Novas aventuras em sala de aula: uma análise sobre a educação na sociedade de controle

New Adventures in Classroom: An Analysis about Education in Control Society

  • Sonia Regina Vargas Mansano
Uma sociedade caracterizada pela expansão dos dispositivos de controle pode gerar diferentes análises sobre as maneiras como eles colaboram para produzir modos de viver que são postos em circulação na esfera social. No presente artigo, faremos a cartografia de algumas mudanças que estão sendo precipitadas nas diferentes instituições, em especial nas instituições escolares, uma vez que estas se apresentam como um campo vivo a ser explorado e reinventado pelos seus agentes. Cabe então problematizar quais são as possibilidades de implicação com a produção de conhecimento e com a promoção da aprendizagem nas escolas atuais. Tomando como referencial o contexto do trabalho imaterial afetivo, no qual as atividades do professor podem ser localizadas, buscaremos investigar: Como os dispositivos de controle fazem-se presente no contexto educacional? De que maneira as relações afetivas vivenciadas na sala de aula podem ser compreendidas em nossos dias? Quais os novos desafios colocados para os professores nesse contexto mutante?
    Palavras chave:
  • Educação
  • Controle
  • Trabalho imaterial afetivo
A society that is characterized by the expansion of control devices can generate different analyses about how these collaborate to produce ways of living that are put in circulation in the social sphere. The present article attempts to make the cartography of some changes that are being precipitated in different institutions, especially in school, once it comes out as an alive field to be explored and reinvented by their agents. The objective is to review the possibilities of implication with knowledge production and with the promotion of learning in contemporary schools. We use as a reference the context of the affective immaterial work, in which teacher’s activities can be located, to investigate: How do the control devices appear in the educational context? How can we understand the affective relationships that are lived at the classroom in our days? Which are the new challenges for the teachers in this mutant context?
    Keywords:
  • Education
  • Control
  • Immaterial affective labor


A Psicologia Social, como área de investigação voltada para o estudo das relações sociais que se constituem em um dado tempo histórico, depara-se com um grande desafio na contemporaneidade: compreender as diferentes transformações vividas nas instituições, incluindo aí aquelas que acontecem nas escolas. O filósofo Gilles Deleuze (1992) anunciou, em seu “Post-scriptum sobre a Sociedade de Controle”, uma mudança de regime de poder que vem ocorrendo a partir do final da Segunda Guerra

Mundial: o abandono gradativo da sociedade disciplinar e a emergência da sociedade de controle. Ele comenta:

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família [...]. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que estas instituições estão condenadas num prazo mais ou menos longo (Deleuze, 1992, p. 220).

A escola também atravessa essas crises. Em seu interior, as reformas são recorrentemente propostas, em especial pelo Estado, no intuito de facilitar e promover os processos de aprendizagem, tornando-os acessíveis a um maior número de cidadãos. Pode-se dizer que parte significativa dessas reformas busca atender e encontrar saídas para algumas queixas que são bastante recorrentes nessa instituição: a indisciplina dos alunos, o desinteresse generalizado pelo convívio coletivo bem como o pouco investimento desejante na aquisição e na produção de conhecimentos. Cada uma dessas queixas nos leva a pensar que as relações afetivas nela experimentadas vêm sofrendo transformações e, por estarem desgastadas, interferem de diferentes maneiras na organização dessa instituição social.

Diversos são os agentes que dão vida e colocam em funcionamento a escola. No decorrer deste estudo, voltaremos nossa análise para dois deles, alunos e professores, questionando: Como o aluno pode ser compreendido hoje e quais as possibilidades de contar com sua implicação subjetiva e desejante nos processos de aprendizagem? E, por outro lado, como os professores estão acolhendo e elaborando tais mudanças na sua prática cotidiana?

