Identidades e diferença: constituição de trabalhadores na saúde mental1

Mental health workers: Weaving identities and differences

  • Anita Guazzelli Bernardes
  • Neuza Maria de Fátima Guareschi
Este artigo discute a produção de identidades, diferenças e relações de poder em instituições de saúde mental. O estudo concentra-se na nova constituição de políticas públicas, no âmbito das atividades de saúde mental realizadas por profissionais da área com os usuários desses serviços. O objetivo central das políticas em questão consiste em transformar os auxiliares de enfermagem em profissionais de saúde mental. Para a análise, foram tomados como referências fundamentais os conceitos de identidade e diferença derivados dos Estudos Culturais e da abordagem foucaultiana, e ela foi construída com base em entrevistas com enfermeiros e auxiliares de enfermagem que trabalham em um hospital psiquiátrico público na cidade de Porto Alegre. Além disso, como apoio à discussão proposta, foi considerada a lei 9716 de 1992, que contém a reforma do trabalho em saúde mental.
    Palavras chave:
  • Identidade
  • Saúde mental
  • Relações de poder
The article discusses the production of identities, differences and power relations in mental health institutions. The study focuses on the new constitution of public politics, which involve the activities that mental health workers in contact with people who look for this health services. The main purpose of these public politics is that assistants nurses in general become workers in mental health services. The work is based on the concepts of identities and difference derived from the field of Cultural Studies and from Foucaultian approach. The analysis is constructed upon interviews with assistants nurses, men and women who work in psychiatric hospital in the public service in the city of Porto Alegre. Also, the law 9716 of 1992 that deals with psychiatric reform in mental health work helps the discussion of the problem.
    Keywords:
  • Identity
  • Mental health
  • Power relationships

Neste texto, temos como objetivo perscrutar, de forma preliminar, a construção de identidade de trabalhador da saúde mental, mais especificamente, no que diz respeito à prática e ao modo do auxiliar de enfermagem de um hospital psiquiátrico público se reconhecer e se observar como tal. Utilizaremos como material empírico uma entrevista feita com uma auxiliar de enfermagem e a Lei 9.716 (Diário Oficial, 1992) que dispõe sobre a Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul. A análise a ser feita neste texto pretende entender o modo como se constróem trabalhadores em saúde mental sem, no entanto, buscar verdades, nem tampouco definir identidades fixas, essenciais, mas compreender identidades móveis, construídas social e culturalmente.

O fio condutor para pensarmos e refletirmos sobre tais questões são as concepções de identidades, diferenças e relações de poder no sentido em que são problematizados e elaborados por teóricos dos Estudos Culturais e outros intercessores pós-estruturalistas como, por exemplo, Michel Foucault.

Na perspectiva dos Estudos Culturais, o conceito de identidades é pensado em relação à diferença. Identidades, portanto, são relacionais, dependem, para existir, de algo fora delas, a saber, de outras identidades. Tanto a identidade quando a diferença são entendidas como produções sociais e culturais, o que se contrapõe à idéia essencialista de identidade como algo natural: Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais.” (Silva 2000,p. 76). Uma das propostas dos Estudos Culturais centra-se justamente na crítica da naturalização das identidades e da tentativa de estabelecer processos de homogeinização de determinados modos de pessoas se pensarem e se perceberem como pertencentes a um grupo. Uma redefinição do conceito de identidade é apresentada por Stuart Hall (2000):

Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar. (p.112)

A identidade e a diferença são mutuamente determinadas, não propriamente como resultado uma da outra, mas as duas como resultado de um processo, de uma produção. Não podem, portanto, ser pensadas fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido (Silva 2000). Isto não quer dizer que sejam estáveis, pois a linguagem é entendida como uma estrutura instável, que vacila, vaza, está assujeitada, assim como as identidades e diferenças às quais fala:

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. (Hall, 2000, p.109)

O processo de afirmação da identidade e a enunciação da diferença pressupõem o desejo de diferentes grupos sociais imporem sentidos, valores, regras, ou seja, o poder está presente, tecendo essas relações. Um poder2 que não reprime, nem oprime, mas um poder que assim como produz identidades, produz diferenças, constitutivo do tecido social, de atos de significação pelos quais o mundo é dividido em grupos, em classes. Como bem argumenta Silva (2000): “Questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam” (p.83).

O material empírico é analisado na clave foucaultiana do que se entende por discurso. O que se quer dizer com isso, é que se opera com a condição de que os discursos fabricam os objetos dos quais falam e, por conta disso, os discursos são tomados em seu volume próprio de coisas ditas, não como aquilo que nomeia o objeto, mas como aquilo que forja o objeto, neste caso, identidades de trabalhador da saúde mental. Dessa forma, a entrevista com a auxiliar de enfermagem será analisada relacionalmente com a Lei 9.716 (Diário Oficial, 1992) que dispõe sobre a Reforma Psiquiátrica. Entende-se com isso que, assim como os ditos da entrevista, as proposições da Reforma Psiquiátrica através das políticas públicas incidem não apenas no modo de trabalhar mas na forma como auxiliares de enfermagem percebem a si mesmos no trabalho, conformam regiões de visibilidade e campos de enunciação.

