Começo esta apresentação contando uma pequena história. Como parte do meu curso de Doutorado, em 2002 passei seis meses no Centre for Science Studies, da Lancaster University, na Inglaterra. Dentre as atividades realizadas, participei de um grupo de discussão sobre Technologies in Health and Medicine, coordenado por John Law e Vicky Singleton, sendo Law (1999) uma pessoa chave na construção da teoria ator rede (Actor Network Theory). Foi nessa ocasião que entrei em contato com estudos pautados por essa abordagem. Na época tinha clareza que não teria tempo para estabelecer um diálogo mais atento com essa teoria, tanto pelo curto tempo que lá passaria como pela avalanche de novidades que entrava em contato que, obviamente, iam além da universidade. O texto intitulado Ontological Choreography: Agency for Women Patients in an Infertility Clinic (Cussins, 1998), fazia parte da bibliografia indicada para as discussões do grupo. Como essa temática estava ligada à minha pesquisa achei que seria uma leitura familiar. Lembro-me que ao ler o texto, que tinha como base etnografias realizadas em centros de reprodução assistida, fiquei encantada e ao mesmo tempo desassossegada. O desejo de refazer o caminho percorrido era grande, principalmente ao observar que aquela forma de etnografia permitiria entender o consentimento informado em várias dimensões, uma vez que este ocorre a cada encontro e a cada procedimento de que a mulher participa. Entretanto, àquela altura do campeonato (leia-se prazo para terminar a tese), pensar em pesquisa etnográfica numa clínica brasileira era inviável, seja pelo tempo, seja pela dificuldade de acesso à rotina das clínicas de reprodução assistida no Brasil. Assim, após a discussão feita no grupo, abandonei o texto, tanto que não consta da bibliografia da tese.
Entretanto, com referências explícitas ou não, esses seis meses em Lancaster, de diferentes maneiras, estão no texto final da tese e vêm subsidiando novas reflexões. Assim, parte desta reflexão está vinculada a esse campo relacional de materialidades de Lancaster. Desse campo destaco algumas situações relevantes: a reserva técnica da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) que permitiu sair do Brasil, o incentivo e ajuda da orientadora da tese (Mary Jane Spink), a carta de apresentação do Lupi (Lupicínio Iñíguez), a vida na cidade de Lancaster — com brumas, frio e chuva diária —, a Universidade, a biblioteca, as supervisões, o escritório que dividia com outras pessoas, os grupos e seminários dos quais participei, como me posicionei e fui posicionada, os textos lidos, a quota de xerox a tinha direito de fazer, e por aí vai. Voltando ao Brasil, as discussões do Núcleo, que foram e continuam sendo imprescindíveis para compreender muito do que ficou em suspenso, conforme atestam os trabalhos apresentados nesta mesa.
Materialidades, então, se definem e se redefinem em campos relacionais (Law e Mol, 1995). Nessa perspectiva, o social é uma heterogeneidade de materialidades e materiais em relação, ressaltando a importância de considerar, na produção de sentidos, um campo relacional que inclua “material humano e não-humano” (Law, 1994; 1999). Materialidades dizem respeito a falas, textos escritos, imagens, corpos, máquinas, arquitetura, instituições, enfim, tudo que entra em relação propiciando a produção de sentidos e ordenamentos sociais, sendo as próprias materialidades definidas e redefinidas nessas relações.
Nesta discussão, parto da minha tese, intitulada Entre a linguagem dos direitos e a linguagem dos riscos: os consentimentos informados na reprodução humana assistida (Menegon, 2003), mas não apresento a pesquisa propriamente dita, que foi discutida na mesa de ontem. O foco desta fala está nas materialidades envolvidas na prática do consentimento informado para reprodução humana assistida. Destaco, então, três dimensões: na primeira, falo de trajetórias históricas dos consentimentos informados na área da saúde. Na segunda, aponto materialidades que são definidas nos textos escritos por clínicas brasileiras de reprodução assistida, para obter o consentimento de pessoas que buscam essas técnicas. Finalmente, na terceira dimensão, utilizo o texto Ontological Choreography: Agency for Women Patients in an Infertility Clinic (Cussins, 1998), aquele que havia abandonado, para exemplificar como essas materialidades são engendradas, definidas e modificadas nas relações do aqui-e-agora numa rede que inclui pessoas, contatos e manuseio de equipamentos, visualização de imagens ultrassonográficas etc.