Antes de avançarmos nessa discussão, porém, cabe dar especial atenção à crise das instituições disciplinares anunciada por Gilles Deleuze. Numa breve retrospectiva histórica, é possível dizer que a instituição escola, durante um longo período, foi estruturada a partir da disciplina e, principalmente, da autoridade que era atribuída ao professor. De acordo com Philippe Ariès, desde o século XII várias iniciativas foram realizadas no sentido de criar um espaço físico e também uma dinâmica subjetiva a partir dos quais as práticas de ensino pudessem ser realizadas de maneira continuada. Assim, o processo de institucionalização da escola realizou-se tendo como principal objetivo a disseminação da ordem e da disciplina. Diversas estratégias foram utilizadas para alcançar esse objetivo e, segundo esse autor, a nova disciplina introduzida pela organização dos colégios colaborou para que professores e diretores fossem “depositários de uma autoridade superior” (Ariès, 1981, p. 180), o que tornava o sistema disciplinar cada vez mais rigoroso, sistemático e hierarquizado.

Adotando um comando institucional centralizado e autoritário, as responsabilidades atribuídas para cada agente que trabalhava na escola eram bem delimitadas e minuciosamente esclarecidas. Nessa divisão precisa de tarefas, cada indivíduo envolvido no processo educacional poderia ser facilmente localizado, visto que ocupava um papel social bem delimitado. Essa distribuição minuciosa de funções ajudava a compor uma rede hierárquica extensa e forte.

Pode-se notar que um dos principais objetivos da escola era promover a apreensão de conhecimentos e a internalização da disciplina – que deveria ser adotada por todos os que nela estudavam ou trabalhavam. Diante disso, a principal expectativa depositada nos alunos, naquele momento histórico, referia-se à obediência e ao respeito aos valores instituídos que deveriam ser minuciosamente acatados e reproduzidos. Ao estudante cabia estar atento às ordens do professor, sempre disposto a obedecê-las de forma integral e imediata.

Nesse cenário disciplinar, consolidou-se uma espécie de complementaridade entre as figuras do professor e do aluno. O mestre ocupava uma posição de destaque no processo de transmissão do conhecimento visto ser identificado como autoridade e como um profundo conhecedor dos conteúdos a serem transmitidos. Já o aluno, quanto mais fosse passivo, disciplinado e obediente, mais estaria apto a receber aquele conjunto de conhecimentos que vinha exclusivamente do seu mestre. Assim, as atitudes de mando e de obediência formavam um par complementar que dava suporte ao modo de subjetivação disseminado do interior dessa instituição. Tanto que, para Ariès, a escola descobriu a “necessidade da disciplina: uma disciplina constante e orgânica” (p. 191) que passou a ser exercida no seu interior e, posteriormente, também fora dela, contando com a intervenção da instituição familiar como uma grande aliada no processo educacional.

Não há dúvidas de que a rigidez presente nas instituições escolares abriu espaço para que diferentes formas de resistência fossem nela ensaiadas, precipitando, assim, algumas mudanças significativas. Ainda de acordo com Ariès, essa instituição, revendo parte de seus princípios, começou a ocupar-se em “despertar na criança a responsabilidade do adulto, o sentido de sua dignidade” (p. 182). Assim, objetivos distintos da mera disciplinarização também passaram a ser buscados, como a preparação do aprendiz para o futuro, para a profissionalização e para as atribuições da vida adulta. Cabe lembrar que, em consonância com os valores vigentes no final do século XIX, a formação escolar tinha como foco a inserção do indivíduo no mundo do trabalho e a tentativa de incutir nos alunos a importância da responsabilidade social.

Já quando tomamos em análise a educação no século XX, podemos notar que ele foi bastante marcado pela pesquisa de novos métodos de ensino que passaram a ser elaborados e experimentados com vistas a facilitar os processos de aprendizagem e promover o envolvimento do aluno com os valores morais vigentes, bem como com a produção e apreensão de conhecimentos. Entretanto, apesar dessas mudanças, os valores presentes no regime de poder disciplinar sobreviveram e, em parte, continuam presente nas escolas, colaborando para organizar as relações sociais e afetivas, assim como garantir a obediência à hierarquia.

Como acontece essa sobrevivência? Vivemos num momento histórico em que a disciplina sofre certo esgotamento, como já assinalado por Deleuze. Uma sociedade disciplinar é o que estamos deixando pouco a pouco de ser (Deleuze, 1996). Mas ela ainda não desapareceu completamente e divide espaço com outras formas de poder que se efetuam por meio de dispositivos de controle, como veremos mais adiante. Assim, novas composições de forças entram em cena e colaboram para desenhar outra paisagem subjetiva. Há décadas abandonamos as instituições escolares de confinamento e os métodos disciplinares mais rígidos que se tornaram limitados diante das transformações sociais e subjetivas que entraram curso após a Segunda Guerra Mundial.

