprimento do prazo, foi lançar um novo pedido para ficar mais tempo nas terras. O pedido foi negado e se aprovou a reintegração de posse ao proprietário. Conhecendo as regras do jogo, o Terra Sem Males saiu daquela fazenda.
Segundo uma militante do MST, esperava-se que “o Terra Sem Males pudesse voltar lá”. Mas, o acampamento tinha que ser desmontado e as pessoas tinham que sair dessa fazenda para depois poderem voltar e ocupá-la de novo. Stédile comenta que no Pontal, na região noroeste do Estado de São Paulo, a fazenda São Bento teve que ser reocupada 23 vezes até que o governo a liberasse para assentamento (Stédile e Fernandes, 1999). Enquanto o Terra Sem Males fazia outras ocupações, no estado de São Paulo (no período de um ano), o dono das terras da Capuava, segundo uma militante, “plantou milho e se a terra for vistoriada será decretada como produtiva”, portanto, não poderá ser desapropriada. É importante mencionar que o milho é uma cultura que permite colheita num curto período de tempo, portanto, plantar esse produto parece ter sido realmente uma estratégia do fazendeiro para que sua terra fosse declarada produtiva. Agora, a fazenda Capuava consta no cadastro do Instituto de Colonização e Reforma Agrária como “imóvel rural impedido de vistoria por dois anos”.
Na ocupação do Terra Sem Males no município de Cajamar os sem-terra ficaram um pouco mais de seis meses, sabendo que teriam que sair e liberar as terras para outro acampamento que ficou no lugar, o Irmã Alberta. Este acampamento foi promovido pelo escritório regional de São Paulo do MST e os sem-terra do Terra Sem Males ajudaram-no, “fazendo a massa”, e ocuparam as terras em conjunto com este acampamento.
O acampamento saiu de Cajamar em outubro de 2003, e instalou-se em terras do assentamento II de Sumaré, com apoio dos próprios moradores, que cederam para tal fim uma área de dois hectares de terra. Em fevereiro de 2004, este acampamento saiu de Sumaré e ocupou uma fazenda em Americana, perto da cidade de Campinas, a 100 quilômetros da cidade de São Paulo.
Assim, independentemente da terra ser privada ou pertencer ao Estado, ocupação, despejo e desapropriação são elementos constituintes de uma performance, fazem parte de um jogo particular que envolve diferentes atores: sem-terra, MST, órgãos de governo e fazendeiros.
Depois apresentar o contexto desta pesquisa e a trajetória do Terra Sem Males, vejamos brevemente o conteúdo deste trabalho.
A dissertação foi dividida em três partes ou capítulos: 1) A máquina dos sem-terra; 2) Dentro e fora da barraca: interpretando as “formas”; 3) A linguagem e a disciplina da terra.
1) Em 1996, foi publicado o número seis da revista “Atenção”, que tinha como título “a máquina dos sem- terra”. Nela era apresentada uma entrevista com um dos líderes públicos do MST, João Pedro Stédile. Ele respondia a uma série de perguntas sobre a lógica da luta do MST, as relações com outras entidades políticas e a dinâmica dentro dos acampamentos e assentamentos do MST. Porém, mesmo lendo a revista, não tinha ficado claro para mim por que essa organização chamada de Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra era também chamada de “Máquina dos sem-terra”. Essa expressão se mostrou rica em significados durante o trabalho de campo no acampamento.
Assim, o capítulo “A máquina dos sem-terra” foi se delineando e tomando forma ao recuperar as “trajetórias” dos acampados e de alguns assentados de um assentamento, o Sumaré II localizado a alguns quilômetros da cidade de Sumaré, no estado de São Paulo. Esta ferramenta metodológica (a trajetória) me revelou mais dos sem-terra do que uma história de vida contada à maneira de biografia seguindo uma seqüência linear. Mas “não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis” (Bourdieu,1996:190).
O acompanhamento das trajetórias me permitiu ver no caminho dos sem-terra um deslocamento rumo ao passado, presente e futuro, não só dessas pessoas em particular, mas também dos lugares onde estiveram e as pessoas com quem conviveram e convivem e, sobretudo, me fez compreender que esses elementos são parte das motivações que levam essas pessoas a se envolverem com o MST e com os espaços chamados de acampamentos e assentamentos.