A Reforma Psiquiátrica consiste na gradativa substituição do sistema de internação psiquiátrica em hospitais psiquiátricos por uma rede integrada de variados serviços assistenciais de atenção sanitária e social, visando possibilitar que pessoas com “transtornos em saúde mental não sofrerem limitações em suas condições de cidadãos e sujeitos de direitos livres, internações de qualquer natureza ou outras formas de privação de liberdade” (Diário Oficial, 1992). Quanto à sua operacionalidade técnico-administrativa deve estar articulada e integrada ao sistema Único de Saúde (SUS), atendendo às peculiaridades regionais e locais.

A Reforma Psiquiátrica também implica atenção à saúde dos trabalhadores dos serviços de saúde mental, bem como a capacitação desses funcionários quanto às estratégias, mudanças, implicações que fazem parte do campo de discussões da Reforma.

O interesse em focalizar a relação do processo de Reforma Psiquiátrica com processos de construção de identidades na saúde mental decorre da peculiaridade que constitui o cotidiano de trabalho de auxiliares de enfermagem em hospital psiquiátrico público: em primeiro lugar, os auxiliares de enfermagem não têm formação específica formal para o trabalho em psiquiatria, ou seja, seu conhecimento é produzido no interior dos hospitais psiquiátricos; em segundo lugar, são os funcionários que mais tempo passam com os pacientes, que ministram e operam as determinações dos “especialistas” (médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros).

Deste modo, a compreensão que se pretende alcançar baseia-se em trechos da entrevista no documento referente à Reforma Psiquiátrica, como ditos que dizem respeito a formas de expressão, de manifestação que atribui sentido, que inventa, que cria não só visões de mundo, mas modos de ser e de viver. Os ditos são entendidos relacionalmente, ou seja, não são colocados em uma perspectiva de documento, mas de monumento, de enunciados relacionados a outros enunciados, os quais compõem um campo discursivo.

1 Identidades e trabalho

Desejamos, neste estudo, pensar as identidades não apenas no que diz respeito à raça, à etnia e ao gênero, mas também como produtos do trabalho, como construção cultural e social deste tempo histórico e deste espaço, no qual emergem determinadas identidades e não outras.

No Rio Grande do Sul, atualmente, auxiliares de enfermagem, mais especificamente os/as que se encontram em hospitais psiquiátricos, vivem um processo que inclui uma formação em enfermagem, ou seja, a constituição de uma identidade de trabalhador/a da enfermagem em que práticas tais como cuidados com a higiene, sinais vitais, curativos, conforto fazem parte de seu cotidiano. Além disso, esse processo inclui a incorporação da perspectiva psiquiátrica. Nas palavras da auxiliar:

...eu fiquei muito com os cuidados que se tem com o paciente de um modo geral, pacientes clínicos né, que tu tem que cuidar, de responsabilidade por ele e coincidir com a patologia psiquiátrica...3

Neste sentido, “O processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la”(Silva 2000, p.84). A necessidade “de coincidir” com a patologia psiquiátrica aponta para um outro modo de ela se perceber como trabalhadora, aponta para uma diferença que constituía um fora, no momento em que ela ingressou no hospital psiquiátrico; mas, à medida que essa diferença começa a desestabilizá-la, outra forma se constitui, pois a identidade está sempre escapando, mesmo tendendo a fixar-se, está sempre sendo provocada a desestabilizar-se,

...tem um diferencial que é a maneira, que é o manejo que se chama, né, tem um diferencial na maneira, como aquele cuidado que tu tinha, que tu tem com o paciente chamado clínico, eu levei para o paciente psiquiátrico também.

De acordo com Hall (2000), “As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constróem para nós.”(p.112). Os processos de construção das identidades se dão a partir de identificações com determinadas posições-de-sujeito. Posição-de-sujeito é um termo elaborado no âmbito da discussão de autores pós-estruturalistas a respeito da noção de sujeito. Não mais um sujeito absoluto, mas um sujeito que é pensado como uma função vazia, que está sempre por se fazer, um sujeito do discurso, descentrado, um sujeito que passa a ser pensado e a se pensar como tal, no momento em que se experimenta em uma correlação de campo de saber, relações de poder e formas de subjetivação.

Para entender a fixação de tais posições, é importante considerar o conceito de performatividade, “a existência de um eu inevitavelmente performativo” (Hall, 2000, p.103), o que dá ênfase à idéia de identidade como movimento e transformação e não como mera descrição. A performatividade significa que a partir do que se descreve e da repetição destas descrições algo se efetiva, algo se realiza, algo se torne aquilo que é descrito.

Retomando os trechos da entrevista citados anteriormente, pode-se compreender que na descrição repetida de uma determinada forma de trabalhar, esta pessoa vai identificando-se com esse lugar, com esta posição, vai sendo interpelada torna-se aquilo do que fala e é falada.

Porém, nesse dito ainda é possível contemplar uma posição, ou determinadas identidades que falam do processo pelo qual a auxiliar de enfermagem experimenta4 outra forma de ser trabalhadora: aos cuidados com o paciente denominado de clínico são agregados os cuidados com o paciente denominado de psiquiátrico, produzindo uma hibridização de campos de saber bem como de identidades. A construção das identidades por serem compreendidas como processo da ordem do coletivo não referem-se somente a uma esfera do privado, desta auxiliar de enfermagem, mas entende-se que essas transformações no modo de se reconhecer como trabalhadora não dizem respeito ao indivíduo apenas, mas à coletividade de trabalhadores, por ser um processo que se faz na esfera do público.