Desde então, as escolas experimentam uma série de reformas no que se refere tanto ao seu espaço físico quanto à maneira de conceber e promover os processos de aprendizagem. Como professores e alunos experimentam as transformações institucionais e subjetivas que emergem em seu cotidiano atualmente? Uma das principais queixas apresentadas pelas escolas hoje diz respeito à dificuldade de promover os processos de aprendizagem pela ausência de disciplina.

À medida que a disciplina, por vezes lembrada por alguns professores com certo saudosismo, sofre um declínio, outras formas de relação passam a ser experimentadas nesses espaços institucionais. Tanto que, sobre isso, Michel Foucault chega a considerar:

Nesses últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também; eles estão cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à disciplina, de tal forma que somos obrigados e pensar o desenvolvimento de uma sociedade sem disciplina (Foucault, 2003, p. 268).

Vejamos como essa nova paisagem vem se instalando. Como os limites das instituições já não são tão delimitados e fechados, os indivíduos que nelas estavam inseridos passam a circular mais livremente pelo espaço social. Sua existência não está mais “amarrada” a uma instituição específica e, assim, ele pode frequentar várias delas ao mesmo tempo, sem necessariamente estabelecer um vínculo duradouro. A possibilidade de transitar de modo mais veloz e diversificado pelo espaço urbano distancia o indivíduo das regras e sanções presentes no regime disciplinar, que é baseado na vigilância direta do seu corpo e de suas ações.  

Para tentar manter algum tipo de controle sobre a vida da população, as formas de poder também sofreram transformações. Os dispositivos de controle que ora circulam são bem mais flexíveis, múltiplos e espalhados pelo espaço social. Assim, pode-se dizer que esses dispositivos já não incidem necessariamente sobre o indivíduo institucionalizado, mas sobre a passagem dos diferentes fluxos que atravessam a existência, sendo que o indivíduo é apenas mais um deles.

Para acompanhar os movimentos de uma sociedade a cada dia mais acelerada, dispersa e independente, as formas de controle são variadas, sofisticadas e amplamente disseminadas. Diante dessa organização social dinâmica e multifacetada, as regras e os agentes de vigilância disciplinar já se tornaram, em larga medida, “obsoletos” (Negri e Hardt, 2001). As formas de controle, agora, passam a ser realizadas por qualquer indivíduo, a qualquer tempo e ocorrem praticamente “a céu aberto” (Deleuze, 1992), ou seja, já não há mais a necessidade de limites, de grades e de agentes especializados que se responsabilizam exclusivamente pela tarefa de vigilância no interior das instituições. Mesmo porque esse interior, como já mencionado, está cada vez mais perdendo seus limites, tornando-se mais acessível e aberto. Nesse cenário de transformação, pode-se dizer que cada indivíduo, em seu cotidiano comum, está se tornando um agente de controle que atua dentro e fora das instituições.

Paralelo a isso, é possível notar que com o avanço tecnológico e informacional, diversos equipamentos são disponibilizados para a população em geral e, por diferentes vias, eles também colaboram para facilitar essa nova forma de organização social voltada para o controle, até mesmo nas escolas. Exemplos disso são as câmeras de filmagem espalhadas pelos diferentes espaços das instituições que possibilitam o acesso imediato às imagens de alunos em sala de aula (podendo ser feito pela direção, pelos pais e/ou pelos responsáveis), a presença dos agentes e dos aparatos de segurança ostensivos nos espaços públicos e privados, bem como o uso cada vez mais comum dos telefones celulares que facilitam a localização de seu usuário.

Assim, vivemos num tempo histórico em que a comunicação pode ser realizada de maneira bem mais rápida e eficiente. Cada um desses dispositivos, associados aos componentes subjetivos de controle que vêm sendo aos poucos internalizados e naturalizados pela população, ajuda a construir uma nova configuração para a organização espacial e subjetiva das escolas.

