Considerações acerca das Contribuições Teórico-Metodológicas do Construcionismo Social para Estudos e Intervenções em Saúde do Trabalhador:

Some considerations about the contributions that social constructionism can offer to the study and intervention in workers` health

  • Alexandre Bonetti Lima
  • Maria Cristina Moreno Matias
Neste artigo, buscamos tecer considerações sobre as contribuições que o Construcionismo Social pode oferecer aos estudos e intervenções em saúde do trabalhador. O artigo inicia-se com um breve percurso por algumas das principais teorias críticas sobre a relação saúde e trabalho para, a seguir, traçar considerações sobre o tema. Para tanto, apresentamos também uma pesquisa realizada junto a portadores de LER/DORT como ilustração da importância de se atentar aos processos de produção de sentidos no âmbito das relações saúde e trabalho. Nela (na pesquisa), pudemos desfiar uma historicidade de sentidos sobre a LER e o conviver com ela, como expressão das interanimações dialógicas travadas pelos portadores nos seus cotidianos (incluindo-se neles também os pesquisadores), cujos complexos discursivos ora combatiam-se, ora negociavam, ora acomodavam sentidos distintos, promovendo, tal qual um caleidoscópio, novas formas discursivas em tempo e novas materialidades; promotoras, por sua vez, de novas perspectivas e condições de possibilidades para ação na vida sendo vivida.
    Palavras chave:
  • Construcionismo Social
  • Discurso
  • Produção de Sentidos
In this article, we search to weave some considerations about the Social Constructionism contributions to research and intervention on workers` health. The article begins with a brief passage over some of the main critical theories on health and work, and then it traces some considerations on this theme. We also present a research with workers who have got Repetitive Strain Injuries as an illustration of the importance of studying the process of production of senses in the scope of the relations between health and work. In this research, we could disentangle a historicity of the senses about repetitive strain injuries and coexisting with them, as an expression of the dialogic interanimations that the carriers of this disease construct in their everyday life (which also includes the researchers), whose discursive complexes were sometimes fighting, sometimes negotiating, sometimes adjusting different senses; promoting new discursive forms in time, as well as new materialities which promote new perspectives and possibilities of action in their lives.
    Keywords:
  • Social Constructionism
  • Discourse
  • Production of Meaning

1 Introdução

Este artigo busca refletir sobre as contribuições que o Construcionismo Social pode oferecer aos estudos em saúde do trabalhador. Inserindo-se no quadro que Spink (1993) denomina como um amplo movimento nas teorias do conhecimento nas Ciências Sociais, no qual o que está em pauta é a compreensão da teia de sentidos que sustenta e confecciona materialidades ao cotidiano, o Construcionismo Social nos oferece importantes possibilidades metodológicas para compreender a dinâmica dos processos de produção de sentidos no campo da saúde do trabalhador.

Antes de enveredarmos por considerações sobre o Construcionismo Social, porém, iniciaremos com um breve percurso por algumas das principais teorias críticas sobre a relação saúde e trabalho, procurando, com isso, acompanhar um movimento de desconstrução gradativa – mas, ainda inacabada – da hegemonia das concepções tecnicistas da Engenharia de Segurança e da Medicina do Trabalho.

2 Percorrendo algumas Teorias Críticas sobre a Relação Saúde e Trabalho

Conquanto os avanços nas últimas décadas na elaboração de modelos de investigação e intervenção para redução das incidências de acidentes e doenças de trabalho, os problemas persistem, pois imperam, ainda de modo hegemônico, as referências clássicas tanto para definir os direitos previdenciários dos trabalhadores, só autorizados com a identificação dos nexos causais da enfermidade ou acidente com o trabalho realizado, como nos modelos de intervenção nos ambientes de trabalho; referências que, por sua vez, se pautam, como já dito acima, num modelo tecnicista que determina a elaboração de quadros epidemiológicos a partir de uma epidemiologia de base positivista. As limitações desse modelo, segundo Lima, Araújo e Lima (1998) são:

1) o agnosticismo voluntário (limita-se a conhecer as relações de causa e efeito mais imediatas); 2) a fatoração dos riscos e das condições de trabalho, levando a uma síntese meramente somatória de diferentes fatores de risco, sem que se saiba como eles interagem entre si e com o trabalhador; 3) os princípios de explicação mono e multicausais, que também são insuficientes para esgotar a profundidade dos processos sociais da gênese da doença e a determinação hierárquica e qualitativa das diferentes causas; finalmente, 4) a concepção desenvolvimentista de saúde, vista como um estado de equilíbrio a ser atingido, graças à eliminação progressiva dos agentes patológicos, facultada pelo desenvolvimento técnico (p. 20).