A compreensão de redes que marcam as trajetórias e os processos de construção do consentimento informado remete ao tempo longo da história dessa prática. Depende, portanto, de consulta a documentos de domínio público variados: documentos de tribunais, artigos, livros, declarações e códigos internacionais, resoluções e leis locais. Nessa perspectiva, ao percorrer caminhos da prática do consentimento informado, destaquei conjuntos de elementos que se conectaram em tempos e espaços variados e fazem parte da matriz do consentimento. Matriz aqui é utilizada como o conjunto de condições nas quais uma idéia ou conceito é formatado, uma vez que nossas práticas discursivas não emergem no vazio ou no vácuo (Hacking, 2000).
1) No primeiro conjunto incluo os processos jurídico-legais por erro e negligência médicas, ocorridos nos Estados Unidos, a partir do início do século XX. Esses processos forneceram material para reflexões no campo da ética médica sobre os direitos dos pacientes e a necessidade de defesa dos médicos envolvidos, resultando em publicações de artigos, livros e outros documentos acadêmicos (Faden e Beauchamp, 1986). Data desses processos a recomendação de comunicar, previamente, os riscos envolvidos no tratamento, com o objetivo explícito de evitar indenizações financeiras — não se tratava de comunicar riscos para evitá-los ou mesmo minimizá-los. Destaca-se aqui o diálogo entre Direito, Biomedicina e Filosofia (Moral, Ética) e já nos anos 70, da Bioética (Menegon, 2003).
2) No segundo conjunto destaco o julgamento de Nüremberg, realizado na Alemanha no final de 1946, com a concomitante formulação do código de Nüremberg. O julgamento envolveu vinte médicos e três oficiais administrativos do Terceiro Reich, sob a acusação de falta de ética nos experimentos médicos nos campos de concentração. Apesar de a finalidade primeira do código ter sido o estabelecimento de regras para julgar atrocidades cometidas em nome da ciência, estabeleceu, também, “que era indispensável ter o consentimento do participante de pesquisa clínica”, utilizando-se a expressão consentimento voluntário do paciente (Vieira e Hossne, 1998: 37). Após esse código, há uma proliferação de documentos e de publicações contendo denúncias de abusos e estudos sobre ética em pesquisa (Faden e Beauchamp, 1986). A partir de 1964 a Declaração de Helsinque além do Código de Nuremberg passam a propagar a prática do consentimento informado para diferentes esferas da saúde, com ressonâncias nos códigos de ética, nas resoluções e nas leis locais.
Pela literatura consultada fica claro que o Código de Nuremberg serve de marco para o consentimento em pesquisa, enquanto que os procedimentos assistenciais vinculam-se mais aos processos legais em que obter consentimento visa evitar processos e indenizações (Faden e Beauchamp, 1986; Moreno et al., 1998; Vieira e Hossne, 1998; Clotet et al., 2000; Oliveira e Borges Jr.,).
3) No terceiro conjunto destaco a aceleração dos avanços da biotecnologia moderna na década de setenta (Gaskell et al., 1998), quando se formatam termos como engenharia genética, plantas geneticamente modificadas, clonagem, bebe de proveta etc. Por exemplo, o primeiro bebe de proveta, termo popular para fertilização in-vitro é de 1978 (Brinsden, 1999). É também na década de setenta que se organiza o campo da Bioética, apresentando estreita inter-relação com os avanços biotecnológicos (Faden e Beauchamp, 1986).
Em resumo, é a partir da década de setenta que se observa maior preocupação com políticas e regulamentações nacionais destinadas a controlar as chamadas novas tecnologias, regulamentações essas francamente influenciadas tanto por declarações e códigos internacionais como por interesses estratégicos.