Pode-se dizer também que, em nosso tempo histórico, jovens, crianças e adultos estão mais conectados a equipamentos que facilitam a circulação rápida de informações. Desde os brinquedos eletrônicos até os computadores, as formas de ensino tradicionais dividem espaço com essa realidade informatizada que atrai a atenção dos estudantes, convocando-os para um raciocínio bem mais rápido e preciso. Diante dessa tecnologia toda, os métodos de ensino e de aprendizagem adotados pelas escolas exigem novos formatos e estratégias, colocando tanto professores quanto alunos diante do desafio de reinventar as relações em sala de aula.

Mas não é somente no que se refere à estrutura e aos equipamentos que essa paisagem se transforma. Deleuze descreveu uma série de reformas que está em curso nas escolas:

as formas de controle contínuo, a avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade (Deleuze, 1992, p. 225).

Cabe, então, analisar como cada uma delas toma forma no contexto escolar brasileiro. Comecemos pelos processos de avaliação dos alunos. Hoje em dia, ao menos no ensino público fundamental, o estudante conta com a passagem quase imediata de uma série a outra. Mais do que submeter o aluno a uma bateria de provas e testes previamente agendados, a avaliação contínua, realizada a partir de metas e do acompanhamento direto sobre o seu desempenho, ganha a adesão de muitos professores.

Essa tendência estende-se para outras etapas da escolarização. Nas universidades, por exemplo, é comum acontecer que, logo no início do curso, o estudante receba esclarecimentos sobre o resultado que deve apresentar ao final de certo período (um texto, uma pesquisa, um relatório) e, no decorrer das aulas, ele é acompanhado na elaboração e apresentação desse material. É interessante notar que muitos alunos, acolhendo esse método de avaliação, pedem sistematicamente para que o controle do tempo e das atividades seja realizado de maneira rigorosa por parte do professor. Assim, as antigas formas de vigilância, realizadas por meio de provas, notas e exames, vêm sendo substituídas gradativamente por um controle contínuo que incide sobre o desempenho geral do aluno. Este passa então a ser monitorado durante toda a sua trajetória escolar.

Uma outra mudança a ser analisada, diz respeito ao fato de que, desde o século XX, o professor já não é o agente exclusivo que dirige o processo de ensino. Ele tem a possibilidade de recorrer a uma equipe de diferentes profissionais como os pedagogos, os psicólogos, os médicos e os assistentes sociais que também colaboram no acompanhamento do desempenho do aluno, por vezes investigado e intervindo em sua vida privada. Jacques Donzelot, em seu livro “A Polícia das famílias”, já esclarecia:

A partir do final do século XIX surgiu uma nova série de profissões: os assistentes sociais, os educadores especializados, os orientadores. Todas elas se reúnem em torno de uma bandeira comum: o trabalho social. Essas profissões encontram-se, atualmente, em plena expansão. Bastante marginal no início do século, o trabalhador social, progressivamente, substituiu o professor primário na missão civilizadora do corpo social e as pesquisas de opinião atestam que herdou, deste último, seu prestígio (Donzelot, 1986, p. 91).

O crescimento e expansão dos profissionais que atuam junto a questões de cunho social, tal qual assinalado por Donzelot, nos ajudam a compreender como a educação estendeu seu raio de intervenção, extrapolando os limites espaciais da escola e atuando mais diretamente em “parceria” com outras instituições como a família, o Estado, a medicina social e a justiça, com vistas a acompanhar mais diretamente o desenvolvimento infantil e a inserção do jovem no mercado de trabalho. Pode-se dizer, então, que cada um desses trabalhadores sociais tende a ocupar uma posição de controle nessa rede multifacetada.

Mas, ao contrário do que se possa pensar, tais mudanças não acontecem por simples imposição. Analisando com cuidado, será possível notar que elas foram amplamente desejadas e até solicitadas pelo conjunto da população que, aos poucos, foi reconhecendo sua crescente dificuldade de educar crianças e jovens diante da ausência de um regime disciplinar que marca essa transformação histórica em direção à sociedade de controle, analisada por Foucault e Deleuze.