A hibridização, como enuncia Hommi Bhaba (1996), é um processo cultural que gera algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação”(p.30) denominada de “terceiro espaço” ou “entre lugares”. Este novo não é uma simples união das identidades “originais”5, mesmo guardando traços delas, é um terceiro, um entre lugares, um outro modo, uma outra forma. Além disso, este processo afeta propriamente o poder, afeta a imposição de um determinado sentido, de uma identidade hegemônica, de um determinado “corpus” performativo engendrando diferentes modos de ser e de se reconhecer. Ao introduzir a diferença, convoca continuamente ao “terceiro espaço” ou “entre lugares”, no qual novos sentidos são produzidos, novas identidades são fabricadas.

Se entendermos o trabalho como uma categoria subjetiva, como, também, um espaço de construção e desestabilização de identidades, reconhecer-se e observar-se como trabalhador de um determinado campo institucional implica processos de hibridização, nos quais novas composições, novos sentidos vão desestabilizando identidades e construindo outras.

Queremos assinalar que o trabalho, neste texto, é tomado também como uma das condições constitutivas de existência da prática social, entendendo-se que esta possui uma dimensão cultural, interpelativa, constituindo nossas formas de ser, de viver, de compreender, pois são práticas de significação que atribuem sentidos e ao fazê-lo criam, instituem, inventam (Costa, 2000). Não se trata de descrever os trabalhadores, de compreendê-los como “uma identidade”, mas pensá-los em termos de processos de trabalho, de processos de constituição de sujeitos de uma prática, que se encontram envolvidos em relações de poder que procuram impor determinados sentidos e não outros. Ao fazermos isto, importamos dos Estudos Culturais o modo como o conceito de cultura foi problematizado e elaborado. Cultura não se refere unicamente aos bens materiais produzidos por uma sociedade, ou grupo, mas ao processo de dar sentido que torna os seres humanos como espécie cultural, de como significam objetos e práticas, e a interpelação desses sentidos na constituição de modos de ser (Veiga-Neto, 2000, Hall 1997). O trabalho passa a ser mais uma expressão da produção cultural, não só de domínio material, mas de domínio simbólico, de produção de sentidos, de construção de identidades.

Neste estudo, no momento em que auxiliares de enfermagem6 ingressam no hospital psiquiátrico são interpelados pela instituição psiquiátrica como uma cultura do trabalho, quer dizer, um modo de trabalho, que cria, institui, inventa não só idéias acerca dos significados do mundo, mas molda o modo como se deve ver o mundo, como se deve viver, como se deve perceber em sendo um trabalhador do campo da psiquiatria. Um exemplo desse processo aparece nos ditos explicitados anteriormente, em que a auxiliar utiliza-se de “expressões” do campo discursivo da psiquiatria: “que é o manejo que se chama, né”. Tal dito só passa a ter sentido no momento em que é situado em relação a outros ditos produzidos no campo do qual ela começa a fazer parte e começa a se posicionar. O sentido, portanto, é gerado pelos discursos que :

podem ser entendidos como histórias que, encadeadas e enredadas entre si, se complementam, se completam, se justificam e se impõem a nós como regimes de verdade. Um regime de verdade é constituído por séries discursivas, famílias cujos enunciados (verdadeiros e não-verdadeiros) estabelecem o pensável como um campo de possibilidades fora da qual nada faz sentido – pelo menos até que aí se estabeleça um outro regime de verdade. (Veiga- Neto, 2000, p.56-57).

2 No campo da saúde mental

No sistema de saúde do Estado do Rio Grande do Sul, a constituição de trabalhadores de saúde mental vem emergindo na contemporaneidade como parte do então Projeto de Lei da Reforma Psiquiátrica desde 1989. Nesse período, foi sendo consolidado um movimento político e social que propõe novas políticas de saúde pública, incluindo as que dizem respeito à saúde mental. Neste campo de forças vem sendo pensadas estratégias para a implantação da Lei: a) modificação do modelo assistencial por meio da implantação da rede de Atenção à Saúde Mental (unidades sanitárias, leitos psiquiátricos em hospital geral, moradias protegidas e oficinas) da adequação do ambulatório, para que possam trabalhar de forma distritalizada com o objetivo de transformá-lo em Centros de Atendimento Psicossocial (CAPES), da criação de emergências psiquiátricas não localizadas junto aos hospitais, evitando-se o encaminhamento para internação (Diário Oficial, 1992); b) modificação em relação aos hospitais psiquiátricos públicos, que gradativamente serão desativados como instituições totais de internação.

O hospital psiquiátrico em que a auxiliar de enfermagem entrevistada trabalha, deverá ter sua área transformada em um “centro de referência humanística”7, voltado prioritariamente para saúde mental, mediante projetos que integrem as áreas de saúde, educação e cultura e projetos que possam capacitar e instrumentalizar os trabalhadores de saúde “com tecnologias adequadas ao novo modelo, oferecendo cursos, estágios e treinamentos”. Desta forma, “adequar os recursos humanos ao novo modelo de atendimento”, respeitando o que é determinado pelo SUS, como a criação de um serviço de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador nos serviços de saúde mental (Diário Oficial, 1992).