Podemos argumentar que o próprio movimento dos sem-terra se compõe dessas trajetórias. Para Bourdieu, a trajetória é “uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente -ou mesmo grupo-, em um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes” (Bourdieu, 1996: 189). Assim o passado, o presente e o futuro mostraram-se ligados por uma linha sutil, onde o tempo forma uma grande espiral que se cruza com outra formada pelo espaço. O espaço que ocupamos no momento presente não só se entrelaça com as expectativas futuras, mas também com os espaços e as experiências vividas anteriormente. Evidentemente, como menciona Kofes, “se falamos de trajetória, ou de itinerário, estamos privilegiando o caminho, o percurso” (2001: 24). E falar em itinerário, como apontou Augé (1994), “é falar de partida, de estada e de retorno, mesmo que se deva entender que há várias partidas, que a estada é também viagem e que o retorno não é jamais definitivo” (Augé, 1994: 14).
Tentei mostrar como tanto os assentados do Sumaré II como os acampados do Terra Sem Males, que decidiram participar da ocupação, atenderam ao chamado para fazer ocupação de acordo com diversas motivações. Alguns deles principalmente os militantes do acampamento, foram fazer ocupação para “apoiar o movimento”, o que, conforme os próprios atores, significa, por um lado, fazer parte da massa para a ocupação e, por outro lado, apoiar a própria organização do acampamento. Os militantes, ao lado daqueles que não se consideram parte da militância do movimento, mas que já fazem parte de algum assentamento ou acampamento, participam cumprindo com uma série de obrigações e compromissos em relação ao MST.
Por outro lado, aqueles que vão participar pela primeira vez de uma ocupação têm a expectativa de conseguir “um pedaço de terra”, o que significa, para alguns, ter uma vida melhor e, sobretudo, buscar autonomia. Para outros, além de considerar o trabalho na roça como “sua profissão”, a ocupação e o acampamento também se tornam um caminho, um lugar de passagem que propiciará, no futuro, uma alternativa para criar um “monte de filho” fora da favela da cidade. E, finalmente, ocupar terra tornou-se uma saída para a situação de desemprego na qual se encontravam. Alguns autores (Sigaud, 2000; De L´Estoile e outros, 2001, Zander, 2003) que têm analisado outras realidades empíricas, situadas em outros assentamentos ou acampamentos, já chamaram a atenção a esse respeito quando mencionam que uma das razões para alguém decidir fazer parte de uma ocupação e depois “ficar em um acampamento” reside, entre outras coisas, no fato de os acampamentos serem uma alternativa de subsistência, “uma saída no curto prazo” (Sigaud, 2000: 88). Portanto, podemos argumentar que, hoje em dia, para alguns sem-terra, o fato de fazer parte de uma ocupação e depois de um acampamento não só tem a ver com uma expectativa de melhorar o nível de vida no futuro, “ganhando a terra”, mas também faz parte, no presente, das estratégias familiares de sobrevivência.
O acompanhamento das trajetórias dos sem-terra também me permitiu traçar genealogias familiares e descobrir a conexão que existia entre os espaços chamados de acampamentos e assentamentos, neste caso, do acampamento Terra Sem Males e o assentamento de Sumaré II. Alguns moradores desse assentamento haviam participado do trabalho de base ou do convite das pessoas que iriam formar parte do acampamento Terra Sem Males, o que tornou manifesta a existência de redes sociais, através das quais algumas famílias dos espaços estudados estão vinculadas por laços de parentesco, amizade e vizinhança. São precisamente estas redes que permitem a continuidade das ocupações e a “territorialização da luta” (Fernandes, 1999).
Assim, o conceito de redes sociais tornou-se de grande utilidade analítica para compreender processos característicos do tipo de sociedade que Joan Vincent (1987) chama de “Sociedade agrária”, já que permite entender, abarcar e apreender o movimento dos indivíduos nela envolvidos. Assim, as redes existentes não somente entre acampados-acampados, assentados-assentados, mas, sobretudo entre os acampados e os assentados, formam um dos elementos básicos da máquina da ocupação, conformando o que chamei de espiralidade da luta. Um assentamento sempre está conectado com um acampamento que por sua vez está conectado com um outro em formação. Todos os elementos anteriores não só permitem a continuidade do movimento mas também criam e recriam “a máquina da ocupação” que, por sua vez, compõe a “máquina dos sem-terra”.