Este último ainda destaca que os limites temporais da escolarização (que outrora culminavam na formação universitária) foram ampliados. Em nossos dias, sob o nome de “qualificação permanente”, o trabalhador é convocado a continuar seus estudos enquanto estiver exercendo uma profissão. E, por outro lado, o estudante é sistematicamente solicitado a pensar sobre seu futuro profissional. Cursos técnicos, de aperfeiçoamento e de pós-graduação estendem-se pela vida inteira desse novo agente: o estudante-trabalhador. Sobre isso, Deleuze comenta:

Pode-se prever que a educação será cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional – um outro meio fechado –, mas que os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno ou o executivo-universitário. Tentam nos fazer acreditar numa reforma da escola, quando se trata de uma liquidação. Num regime de controle nunca se termina nada (Deleuze, 1992, p. 216).

Nota-se, então, que os dispositivos de controle, amplamente disseminados nesse meio social transformado e aberto, têm cooperado para produzir novos componentes de subjetivação que, por sua vez, participam da mudança dessa nova paisagem escolar e subjetiva. Colocando para o indivíduo a exigência de uma “mobilização total” (Gorz, 2005) para o trabalho e para o estudo, essas atividades quase que totalizam o seu tempo e se estendem por toda a vida. Nesse sentido, percebemos também o quanto a existência tem se tornado um objeto de investigação e de intervenção por parte das diferentes áreas de conhecimento que estão, direta ou indiretamente, associadas à instituição escolar.  

É nesse cenário mutante que nos deparamos com um outro tema que, no nosso entender, é bastante relevante: a formação de professores. A educação pode ser compreendida como um campo profissional que atua majoritariamente na esfera do que alguns autores, como Negri e Hardt (2001) denominam como “trabalho imaterial”. Nesse tipo de atividade, o resultado do trabalho não culmina na fabricação de um objeto palpável ou durável, mas sim na produção e disseminação de conhecimentos, informações, relações sociais, contatos e afetos. Assim, por envolver-se com a produção e transmissão de conhecimentos, o professor atua majoritariamente na esfera do trabalho imaterial afetivo. Isso porque ele passa a maior parte do seu dia interagindo com outras pessoas e depende da qualidade desse contato para realizar suas atividades profissionais. É a partir dessas relações afetivas que os objetivos do seu trabalho, que consistem em maximizar os processos de aprendizagem, podem ser alcançados.

André Gorz (2005) afirma o quanto as atividades ligadas ao trabalho imaterial repousam sobre a “implicação subjetiva” daqueles que nelas estão envolvidos. Para este autor, as habilidades requeridas no trabalho imaterial não são conquistadas apenas a partir de cursos técnicos ou universitários. Espera-se desse profissional o “discernimento, a capacidade de enfrentar o imprevisto, de identificar e de resolver os problemas” (2005, p. 18). Cabe dizer, então, que é somente a partir da disponibilidade afetiva e intelectual dos profissionais (professores e técnicos), mas também de seus clientes (alunos, pais e comunidade) que a atividade educacional pode ser concretizada. Isso coloca seus agentes diante de um impasse político: afinal, todo o processo depende da participação direta dos envolvidos na construção de um vínculo afetivo e desejante com a aprendizagem.

Uma outra variável a ser considerada nesse tipo de atividade consiste em mostrar que o trabalho imaterial não acontece somente a partir da formação técnica, mas envolve também uma série de saberes que são construídos no cotidiano relacional e afetivo dos professores. Trata-se, segundo Gorz, de um tipo de saber muito específico que faz parte da “cultura do cotidiano” (p. 19) e que não é obtido na formação técnica dos cursos de magistério, nem dos cursos universitários. Obviamente, a formação acadêmica é primordial para a atuação do futuro profissional. Mas, de acordo com esse autor, ela não é suficiente.

Na sala de aula, o professor pode deparar-se com situações imprevisíveis que exigem dele soluções inéditas e que não dependem de um saber técnico. Assim, a maneira como cada professor irá agir diante dos afetos, das dificuldades e das situações imprevisíveis que emergem na relação com os alunos não podem ser simplesmente prescrita. Há aí uma espécie de aventura que tem como pré-requisito a implicação subjetiva com as atividades de acolher, ensinar e orientar os alunos à medida que as dificuldades aparecem e tomam forma. Mas envolve, também, a abertura para aprender com eles e construir coletivamente outros caminhos possíveis.