A Lei 9.716 da Reforma Psiquiátrica engendra-se em discussões e encaminhamentos no sentido de que pessoas “com sofrimento psíquico” devem ser compreendidas e atendidas de outro modo, de maneira diferente do modelo vigente de tratamento psiquiátrico. O que se tinha e ainda se tem, predominantemente, são internações em instituições totais, cujos procedimentos, embora validados cientificamente, violam direitos humanos e reduzem essas pessoas que estão em sofrimento psíquico às taxionomias da psiquiatria e da psicofarmacologia.

No que diz respeito ao trabalho da enfermagem, os funcionários que ingressavam nos estabelecimentos psiquiátricos, além de não possuírem uma formação em psiquiatria também não tinham uma formação em enfermagem na maioria dos casos, mas adquiriam tais conhecimentos no cotidiano de sua prática. A partir da aprovação da Lei, o hospital psiquiátrico, no qual a entrevistada trabalha, realizou um concurso público para a contratação da “enfermagem profissional”, entendida como o serviço prestado por funcionários que haviam feito o curso de auxiliar ou técnico de enfermagem e que diferenciavam-se dos atendentes de enfermagem cuja formação se efetivava nas experiências de trabalho na área. Essas duas categorias funcionais, atualmente, habitam o mesmo espaço dentro do hospital e realizam as mesmas atividades. As diferenças entre os auxiliares de enfermagem e os atendentes de enfermagem são: formação técnica em enfermagem, o tempo de serviço e o salário.

A auxiliar de enfermagem entrevistada trabalhava em hospitais gerais antes de ingressar como funcionária do hospital psiquiátrico e sua formação em enfermagem não contemplava o trabalho em psiquiatria. Ela foi uma dentre tantos que entraram no hospital psiquiátrico a partir da aprovação da Lei 9716 da Reforma Psiquiátrica por meio do referido concurso. Explica-se melhor, uma das práticas implantadas após a Lei foi a elaboração de um concurso público para a contratação de auxiliares de enfermagem no intuito de qualificar o trabalho em hospitais psiquiátricos que até então era realizado principalmente por atentes de enfermagem.

Ao discutirmos estratégias e situações que decorrem da implantação da Lei da Reforma Psiquiátrica estamos problematizando a constituição de identidades de trabalhadores da saúde mental, não em um âmbito geral abstrato, mas referente às interpelações pelas quais auxiliares de enfermagem vão fixando outros modos de se pensarem e se perceberem como trabalhadores de um campo institucional no qual são rediscutidas as políticas tanto de saúde, quanto administrativas.

Neste sentido, tentamos refletir sobre o modo como uma política de saúde, entendida como uma prática-discursiva8, produz efeitos sobre a constituição de novas identidades do trabalhador dos sistemas de saúde e não apenas sobre os usuários desses sistemas. Compreendemos o trabalho, dessa forma, tal como a cultura, como uma prática de significação, produtiva de modos de ser e de sentidos, uma relação social e de poder, em suma, uma prática que produz identidades sociais. Pressupomos, assim, que os sujeitos constituem-se no interior da instituição do trabalho e que nos diferentes espaços de trabalho são produzidos saberes e desenvolvem-se práticas que objetivam a produção de sujeitos, a constituição de identidades.

3 Indivíduo ou uma enfermagem profissional

Utilizamos o termo indivíduo, neste momento, com a intenção de posicionar os/as auxiliares de enfermagem antes do ingresso no sistema psiquiátrico, ou seja, de focalizar a constituição de identidades produzidas no campo da enfermagem em hospitais gerais. Portanto, também falamos de interpelação, mas não daquela engendrada no campo da psiquiatria e da Reforma Psiquiátrica. Segundo Silva (1999):

Por meio do processo de significação construímos nossa posição-de-sujeito e nossa posição social, a identidade cultural e social de nosso grupo, e procuramos constituir as posições e as identidades de outros indivíduos e de outros grupos. (p.21)

Diferentemente dos auxiliares de enfermagem, os atendentes de enfermagem não tinham sequer formação relativa aos cuidados gerais denominados clínicos, como aponta a auxiliar de enfermagem entrevistada:

...e eu acho que quando começou a entrar a enfermagem profissional começou a haver um serviço de enfermagem, alguém que cuidava, né.

Pensar-se como “enfermagem profissional” só é possível no encontro, na constituição de sua diferença - não ser profissional - pois os diferentes grupos sociais só definem a si próprios por meio de um processo de produção da diferença. As identidades dos/as auxiliares de enfermagem são construídas a partir de práticas de significação, no interior das instituições, em que os significados são contestados, transformados. Portanto, por não estarmos falando de um processo linear, e sim de construções que são marcadas pela diferença, pela hibridização, os/as auxiliares de enfermagem que não possuíam experiência prévia em psiquiatria são recrutados a pensar em si próprios e em suas práticas de um outro modo:

...eu fiquei muito com os cuidados que se tem com o paciente de um modo geral, pacientes clínicos né, que tu tem que cuidar, de responsabilidade por ele e coincidir com a patologia psiquiátrica.

O que se quer apontar com isso é que identidades não são forjadas a partir da idéia do idêntico e sim da diferença, daquilo que não se é, neste caso, a “enfermagem profissional”, é o outro que passa a constituir-se como diferença em relação “aos cuidados que se tem com o paciente de um modo geral” porém transformado no momento em que se contempla, que se compõe no trabalho um outro campo que coincida “com a patologia psiquiátrica”, ou seja, é um trabalhador/a que cuida mas profissionalmente.