Diferentemente disso, alguns autores explicam o processo saúde-doença tendo em vista as determinações históricas e sociais nas quais se insere. Dentro deste grupo, destacam-se os autores da epidemiologia social, como Laurell, Noriega, Soriano, entre outros, que utilizando referencial marxista, superam o estreitismo da epidemiologia positivista e trazem para este campo de estudos uma perspectiva mais ampla do processo saúde-doença no mundo do trabalho, localizando-o num texto sócio-econômico datado historicamente: o sistema capitalista. Este se sustenta através da produção da mais valia, o que implica num processo de consumo da força de trabalho, no qual escapa do trabalhador qualquer possibilidade de controle sobre o sistema produtivo, cujo único fim é o aumento da produtividade e do lucro. É um trabalho alienado, portanto, cujas consequências para a saúde dos trabalhadores são particularmente perversas nos países de industrialização tardia, onde a correlação de forças entre capital e trabalho é extremamente desigual, restando a este um reduzido poder de barganha e reivindicação contra os donos dos meios de produção.

Os autores da epidemiologia social, contudo, optam por focalizar, em seus estudos, o processo saúde-doença no âmbito coletivo. Embora contemplem a investigação empírica como método, procuram definir padrões de desgaste da força de trabalho mediante o perfil patológico. A pessoa1, portanto, ocupa um espaço bastante reduzido nesta perspectiva. Toda a diversidade e singularidade das estratégias e das relações pessoais com o processo laboral, os sofrimentos – combustível das estratégias de defesa e ou dos prazeres sublimatórios (Dejours e cols., 1994) –, e os sentimentos de penosidade – combustível de ações adaptativas patologisantes e ou de superações e realizações profissionais (Sato, 1993) – são praticamente ignorados. A ênfase é dada quase exclusivamente às generalizações das categorias coletivas.

De nossa parte, embora defendamos a importância de localizar o processo saúde-doença num âmbito mais amplo – nas contradições de um sistema sócio-econômico historicamente datado – entendemos que é nas singularidades de cada pessoa que o processo saúde-doença se materializa. Necessário, então, enveredarmos por caminhos teórico-metodológicos que simultaneamente contemplem, como elementos indissociados, as vivências singulares do processo saúde-doença e o entorno sócio-histórico que orienta as organizações, divisões e relações de trabalho nas quais estão inseridos os homens e mulheres que trabalham. Entorno este, particularmente agravado nos tempos recentes, com a entrada agressiva de novas técnicas de gestão e tecnologias de produção, responsáveis pelo acelerado enxugamento de postos de trabalho nos mais diversos ramos de atividade que, acompanhadas por medidas políticas neoliberais de flexibilização dos encargos e dos vínculos empregatícios, foram sem dúvida responsáveis pelo agravamento nas condições de saúde dos(as) trabalhadores(as), cada vez mais desamparados(as) e expostos(as) a níveis brutais de exploração.

Seguindo o caminho das concepções críticas sobre saúde do trabalhador(a) notamos, como diz Sato (1995), que “não é de hoje que se busca construir um conhecimento sobre como o trabalho pode afetar a saúde a partir do próprio trabalhador” (p. 48). A primeira experiência de pesquisa nesse sentido a causar impacto na comunidade científica foi desenvolvida pelo movimento operário italiano no final da década de 1960, conhecida como Modelo Operário (Odone e cols., 1986, apud Sato, 1995). Para o Modelo Operário, os(as) trabalhadores(as) são detentores(as) de um conhecimento de trabalho que é construído nas experiências cotidianas na fábrica – ou qualquer outro local de trabalho – e, portanto, deve ser privilegiado como base de luta pela prevenção de sua saúde.

São quatro os princípios norteadores do Modelo Operário: a não delegação, a experiência ou subjetividade operária, o grupo homogêneo e a validação consensual. Partindo desses princípios, “o processo parte da observação espontânea realizada pelos operários com respeito a suas condições de trabalho e que existe uma experiência acumulada primária depositada no grupo” (Laurell, 1984: 68). Trabalha-se com os grupos homogêneos de trabalhadores(as) objetivando-se extrair os conteúdos da experiência coletiva e não somente individual. Referindo-se a tais grupos, diz Mallet (1988): “o grupo operário homogêneo é caracterizado por uma mesma situação geográfica dentro do local de trabalho, uma mesma posição na organização de trabalho e exposição aos mesmos fatores de risco. Ele é a unidade mínima do coletivo de trabalhadores” (p. 59).

Depois do levantamento de informações por meio do grupo homogêneo, elas serão categorizadas segundo quatro tipos de riscos:

O primeiro grupo compreende os fatores presentes também no ambiente em que o homem vive fora do trabalho (nos locais de habitação): luz, barulho, temperatura, ventilação e umidade (...) O segundo grupo compreende os fatores característicos do ambiente de trabalho: poeira, gases, vapores e fumaça. Por exemplo: poeira de sílica, de amianto, vapores de benzeno, gás de sulfeto de carbono (...) O terceiro grupo refere-se ao esforço físico no trabalho (...) O quarto grupo de fatores nocivos compreende cada condição de trabalho, além do trabalho físico, capaz de provocar stress, por exemplo: monotonia, ritmos excessivos, ocupação do tempo, repetitividade, ansiedade, responsabilidade, posições incômodas etc. (Odone e cols., 1986, apud Sato, 1995: 23-24).

Em seguida, essas informações categorizadas são analisadas por técnicos especialistas, que as quantificam para, então, serem discutidas e validadas consensualmente pelo coletivo de trabalhadores e trabalhadoras.