Cabe salientar, a essa altura, que os diferentes afetos, emoções e sensações que são experimentados durante os encontros vividos em uma sala de aula nem sempre colocam os professores e os alunos na vizinhança de encontros potencializadores que os tornam mais implicados com a aprendizagem. Ao contrário, alguns dos afetos vividos nesse contexto podem ser destrutivos e até marcados pela violência – que se tornou comum nas notícias de jornais. E talvez, nesse ponto, possamos compreender a queixa recorrente dos professores em relação à expectativa frustrada de uma disciplina e de uma atitude mais respeitosa que já não se fazem tão presentes nas salas de aula como outrora. A frustração e a sensação de impotência ganham visibilidade nos índices de stress, depressão e problemas emocionais que essa categoria profissional apresenta na atualidade.

E, por outro lado, também é preciso tomar em apreciação a queixa dos alunos em relação a um tipo de ensino que, uma vez desprovido de um sentido contextualizado que o sustente, acaba sendo abandonado ou mesmo atacado, visto que o interesse subjetivo de investir no processo escolar é ínfimo.

É nesse amplo leque de possibilidades afetivas que o trabalho imaterial, em sua vertente afetiva, torna-se mais evidente. Atentar para as experiências vividas no cotidiano da escola acaba sendo de primordial importância para a atividade do educador, pois ela serve como uma espécie de alerta sobre a variação da sua potência relacional e afetiva – as quais, no contexto do trabalho imaterial, ganham evidência e importância.

Consideramos, então, o quanto a sala de aula tornou-se, hoje, uma aventura que, para além do preparo técnico tão importante na formação profissional, convida os seus agentes sociais a inventarem novas relações e novas maneiras de produzir afeto e conhecimento. As dificuldades emergentes nesse novo contexto não são poucas ou simples. Mas, ainda assim, podemos dizer que elas cumprem uma função importante e colaboram para colocar professores e alunos numa espécie de tensão diante do novo, do desconhecido. Essa tensão praticamente os obriga a inventar novas formas de relação com o outro, com a vida, com o conhecimento.

E, se falamos aqui de invenção, faz-se necessário ressaltar que ela não envolve um exercício fácil nem simples à medida que precipita o contato com a diferença de valores, de velocidade, de desejos e de concepções de mundo. Essa diferença tende a gerar conflitos e polêmicas nem sempre fáceis de serem vividos.

Por fim, questionamos: Como os requisitos exigidos para o exercício do trabalho imaterial (que envolvem a produção de conhecimento, a subjetividade e a potência afetiva do profissional) se cruzam com o cenário de controle que analisamos no início deste texto? Pode-se dizer que promover a implicação subjetiva de alunos e professores no processo de aprendizagem, tal qual considerado por Gorz (2005), não é uma tarefa que possa ter garantias de realização e muito menos de resultados.

Trabalhar na área da educação hoje requer, antes de tudo, a disponibilidade para construir sentidos coletivos do que é “aprender” e do que é “ensinar”. Isso demanda o envolvimento de cada agente num exercício político de questionamento e de problematização que pode vir a promover a construção de uma outra escola possível. A disponibilidade para experimentar outras metodologias de ensino que contemplem os interesses e a realidade cotidiana de alunos e de professores torna-se indispensável nesse processo.

Desta maneira, já caminhando para uma síntese parcial das considerações sobre a educação na sociedade de controle, cabe dizer que, se como dito por Foucault, há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à disciplina, encontramo-nos num tempo histórico que exige a reinvenção das maneiras de produzir e compartilhar os conhecimentos. Assim, diante dessa complexa configuração de forças díspares que se ensaia numa paisagem escolar mutante, o maior desafio está em fortalecer os agentes da educação para que eles possam acolher as novas aventuras que emergem nas salas de aula e, assim, investir afetiva e intensivamente na invenção de novos rumos para os processos de aprendizagem.

1 Referencias

Ariès, Philippe (1981). A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S/A.

Deleuze, Gilles (1992). Conversações. São Paulo: Editora 34.

Deleuze, Gilles (1996). O Mistério de Ariana. Lisboa: Veja.

Donzelot, Jacques (1986). A Polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal.

Foucault, Michel (2003). Ditos e escritos: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Gorz, André (2005). O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume.

Negri, Antonio & Hardt, Michael (2001). Império. São Paulo / Rio de Janeiro: Record.