4 Identidades construídas na e pela instituição psiquiátrica

O termo instituição é utilizado em diversos campos de saber e por conta disso, objetivado de diferentes modos, com diferentes sentidos. Neste texto, pensamos a instituição como construção de humanos, envolvida na produção de formas de inteligibilidade, instituindo determinadas verdades, estabelecendo regimes de verdades como um campo de possibilidades fora do qual nada faz sentido e do qual emergem determinados modos de ser, determinadas visões de mundo.

Se atentarmos para os estudos de Foucault, principalmente na “História da Loucura” e no “Nascimento da Clínica”, veremos que a instituição psiquiátrica, edifica um modo de pensar sustentado em taxionomias, em classificações que partem de uma perspectiva normativa em que a doença mental é tomada do ponto de vista da Razão. É um discurso que, embora a inclua, no sentido de tomar a doença mental como objeto de intervenção, a exclui ao colocá-la no campo da Desrazão, ao propor tratamentos que visam a controlá-la e a transformá-la no que está instituído como sendo a normalidade.

Os/as auxiliares de enfermagem quando são envolvidos nessa produção de sentidos da instituição psiquiátrica, passam a ser interpelados pelos discursos produzidos nos estabelecimentos psiquiátricos, transformando sua prática, transformando seu modo de ser como profissional da enfermagem, ou profissionalizando uma enfermagem que passa a ser uma enfermagem psiquiátrica.

... a gente sempre pegou a experiência dos funcionários antigos, não tinha preparação nenhuma...Agora manejo nos hospitais psiquiátricos, eu fui me espelhando nos funcionários, o que eu achava bom.

A contingência que possibilita esses encontros também traz consigo lutas, batalhas de sentidos, jogos de poder, que produzem e fazem funcionar, que capturam e tornam os sujeitos governáveis.

Existem ditos cujos sentidos só são possíveis em um determinado campo de utilização. Em decorrência do trabalho não ser uma prática passiva mas produtiva, não propriamente em termos de bens de consumo, de prestação de serviços, mas produtor de identidades sociais, que está sempre submetido a uma nova atividade de significação, alguns ditos são tomados como verdades quando um indivíduo passa a ocupar uma posição de sujeito em que tais ditos fazem sentido, em que passam por atividades de significação e transformação, modificando práticas, modificando posições, construindo identidades transitórias, que nunca voltam a uma suposta identidade originária e sim apontam para metamorfoses a partir da diferença:

... Tem um diferencial que é a maneira, que é o manejo que se chama, né, tem um diferencial na maneira, como aquele cuidado que tu tinha, que tu tem com o paciente chamado clínico, eu levei para o paciente psiquiátrico também.

A enunciação da palavra “manejo” só é possível no campo da psiquiatria, referindo-se a um modo de trabalho com o doente mental. A palavra “manejo” é um dito do campo da psiquiatria por ter como referente o trabalho que se opera com e sobre o doente mental, não é a nomeação de uma prática, mas é a própria prática que, ao ser enunciada, traz como correlato a doença mental. A diferença que se produz é justamente nesses correlatos pois assim como manejo já foi uma prática que tinha como referentes “aquietar”, “conter”, com a Reforma Psiquiátrica passa a constituir um campo correlato aos “cuidados”, a “educar para a sociedade”. Mas sempre como uma enunciação do campo da psiquiatria.

5 Trabalhador da saúde mental

Quando afirmamos que a identidade dos trabalhadores da saúde mental é uma contingência, o fazemos porque esta “posição-de-sujeito” (Veiga-Neto, 2000) ou a aderência do sujeito a um conjunto de enunciados que fazem sentido para o indivíduo, tornando-se uma verdade, constitui-se em solo discursivo sobre doença/saúde mental. Só é possível pensar em identidades de trabalhadores da saúde mental neste espaço e momento histórico. Além de se exporem a uma formação discursiva psiquiátrica, os/as auxiliares de enfermagem também irão deparar-se com outros discursos que objetivam a Reforma Psiquiátrica. Os/as auxiliares de enfermagem serão um dos motes da Reforma: “instrumentando os trabalhadores de saúde com tecnologias adequadas ao novo modelo, oportunizando cursos, estágios e treinamentos”(Diário Oficial, 1992).

O caminho que estamos percorrendo é o de tentar perscrutar não apenas a prática diária dos trabalhadores da saúde mental, as diferenças que vão constituir seu cotidiano mas o modo como, correlacionalmente a esse campo de saber – a Saúde Mental, eles passam a perceber-se como trabalhadores da saúde mental.

Os trabalhadores da saúde mental são envolvidos em uma formação discursiva que impõe à sua prática cotidiana projetos que integrem as áreas de saúde, educação e cultura. Essa interpelação fala não só de olhar o paciente/usuário9 de uma maneira diferente, mas também de modificar sua rotina de trabalho:

...hoje ele (usuário) não é mais visto só como paciente do lado psiquiátrico, ele também é uma pessoa...então o serviço lá é os sinais vitais, higiene e conforto, né, muito também a questão assim da reintegração social com eles, mais educativo.