2) No segundo capitulo, “Dentro e fora da barraca: interpretando as “formas””, tentei lançar algumas luzes sobre a dinâmica interna e a organização social dos acampamentos do MST, mostrando que estes são montados obedecendo a um modelo particular de organização, configurando uma “forma acampamento” (Sigaud, 2000), um modelo que se repete em cada ocupação, em cada acampamento e se faz visível nas “barracas de lona preta”, a Ciranda, o Almoxarifado, a Secretaria, os caminhos entres as barracas, os blocos, a portaria, as tarefas compartilhadas e divididas em grupos, setores, comissões coordenação, etc. Deste modo, o próprio ato de ocupar uma terra e montar um acampamento é uma forma de dizer que é essa a terra que se deseja seja desapropriada; a ocupação e os acampamentos tornam-se, uma linguagem, um ato comunicativo.
A “barraca de lona preta” é um elemento fundamental da ocupação. Para os acampados, o fato de montar uma barraca é um ato de inscrição que indica que se pertence a esse acampamento e, portanto, ao possuir uma barraca, os acampados tornam-se também beneficiários de alguns direitos: plantar uma horta, receber cesta básica e ser cadastrado como pertencente ao acampamento. Mas também a presença dos sem-terra no acampamento e o fato de morar na barraca dão legitimidade à luta. Esta adquire diversos significados dependendo do contexto e de quem a reivindica, mas existe uma constante que se repete, principalmente, entre os acampados de mais de 40 anos: “o discurso do sofrimento”. Este discurso entre os acampados e também entre os assentados parece ser parte de uma ética particular. Para os sem-terra, “o sofrimento” é um elemento legitimador da “luta”, e é necessário, para poder “ganhar a terra”, torna-se parte de um ethos sem-terra.
As barracas -esse “mundo preto” aparentemente uniforme e homogêneo- também revelam seu lado heterogêneo, diverso. As barracas abrem uma janela que contém claramente um caleidoscópio: “um conjunto de objetos, cores, formas, etc. que formam imagens em constante mutação” ou “uma sucessão vertiginosa, cambiante de ações, sensações, etc” (Dicionário Houaiss, 2001). A barraca e seu tamanho, sua forma, seus móveis, seus símbolos expressam as diferenças, a diversidade, o status e os desejos dos sem-terra. E já que o fato de montar a barraca é uma espécie de “inscrição”, também a “lona preta” que a cobre é um elemento valioso para os sem-terra; de fato, a lona não só é usada para armar a barraca, mas também é carregada e guardada “debaixo da cama”, como se fosse um tesouro, prevendo-se futuras ocupações ou trocas.
Assim, o acampamento configura-se como um lugar de troca onde se fortalecem os laços sociais de parentesco, vizinhança e amizade, e outros novos se criam e se recriam, formando-se novas redes sociais. A troca de favores e serviços é bastante comum entre os sem-terra do acampamento Terra Sem Males, mas também entre estes e os assentados do Sumaré II, e entre “o povo do acampamento” e “povo da cidade”, estabelecendo-se novas relações além das fronteiras do acampamento. Algumas destas trocas envolvem o que os acampados e assentados chamam de bicos e ajudas. Por um lado, os bicos são muitas vezes trabalhos eventuais, realizados dentro ou fora do acampamento, e que podem ou não ter um pagamento em dinheiro. Por outro lado, as ajudas que, geralmente, referem-se a um objeto material -seja dinheiro, roupa ou comida- que os acampados recebem, dependem da solidez das redes sociais que se estendem para além do acampamento e, especificamente, dependem da obrigação e compromisso que os assentados sentem de ajudar aos acampados que convidaram para fazer ocupação. Assim, essas ajudas entre assentados e acampados também são parte das trocas que são “em teoria voluntárias mas obrigatoriamente dadas e retribuídas” (Mauss, 1988). As trocas são diversas e fluidas, dependendo daquilo que se troca, com quem, e em que circunstâncias.
Assim, o acampamento é o lugar onde se namora, se troca, se fazem bicos, se recebem ajudas, mas também, é um lugar liminar, de passagem, onde se espera, onde, segundo os próprios acampados: “se sofre debaixo da lona preta”, em busca de uma vida melhor. Nesse caminhar, aprende-se uma disciplina e uma linguagem particulares.
3) O trabalho de campo mostrou a existência de diversas linguagens que são socializadas dentro dos acampamentos e assentamentos. Um conjunto de frases, palavras, nomes que parecem identificar e fazer referência não só ao que tenho chamado de “linguagem da terra”, mas também a um grupo particular, os sem-terra vivendo uma situação particular, um acampamento ou assentamento organizado pelo MST. Assim, no terceiro capítulo, “A linguagem e a disciplina da terra”, tentei mostrar como essa linguagem é aprendida principalmente pelos jovens do acampamento nas reuniões, nos cursos de formação, na mística e no dia-a-dia do acampamento, por meio de palavras de ordem, músicas e das próprias falas. Ela é usada diferentemente, em vários níveis, por militantes e pela massa dos sem-terra.
