Díaz-Benitez, María Elvira y Figari, Carlos Eduardo (2009). Prazeres Dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond. ISBN: 978-85-7617-166-9
O livro Prazeres Dissidentes é resultado de discussões entre jovens pesquisadores latino-americanos na VII Reunião de Antropologia do MERCOSUL1, realizada em Porto Alegre, Brasil, em 2007. Atentos a essas reflexões, dois outros jovens pesquisadores da área da Psicologia Social – cujos temas norteadores de suas pesquisas de mestrado e doutorado também permeiam o campo da sexualidade – assumem aqui o papel de produzir uma narrativa sobre essa coletânea de pesquisas, orientados pelos pontos que unem os diversos trabalhos (tais como referências teóricas, campos de saber e metodologias utilizadas) e pelos raios dispersantes que excitam a leitura.
O instigante título “Prazeres Dissidentes” marca um conjunto de trabalhos que tem como foco a sexualidade enquanto espaço de prazer e transgressão. Historicamente, as práticas sexuais relatadas – tais como as realizadas por pessoas do mesmo sexo, sado-masoquismo, clubes de shows ou práticas sexuais, com prostitutas e travestis etc. – foram consideradas socialmente imorais ao negarem os padrões supostamente universais de conduta, cujo único fim possível seria o da procriação. A medicina e os saberes psi reforçaram esse estigma ao analisar condutas sexuais transgressoras como algo patológico, cuja intervenção terapêutica (e até mesmo medicamentosa) se faz necessária na tentativa de normatizar o comportamento sexual. Entretanto, as análises dos temas trazidos nessa coletânea, por mais dissidentes que possam parecer, fogem de uma leitura discriminatória e patologizante. O prazer é matéria-prima e fio condutor das trajetórias.
Uma importante referência teórica que atravessa a maioria dos trabalhos é a perspectiva de Michel Foucault. Isso porque a obra foucaultiana retira qualquer possibilidade de naturalização do termo sexualidade, na medida em que afirma que os desejos sexuais não são entidades biológicas pré-existentes, mas são constituídos no curso de práticas sociais específicas, determinadas historicamente. A filósofa Judith Butler também se configura como uma referência fundamental, sendo dedicado, inclusive, um capítulo introdutório com vistas a discutir a teoria da performatividade e a política da abjeção na obra da autora. Nos rastros de Foucault, Butler nega qualquer essência (psicológica) do ser humano ou de sua sexualidade; defendendo, portanto, que as pessoas são construídas a partir de atos performativos ao longo das relações sociais estabelecidas.
É importante pontuar também que, somando-se a maciça utilização da bibliografia estrangeira, inclusive da literatura “feminista”, há a presença de autores brasileiros que abriram (e continuam trilhando) o caminho para a pesquisa sobre a sexualidade na América Latina. Nesse sentido, Peter Fry, Nestor Perlongher, Richard Parker, Sérgio Carrara, Maria Filomena Gregori, Maria Luiza Helborn, entre outros, são nomes que habitam e animam diversas pesquisas relatadas.
Tais pesquisas são trabalhos de pós-graduação em andamento ou finalizados nas áreas da Antropologia e Ciências Sociais. A circunscrição nessas áreas de conhecimento pode ser entendida pelo mote idealizador do livro, a referida Reunião de Antropologia do MERCOSUL. Vê-se, portanto, a prevalência da etnografia como forma de produção das narrativas, assim como de referências que dão subsídios a esse método: Marcel Mauss, Lévi-Strauss e Roberto Da Matta. Surgida no fim do século XIX com a proposta de observar a maneira como as pessoas viviam em culturas consideradas exóticas, a etnografia se tornou uma marca importante nos estudos antropológicos. A partir do século XX, a etnografia passa a ser usada por outras ciências, incluindo a Sociologia, Educação e Psicologia, e atualmente tem sofrido variações diversas, como por exemplo, a etnografia online ou virtual encontrada em alguns artigos desta coletânea.
A etnografia online configura-se aqui como um instrumento de pesquisa poderoso, uma vez que os assuntos tratados são, muitas vezes, identificados como delicados, pessoais, íntimos. Portanto, a estratégia de não estar face a face com o pesquisador pode facilitar a expressão dos temas investigados. Os trabalhos que utilizaram da etnografia online fizeram uso de meios distintos e por vezes complementares: análise de página de endereço criada para se debater uma questão em comum, fóruns de discussão do site de relacionamento Orkut, entrevistas via MSN, análise de blogs etc.
Todas essas ferramentas, virtuais ou presenciais, foram empregadas na tentativa de entender o porquê as formas de expressão da sexualidade aqui discutidas consolidam-se como dissidentes. Como forma de sistematização, os textos são divididos, além da parte introdutória, em quatro temáticas: Corpos e interações de fronteira, Encontros ao avesso, Sociabilidades fluídas e Jogos proibidos.