O processo de hibridização afeta não mais uma identidade de auxiliares de enfermagem, mas um “entre-lugares”, na medida em que foi “psiquiatrizada” e encontra-se em luta com os sentidos que são produzidos pela Reforma: não é mais apenas o paciente clínico, não é mais apenas o paciente psiquiátrico, mas agora os auxiliares têm de contemplar o usuário, a pessoa como um todo, com a preocupação de integrá-lo socialmente. De que modo isso será feito no que concerne à prática dos/as auxiliar de enfermagem? Conforme a entrevistada:

...Através de passeios, através de educá-los né, dentro da unidade da forma que se conduzem, da forma com que falam, o tom que falam né, liberando eles para que eles se expressem também, aquilo que ele realmente quer, que também não era permitido.

Essa visão que os/as auxiliares passam a ter de sua prática adquire sentido no momento em que há proliferação das perspectivas da Reforma no hospital, tais como a possibilidade de “pessoas com transtornos de saúde mental não sofrerem limitações em sua condição de cidadãos e sujeitos de direitos livres” (Diário Oficial, 1992) não serem submetidos a internações de qualquer natureza ou outras formas de privação de liberdade, atravessa os trabalhadores instituindo um universo próprio de práticas e significados, uma posição-de-sujeito em que os/as auxiliares também se colocam como produto dessa formação discursiva da saúde mental. A auxiliar de enfermagem não problematiza esses ditos mas os toma como verdades.

É importante ter presente, contudo, que os/as auxiliares de enfermagem são recrutados e posicionados a ocupar este “entre lugares” porque são eles quem trabalham diretamente com os pacientes, são eles que operacionalizam as determinações dos “especialistas”10, neste modelo de psiquiatria. Por conta disso, tal categoria de trabalhadores da saúde mental é alvo de preocupação e de ocupação das novas políticas de saúde mental. Torna-se fundamental para tais perspectivas que os/as auxiliares sejam constituídos por esses sentidos, que eles sejam interpelados por tal discursividade para que o projeto seja efetivamente implantado. De acordo com Hall (1997), os artefatos culturais nos instigam a ser da forma como dizem que somos, nos capturam e nos tornam governáveis.

Os/as auxiliares de enfermagem “precisam” ser envolvidos e constituídos como trabalhadores da saúde mental, ou seja, eles são empurrados ao encontro dessas novas identidades de trabalhadores para que as mudanças prescritas na Reforma Psiquiátrica se efetivem. Esta transformação começa a ser percebida pela entrevistada quando fala:

...antes era bem uma coisa bem repressiva... era aquela coisa de limitação, eu tô aqui, o que eu posso fazer contigo se eu não tenho condições de te cuidar, até de te entender, eu também não tinha entendimento, era o que tinha na época de funcionários, eles só tavam para medicá-los e repreendê-los... não tinha o alcance de ver o paciente como um todo.

Ela percebe-se neste campo de forças, relacionando o que acontecia antes destas discussões provocadas pela Reforma (tanto no sentido de como se olhava o paciente quanto no sentido dos recursos institucionais existentes para os/as auxiliares compreenderem-no) com as novas políticas de saúde mental referidas pela Reforma:

...o que eu posso fazer contigo se eu não tenho condições de te cuidar, até de te entender, eu também não tinha entendimento.

Em virtude dessas novas políticas, eles/elas também serão tomados pela instituição da saúde mental de outra forma, eles também serão percebidos de outro modo, não estarão mais enclausurados no interior das unidades juntamente com os pacientes, mas serão conduzidos através “de cursos de capacitação, de treinamento” (Diário Oficial, 1992) para “ver o paciente como um todo”. Os auxiliares de enfermagem também serão vistos como um todo, quer dizer, como trabalhadores que necessitam ser “adequados ao novo modelo” (Diário Oficial, 1992), não só como mão-de-obra, mas como participante das transformações.

Hall (2000) oferece argumentos para que se entenda este processo: “Embora tenha suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la, a identificação é, ao fim e ao cabo, condicional; ela está, ao fim e ao cabo, alojada na contingência”(p. 106). Uma das preocupações do hospital, na qual a auxiliar entrevistada encontra-se, foi a contratação de auxiliares de enfermagem, já que até a entrada em vigor da Lei da Reforma Psiquiátrica, o corpo de funcionários que se responsabilizavam pelo cotidiano dos pacientes era composto em sua maioria por atendentes de enfermagem e havia poucos auxiliares de enfermagem. Tanto as identidades quanto as diferenças só podem ser compreendidas nos sistemas de significação nos quais adquirem sentido. Pensar, então, as identidades dos trabalhadores da saúde mental só é possível se se compreender, também, o que, para estes trabalhadores, difere do modo como se pensa: como é “ser” trabalhador da saúde mental e como é não “sê-lo”. É esse “não ser” que dará sentido ao “ser”:

... é diferente de uma para outra e dentro da unidade, as vezes tu trabalha de manhã de um jeito e de tarde é de outro... (outra unidade) tudo é determinado, então parece que ali não habita nada do ser humano... claro que ela (unidade) não é totalmente aberta, ela vem evoluindo e assim mesmo a gente não consegue com que todos entrem nessa filosofia.