Desloco-me agora para a segunda dimensão, as materialidades presentes nos textos utilizados por clínicas brasileiras de reprodução humana assistida para obter o consentimento de seus clientes. Teoricamente, esse documento de gênero contratual, com implicações na órbita do Direito, ao ser assinado pelos clientes (às vezes também pelos profissionais e testemunhas) comprova o recebimento das informações sobre o tratamento proposto, daí a nomeação consentimento informado (Menegon, 2003).
Mas afinal o que está sendo consentido? Em princípio o que se consente é a mediação de terceiros nos limites e nas maneiras de concepção. Nessa rede de terceiros estão profissionais da saúde, doadores de material genético ou biológico, tecnologia desenvolvida para essa finalidade (clínicas, centros cirúrgicos, técnicas, laboratórios pepetas etc.) e regulamentações de órgãos oficiais. Consentem-se, portanto, os serviços de uma determinada clínica; as regulamentações e normas éticas vigentes no país e suas interpretações pelas clínicas; consente-se um conjunto de técnicas; consentem-se, finalmente, resultados projetados no futuro.
Como não terei tempo para exemplificar cada uma dessas quatro formas nucleares de consentir que discuto na tese (Menegon, 2003), destaco o consentimento que se dá para um conjunto de técnicas, chamando a atenção para a visualização e objetivação de materiais genéticos que são manipulados fora do corpo, isto é, no laboratório. Dentre os vinte e sete textos que analisei consentem-se técnicas de fertilização dos gametas (óvulos e espermatozóides), dentre elas: a fertilização in-vitro FIV (considerada a técnica clássica de fertilização fora do corpo da mulher); a injeção intracitoplasmática de espermatozóide no oócito, a ICSI, que teoricamente deveria ser utilizada apenas em caso de infertilidade masculina. O emprego dessas técnicas, porém, requer outros consentimentos como nos casos de crioperservação de material genético (congelamento e descongelamento de sêmen e pré-embriões); consentimentos para doação ou recepção de óvulos, espermatozóides, pré-embriões ou, ainda, útero de substituição (conhecido como barriga de aluguel); consentimentos para testes como o PGD (diagóstico genético pré-implante) ou mesmo amniocentese (teste do líquido amniótico) no curso da gravidez.
É importante compreender que cada técnica consentida desdobra-se em vários procedimentos. Assim, a menção a exames clínicos, ultrassonografias, cirurgias, captação de oócitos, criopreservação de pré-embriões, obtenção de óvulos de boa ou má qualidade, pré-embrião anormal, risco de gravidez múltipla etc, nos textos para consentimento informado, emergem como materialidades genéricas que se diz compreender, aceitar e correr os riscos comunicados, tendo em vista o benefício de obter um bebê ou mesmo um bebê de determinada qualidade.
No processo labiríntico de participar de um programa para reprodução assistida, entretanto, esses procedimentos inserem-se em campos relacionais específicos. Um fato exemplar dessa especificidade está nos usos que se faz da visibilidade de materiais genéticos manipulados e armazenados nos laboratórios. Dessa forma, nos consentimentos informados, por exemplo, comunica-se que os óvulos de baixa qualidade, os espermas ausentes ou problemáticos, ou o produto desses dois um pré-embrião anormal, podem ser prováveis “causas responsáveis” pela margem de insucesso de não engravidar. Dessa forma a responsabilidade pela não-gravidez vai para o material genético, distanciando-se de conceitos clássicos como responsabilidade civil, legal ou moral (Menegon, 2003).