Na primeira parte do livro, denominado “Corpos e interações de fronteira”, há a relação entre clientes e travestis que se prostituem. Prazeres que parecem precisar do intermédio do contato comercial para serem suportados por esses homens. Outro artigo discute as experiências de pessoas que realizam o crossdressing (vestir-se com roupas convencionadas ao sexo diferente do que fora registrado ao nascer), cujo foco volta-se para os modos como esta prática é negociada nas diversas instâncias de suas vidas. Outro exemplo de interação de fronteira é apresentado na pesquisa feita em uma boate do subúrbio do Rio de Janeiro freqüentada por travestis, gays praticantes do crossdressing e “homens de verdade” (termo utilizado pelo autor da pesquisa). Este trabalho examina os códigos de troca e as formas de participação no mercado erótico, no qual os “homens de verdade” são a moeda mais valorizada. O público feminino heterossexual toma a cena na pesquisa em um “Clube das Mulheres”. Esse trabalho analisa a tensão entre rupturas e continuidades das performances convencionais de gênero nos shows de strip-tease masculino para as mulheres. A pesquisa bibliográfica também teve espaço. Tal pesquisa articula a obra literária de Marcelo Mirisola, temas da sexualidade e as práticas da biotecnologia. Analisa o humano enquanto ser artificial e natural: trata do corpo enquanto manipulável; do sexo destituído inteiramente da função de procriação; das qualidades físico-morais e suas relações com a artificialidade das práticas de laboratório; da pretensão de se estar livre das relações pessoais na busca de sensações corporais.
“Encontros ao avesso” é o título do segundo bloco de discussão. As pesquisas englobadas nessa secção têm como ponto de partida a obtenção do prazer divergente dos padrões tradicionais, seja pelo espaço, pelos pares ou pelos sentidos atribuídos às práticas. Os clubes de sexo para homens na cidade de São Paulo aparecem como alternativa às saunas. Neles, não se podem usar roupas, toalhas e não há espaço para o sexo privado: tudo acontece aos olhos dos demais freqüentadores. Adiante, a variabilidade de sentidos culturais dos modelos de masculinos é analisada à luz do discurso das prostitutas e não dos homens que as procuram para negociar programas. Ainda no território da prostituição feminina, outra pesquisa recorre à escuta de mulheres que atuam em espaços marginalizados no nordeste do Brasil com objetivo de desvelar suas histórias, desejos e as modalidades de relações de gênero que se expressam nas práticas de prostituição feminina. Nosso último encontro ao avesso é aquele identificado como “pegação”: encontro entre duas ou mais pessoas, normalmente estranhas, que compartilham o interesse em obter sexo imediato, ocasional e não comercial. Os locais da “pegação” variam desde saunas gays, cinemas pornôs, até parques, praças e banheiros públicos.
Na terceira parte, as “Sociabilidades fluidas” se apresentam no âmbito da sedução, seja presencial ou virtual. Trata-se de analisar os locais de sociabilidades – site de relacionamento Orkut, bailes de samba da periferia da cidade, boates LGBT2 etc. – visando analisar o erotismo e estratégias de conquistas de homens e mulheres auto-identificados como homossexuais. Os trabalhos confluem no sentido de entender como as relações de poder, sexualidade e convenções de gênero, assim como as de raça/cor e classe social, se articulam na produção de subjetividades e como as pessoas negociam seu lugar no mundo a partir das diferentes possibilidades de conjunção desses marcadores. São estudos sobre o que podemos chamar de uma economia da sedução.
“Jogos proibidos” é nossa quarta e última parte e nos apresenta reflexões sobre a implicação de trazer para a relação afetivo-sexual tanto pessoas que de acordo com a norma não poderiam se relacionar com seus pares, quanto objetos cujos fins se destinam a outros meios. Essa seção inicia-se com relatos sobre as práticas de incesto na Argentina, procurando descrever os distintos sentidos atribuídos a elas, de acordo com a classe social, o tipo de relação sanguínea ou os estilos de vida e orientação sexual de seus protagonistas. O prazer em manter relações afetivo-sexuais com crianças é focado à luz dos homens considerados “pedófilos”, mas que reeinvindicam outro lugar social, para além da anormalidade e da criminalização. Cordas, algemas, dominação, submissão e imobilização são alguns dos objetos e técnicas presentes na composição da fantasia de homens que se consideram BDSM3. Outros objetos como excrementos humanos e a erotização do cigarro compõe a prática denominada “abuso facial”. Nas práticas de bareback (sexo sem preservativo entre homens), o prazer é alcançado no contato entre corpos sem nenhuma proteção, ou seja, sem uso de preservativos. E por fim, as orgias que implicam na troca de parceiros, aparecem como práticas sexuais coletivas durante as gravações de filmes pornôs com temática carnavalesca, mediante o pagamento de cachê aos atores envolvidos nesse trabalho.
Em síntese, essa coletânea nos instiga a refletir sobre a possibilidade de despatologização desses prazeres dissidentes. Coadunado a essa perspectiva, nossa concepção de Psicologia Social vai à contramão da política de patologização defendida durante muito tempo por seguimentos conservadores e moralistas dos saberes psi. Acreditamos que este trabalho pode (e deve) se constituir em um instrumento a favor de uma nova maneira de se pensar a sexualidade no campo das ciências humanas e sociais. É um exemplo de que a sexualidade pode ser analisada simplesmente (o que não é pouco) pelo ponto de vista do prazer.