Como só podemos entender o processo de construção das identidades dos trabalhadores da saúde mental no sistema de significação no qual adquirem sentido é importante que nos reportemos ao que foi explicitado na Lei 9716 da Reforma Psiquiátrica. Encontramos alguns enunciados que podem ser pensados como campo de possibilidades para a produção de trabalhadores da saúde mental, principalmente, aqueles ditos que constituem uma série discursiva, uma família de enunciados que apenas podem ser pensados como enunciados e portanto passíveis de enunciação, nesse tempo histórico, no momento em que são objetivados e tomados como verdades: “transtorno em saúde mental, cidadãos, sujeitos de direitos livres” (Diário Oficial, 1992). Enquanto que outros enunciados , apesar de também atravessarem estabelecimentos psiquiátricos, não fazem parte desses “pensáveis” (“tudo é determinado, então parece que ali não habita nada do ser humano”), dessas verdades sobre saúde mental, de certa forma, constituem a própria possibilidade de identidades de trabalhadores da saúde mental:

Além disso, essa imposição nunca é um ato simplesmente epistemológico, “puramente” racional; em outras palavras, não aceitamos uma verdade porque ela nos foi justificada racionalmente, demonstrada plena e cabalmente como uma verdade verdadeiramente verdadeira. Ou nós a aceitamos por um ato de violência visível – situação em que mais facilmente resistimos a ela – ou nós nos deixamos capturar por ela, como um efeito do poder, o qual, sendo sutil e insidioso, nos impõe tal verdade como natural e, portanto, necessária. (Veiga-Neto, 2000, p.57)

As taxionomias produzidas na modernidade para classificar podem ser entendidas como um ato de significação pelo qual ordenamos o mundo social, ou seja, ao objetivarmos determinados fenômenos, em primeiro lugar, eles passam a existir para nós e, em segundo lugar, eles começam a compor modos de ser e de se pensar. Essa positividade que edifica determinados modos e não outros, além de constituírem-se como enunciados, são, também, resultado de um poder capilar que atravessa todo o tecido social lutando para impor sentidos. A identidade do trabalhador da saúde mental, naturalizada pelo processo da Reforma Psiquiátrica indica posições-de-sujeito marcadas por relações de poder:

... ela (unidade) não é totalmente aberta, ela vem evoluindo e assim mesmo a gente não consegue com que todos entrem nessa filosofia... entre nós (briga) mesmos e depois pra fora, pra que isso se estenda mesmo pelo hospital.

A luta por imposição de sentidos é, segundo Silva (2000), “um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença”(p.83). O ditoa gente não consegue” fala de uma posição-de-sujeito, de uma identificação da auxiliar de enfermagem entrevistada com as verdades da Reforma Psiquiátrica, elegendo uma identidade como parâmetro em relação às outras identidades, normalizando-as de forma a atribuir à “sua identidade” características positivas. Não obstante, ao fazer isso também se coloca na posição de grupo como trabalhadores da área psiquiátrica, como categoria funcional alojados no interior das unidades e responsável pela operacionalização das determinações “terapêuticas” “... entre nós (briga) mesmos e depois pra fora..”. Ao mesmo tempo em que é interpelada sutilmente pelas verdades da Reforma Psiquiátrica, a entrevistada também se pensa como uma categoria funcional, hierarquicamente localizada no interior das unidades, na medida em que a Reforma impõe diferenças, também impõe identificações, pois esse “outro” descentraliza constantemente a identidade hegemônica, sem o qual ela (identidade) não existiria, Hall esclarece (1997):

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados com uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (p.13)

Como já foi explicitado neste estudo, a fixação da identidade é uma tendência, mas as identidades estão sempre escapando, pois os processos que tentam desestabilizá-las trabalham justamente para contraporem-se à sua essencialização. O recrutamento de sujeitos, quer dizer, o recrutamento de indivíduos para ocuparem posições-de-sujeitos determinadas se dá tanto pela formação de identidades hegemônicas quanto pela resistência ao novo modelo. As posições que assumimos, com as quais nos identificamos, compreendem as nossas identidades. Os/as auxiliares de enfermagem se posicionam como trabalhadores psiquiátricos como, também, são recrutados, neste espaço e momento histórico para posicionarem-se como trabalhadores da saúde mental; mas o conjunto de significações produzidas pela discursividade da Reforma Psiquiátrica só será eficaz se recrutar os indivíduos como sujeitos, ou seja, “Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-lo como indivíduos que dessa forma, se posicionam a si próprios” (Woodward, 2000, p.55).

Além disso, outra questão desponta neste cenário se pensarmos os/as auxiliares de enfermagem como um grupo que até o advento da Reforma Psiquiátrica encontrava-se à margem das Instituições Psiquiátricas. Em virtude das novas políticas de saúde, podemos falar de Instituições da Saúde Mental e não só de instituição psiquiátrica, instituição médica, etc. Isto porque na tentativa de contemplar uma gama de campos discursivos tais como as políticas de direitos humanos, a psiquiatria, a psicologia, a educação, o serviço social engendrados em uma outra perspectiva de trabalho com o sofrimento psíquico11, propõe-se a construção interdisciplinar que recruta também os/as auxiliares de enfermagem. Esses passam a ser incluídos na proposta; não somente os usuários dos sistemas de saúde, mas os/as auxiliares de enfermagem também o são: “capacitando e instrumentando os trabalhadores de saúde com tecnologias adequadas ao novo modelo, oportunizando cursos, estágios e treinamentos (Diário Oficial, 1992).