Essa linguagem está imbricada numa disciplina particular, que comporta certas regras, muitas delas orais, e muitas outras escritas, estas últimas explicitadas no Regimento Interno do Acampamento. P. Bourdieu (1987) menciona que as regras se constituem num sistema coerente devido ao “trabalho de codificação” feito por “profissionais da normatização (mise en forme)”, os juristas; no nosso caso, este trabalho é feito pelas lideranças e militantes do movimento. Porém, as regras que fazem parte da disciplina são constantemente desrespeitadas, o que mostra que não são rígidas, mas fluidas e adaptáveis à vida.
A disciplina é necessária para a própria sobrevivência do MST como organização, e os próprios acampados parecem estar dispostos a aceitá-la para poder continuar dentro dos acampamentos e, assim, atingir suas expectativas individuais. Bourdieu aponta que as regras não são eficazes por si mesmas, mas são os agentes -fazendo uso do habitus, entendido como disposições douradoras interiorizadas pelo individuo, que constituem o principio do seu comportamento e da sua ação- que as fazem eficazes (Bourdieu, 1987).
Existem também outros elementos, idéias e valores que o MST tem tentado difundir e impor como parte da disciplina entre os acampados do Terra Sem Males. Um exemplo disto é o projeto da “comuna da terra” -projeto previsto como modelo de assentamento a seguir- que propunha para os sem-terra desse acampamento, a organização da vida e do trabalho da terra em coletivo. Este projeto suscitou conflitos mas, paradoxalmente, também alianças entre os acampados. Uma das reações a esta proposta foi a formação dentro do próprio acampamento, de um grupo de acampados, o chamado “grupo dos 8”, que se opôs abertamente à conformação da “comuna”, já que argumentavam não querer trabalhar em coletivo por estar na busca não só da terra como sustento físico e econômico, mas também como a base de um projeto de autonomia e de reprodução física e cultural, de um território.
Assim, os elementos como o “rumor”, a “fofoca” ou, nos termos nativos, a picuinha, tornaram-se mobilizadores das idéias e das relações sociais dentro do acampamento e tornaram-se formas de resistência cotidianas (Scott, 2002). Por meio deles, divulgam-se informações gerais que circulam entre os acampados, não só sobre uma pessoa ou um grupo em especial, mas também sobre uma situação. Neste sentido, o rumor e a fofoca, nos termos de Elias (2000), são instrumentos poderosos capazes de marginalizar e estigmatizar os membros de um grupo, mas também são elementos geradores de consenso e resistência.
As diversas reações dos acampados permitem ver com nitidez que o “nós” ao qual os militantes fazem referência ao propor o projeto da “comuna da terra” não tem o mesmo significado para os acampados. Subsiste entre estes trabalhadores rurais uma tradição de agricultura familiar; para eles, é assim que o “nós” se traduz. Existe, portanto, um forte desejo de ser proprietário e praticar a agricultura familiar. Thompson já argumentava que a experiência é vivida como uma série de valores “que surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem nossas idéias” (Thompson, 1981:194). Portanto, seguindo este autor, não é possível impor uma série de valores sem que exista uma certa congruência com a visão de mundo e experiência dos indivíduos, mesmo se os valores são, e sempre serão, um terreno de contradição e disputa.
Gostaria de terminar esta reflexão mencionando que este trabalho constituiu também um desafio pessoal de tentar, como menciona Sigaud, “não se deixar seduzir pelas representações nativas, sobretudo por aquelas que mais agradam à nossa visão de mundo” (2000: 92). É então sob esse desafio e com essa idéia em mente que o confronto dos dados empíricos com a bibliografia especializada levou-me a retomar uma série de reflexões que têm permeado a história não só da antropologia, mas das ciências sociais em geral. Questões como a relação entre o que é dito e o que é feito, ou o discurso e a prática dos sujeitos, assim como o uso que se faz dos termos nativos e analíticos, são temas colocados, implicitamente, ao longo do meu trabalho. Por isso, espero que essas reflexões feitas sob um enfoque antropológico lancem alguma luz e possam contribuir com o debate contemporâneo a respeito destas questões.
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