Já na rotina do laboratório nos deparamos com o processo de produção e classificação dessas causas responsáveis. Apóio-me agora no texto Ontological Choreography: Agency for Women Patients in an Infertility Clinic (Cussins, 1998) que, dentre outras coisas, discute os diferentes sentidos atribuídos aos materiais genéticos na rotina do laboratório. Essa discussão mostra que é a partir da própria classificação desses materiais genéticos que se definem suas materialidades. Nessa perspectiva, um embrião (ou pré-embrião como se denomina no Brasil) pode ser classificado como um embrião de boa qualidade e ser transferido para o útero de uma mulher ou ser congelado (que poderá ser descongelado e transferido ou não); os congelados podem, também, serem classificados como embriões excedentes ou extranumerários. Já um embrião classificado como de má qualidade pode ser encaminhado para pesquisas ou ser descartado, que nesse caso será classificado como embrião descartável (waste embryo). Segundo o texto, essa divisão leva os técnicos de laboratório a atribuírem valores diferenciados aos embriões: consideram os bons embriões como fontes potenciais de vida e, portanto, merecedores de tratamento pautado por padrões morais e legais vigentes; já os outros embriões não precisam desse tratamento, pois estão classificados como embriões descartáveis (Cussins, 1998). Em meu entender essas classificações e sentidos definem também diferentes materialidades.
A relação que as mulheres estabelecem com as partes destacadas de seus corpos, como no caso dos embriões que estão no laboratório, de alguma forma segue a lógica dessa classificação: referem aos embriões de boa qualidade como embriões bons, quando a gravidez de concretiza; mas a embriões de má qualidade em caso de insucesso. A fala de uma mulher, mencionada no texto, consiste um bom exemplo: “I had quite a few eggs: eleven; but they weren’t all good and only some of them were mature… and then only two of the embryos looked good, so I guess something was wrong from the start” (Cussins, 1998: 172).
Essa classificação e objetivação de materiais genéticos e seu uso por profissionais e pacientes mostra que há compartilhamento de conhecimentos produzidos no campo relacional da reprodução humana assistida. Esse compartilhamento faz parte da lógica do consentimento informado, segundo a qual, as pacientes estão mais aptas a participar do cuidado de sua própria saúde e a tomar decisões válidas e conscientes quando compreendem e assimilam a cultura e gêneros de fala da clínica. Nessa dinâmica, segundo Cussins (1998), ao se produzir pacientes informados também se produz padrões epistemológicos específicos.
Finalizando esta reflexão, sem a pretensão de esgotá-la, espero que ao discutir essas materialidades no campo da reprodução humana assistida, focalizando as três dimensões acima discutidas, tenha contribuído para a compreensão da prática do consentimento informado como algo que se define e é redefinido nas especificidades de campos relacionais sem, contudo, desprezar sentidos produzidos no tempo longo de sua trajetória, uma vez que estes se presentificam nos tempos vividos e no aqui-e-agora das relações sociais, conforme postulado pela abordagem de práticas discursivas e produção de sentidos (Spink, 1999). Espero também ter mostrado que as relações envolvidas nessa prática social são múltiplas, não se resumindo à díade da expressão relação médico-paciente.
Brinsden, Peter R. (1999). Regulation of assisted reproductive technology. In: Brinsden, Peter (ed.) In Vitro Fertilization and Assisted Reproduction ― the Born Hall guide to clinical and laboratory practice, p. 415-445.
Clotet, Joaquim; Goldim, José R.; Francisconi, Carlos F. (2000). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS.
Cussins, Charis M. (1998). Ontological Choreography: Agency for Women Patients in an Infertility Clinic. In: Berg, Marc E Mol, Annemarie (eds.) Differences in Medicine: Unravelling Practices, Techniques and Bodies. Durham, N.Ca. and London: Duke University Press.
Faden, Ruth; Beauchamp, Tom L. (1986). A History and Theory of Informed Consent. New York: Oxford University Press.
Gaskell, George; Bauer, Martin; Durant, John (1998). The representation of biotechnology: policy, Media and public perception. In: Durant, John; Bauer, Martin; Gaskell George (eds.) Biotechnology in the Public Sphere. London: Science Museum.
Hacking, Ian (2000). Why Ask What? In: Hacking, Ian. The Social Construction of What? First Harvard University Press, p. 1-34.
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Oliveira, Deborah C. A.; Borges, Edson Jr. (2000). Reprodução Assistida: até onde podemos chegar? São Paulo: Editora Gaia.
Spink, Mary Jane (org.) (1999). Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano. São Paulo: Cortez.
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