O que se quer apontar com isso é que além da inclusão nos sistemas das novas políticas de saúde, a própria produção das identidades está calcada naquilo do qual fala. É pelo atravessamento das modificações das políticas públicas na contemporaneidade que podemos falar em identidades dos trabalhadores da saúde mental, pois ao objetivar questões sobre saúde mental, tecem-se modos de ver, de pensar e de viver. Reportando-nos a Costa (2000, p.42), “Ambas as identidades, dentre tantas que são compostas, expressam sujeitos produzidos por discursos subjetivadores que operam estratégias representacionais inscritas nas lógicas e interesses políticos de seu tempo.”

Em nosso ponto de vista, o modo como os/as auxiliares de enfermagem estão sendo interpelados por essa produção discursiva e incluídos dentro de uma lógica desse tempo histórico refere-se a dois pontos explicitados na Lei - cidadão e sujeitos de direitos livres - que podem ser compreendidos relacionalmente aos ditos da entrevistada:

... nós era de fazer com que eles também se percebessem como seres, com direitos, que eles também têm....que hoje a gente já vê uma humanização, porque existia isso, porque ainda tem muito, e a gente ainda briga bastante por isso, de uma humanização dos pacientes.

Queremos enfatizar, com isso, que idéias ou leis não são suficientes para que se fale em identidades, para que um indivíduo ocupe uma determinada posição-de-sujeito, subjetivando-se, o que é produzido necessita fazer sentido para ele como enfatiza Veiga-Neto (2000, p.58): “é a aderência a um determinado significado que um indivíduo (...) uma vez exposto a esse significado, passa a se identificar com ele e, por extensão ao sistema de significação (...) ao qual pertence tal significado.” Dito de outra forma, os/as auxiliares de enfermagem enredam-se nessa teia discursiva, pois o que está sendo produzido tem ressonância para si próprio:

... a humanização deles será a humanização nossa... tu imaginas tu trabalhares com uma coisa que tu não achas humano, daqui a pouco tu também tá igual... tu não é mais humano.

Neste sentido, os trabalhadores da saúde mental passam a se humanizar e a serem humanizados, passam a ser falados e a falar. Segundo Hall (2000), são esses pontos de apego temporários que nos constróem como sujeitos aos quais se pode falar, que se torna indispensável para a transformação do espaço de um hospital psiquiátrico em “um centro de referência humanística” (proposição do hospital psiquiátrico da entrevistada).

6 Preâmbulo de uma conclusão

O presente estudo insere-se em uma pesquisa que problematiza os/as trabalhadores/as da saúde mental, cujos pressupostos epistemológicos e teóricos estão ancorados em idéias de Michel Foucault. Produções do campo dos Estudos Culturais têm sido fecundas para nossas reflexões. Portanto, concepções pertinentes a este campo tais como cultura, identidades e diferenças têm servido como intercessores em um processo de hibridização entre domínios de saber diferentes mas que em alguns momentos podem produzir novas combinações e ampliar a compreensão acerca dessa temática.

Esta escrita parte de inferências que se produzem em pesquisadores que, quando jogados em um campo de pesquisa, tentam materializar suas ferramentas conceituais e operacionalizá-las como construção de conhecimentos. Por sustentarmos nossos estudos em perspectivas teóricas pós-estruturalistas torna-se, de certa forma, delicado fechar-se em definições, pois justamente uma das contribuições trazidas por esse movimento é a de que as marcas identitárias, apesar de serem marcas, estão sempre por se fazer, sofrendo transformações em suas significações. Não se trata de cair em um relativismo por excelência, mas de pensar em termos de processos, de produção e não de essência. Foi isto que tentamos construir neste estudo.

Neste sentido, as identidades de trabalhadores da saúde mental não são frutos de um “dom”, mas são produzidas social e culturalmente neste espaço e neste tempo histórico, em que as discussões sobre Reforma Psiquiátrica deixam de ser murmuradas e passam a constituir-se como verdades, como saberes, como construtoras de identidades, de modos de ser e de se reconhecer como trabalhador.

Finalmente, podemos pensar que um estudo dessa natureza, proposto por alguns autores dos Estudos Culturais, como por exemplo Stuart Hall, contribui para a psicologia compreender e intervir nos processos de trabalho a partir das relações de força produzidas no “entre lugares”, em que identidades são fixadas ao mesmo tempo em que constantemente sofrem interpelações que as desestabilizam, não no intuito de resgatar a identidade do trabalhador, tentando recuperar uma forma original, mas de justamente intervir nestes espaços de fixação, de hegemonia de identidades.

7 Referências Bibliográficas

7.1 Livros

Bhaba, H. (1996).. O terceiro espaço. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 24.

Costa, M. (2000). Sujeitos e subjetividades nas tramas da linguagem e da cultura. Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 29-46.

Foucault, M. (1984). História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

Hall, S. (1997). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora,1997.

Hall, S. (2000). Quem precisa da identidade. In: T. Silva (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.

Silva, T .A (2000). Produção social da identidade e da diferença. In: T.Silva (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.

Veiga-Neto, A. (2000). Michel Foucault e os Estudos Culturais. In. M.Costa Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema.... Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS.

Woodward, K. (2000). Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: T.Silva (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes.

7.2 Documentos

Diário Oficial [do] Estado do rio Grande do Sul. Lei Estadual no. 9716 de 7 de agosto de 1992. Dispõe sobre a Reforma Psiquiátrica no rio Grande do sul, determina a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental, determina regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações psiquiátricas compulsórias e dá outras providências. Porto Alegre, 10 de agosto, 1992.