Laurell e Noriega (1989) questionam a proposta metodológica do Modelo Operário, dizendo:

Identifica-se que a concepção que se perfila mais claramente nos textos é a subjetividade-experiência operária, como conhecimento latente acumulado, resultado do viver e atuar numa determinada realidade, cujo portador é o grupo homogêneo, ou seja, a coletividade que compartilha dessa realidade. (...) Não há, porém, uma discussão pormenorizada sobre a natureza da experiência-subjetividade operária, sobre sua construção, nem sequer sobre sua relação com as condições objetivas de trabalho. (p. 88).

A crítica que fazem direciona-se para a contradição de base que existe no Modelo Operário o qual se, por um lado, enfatiza o saber do(a) trabalhador(a) (experiência-subjetividade operária), por outro, interpreta este saber através de categorias de uma ciência formal de base positivista (os grupos de risco).

Em que pesem as críticas realizadas ao Modelo Operário, é preciso reconhecer a sua relevância para o avanço dos estudos sobre saúde nos ambientes de trabalho, uma vez que, a partir dele, abriu-se um espaço importante, no âmbito da ciência, para a voz do(a) trabalhador(a) e seu conhecimento. Com a abertura deste espaço, entretanto, novos problemas emergiram para os(as) pesquisadores(as) e os(as) profissionais de saúde, a saber: quais categorias utilizar para interpretar o saber operário? Como opera a lógica do conhecimento prático?

Procurando alcançar respostas para superar estes novos problemas, Grimberg (1988), ao investigar o saber dos(as) trabalhadores(as) gráficos, procura compreender a construção social do processo saúde-doença nesta categoria. Afirma:

Os processos saúde-doença são objeto de uma construção social que se expressa em modos de perceber, categorizar e significar a saúde e a enfermidade, e em uma série de práticas em torno das mesmas. E por sua vez, esta construção implica sobretudo uma articulação de modos de representar o trabalho, isto é, esta construção supõe determinados modos de relacionar o trabalho e a saúde-doença. Isto conduz a propor que estes saberes e práticas não foram gerados só por especialistas (médicos e técnicos), nem são atributos exclusivos deles. Pelo contrário, os trabalhadores foram e são sujeitos ativos nesta construção (apud Sato, 1995: 20).

Estudos como os de Grimberg procuram superar as contradições apontadas no Modelo Operário utilizando-se da Teoria das Representações Sociais. Elaborada por Serge Moscovici na década de 1960, as representações sociais são definidas como formas de conhecimento do senso comum, compartilhadas e elaboradas socialmente, com o fim de apreender e comunicar as experiências do cotidiano. Segundo o autor, a motivação que no dia a dia temos para a construção das representações sociais é a necessidade de tornar as experiências estranhas em familiares. Desta forma, a não familiaridade poderá ganhar um sentido e ser apreendida por quem a vivencia, bem como ser comunicada ao entorno social.

Além de Grimberg, inúmeros outros autores desenvolveram estudos importantes sobre saúde do trabalhador utilizando-se das representações sociais como aporte teórico. Destaque-se Sato (1993, 1995), que investigou as representações sociais do trabalho penoso em motoristas de ônibus urbanos; Duarte (1986), que buscou apreender as representações das doenças dos nervos entre diferentes segmentos da classe trabalhadora; Harrison (1988), que estudou as representações do risco entre operários; Boltanski (1979), que pesquisou as representações da doença em diferentes classes sociais; Guareschi e Possamai (2007), que investigaram as representações sociais do acidente de trabalho entre trabalhadores dos ramos mobiliário e da construção civil. Além destes, outros tantos trabalhos foram e vem sendo igualmente importantes no processo de rompimento com os dogmas ascéticos do positivismo tecnicista que ainda impera hegemônico no campo da saúde do trabalhador. Eles contribuem para que se superem os paradigmas que dicotomizam a realidade em objetiva e subjetiva, e se a entenda como construção dinâmica e indissociada. A realidade, dizem Berger e Luckmann (1994), é social e intersubjetivamente construída.

3 Das Contribuições do Construcionismo Social

Consonante com esta concepção da construção do conhecimento e da realidade, o Construcionismo Social oferece importantes possibilidades metodológicas para compreender a dinâmica dos processos de produção de sentidos sobre o tema saúde do trabalhador. Para tanto, parte de uma definição de conhecimento que rompe com a concepção representacionista da verdade, ou seja, com a noção de verdade como correspondência com a realidade (Rorty, 2005). Como diz Rorty na introdução de seu livro Verdade e Progresso (2005):

Os ensaios deste volume sustentam que a filosofia progredirá melhor sem as noções de “natureza intrínseca da realidade” e “correspondência com a realidade”. (...)  Quando (William) James disse que “o verdadeiro é o bom de acordo com a crença”, ele foi acusado de confundir justificação com verdade, relativo com absoluto. De fato, James teria feito melhor se houvesse dito que frases como “o bom de acordo com a crença” e “em que é melhor acreditarmos” podem ser substituídas por “justificado” mais do que por “verdadeiro”. Mas ele poderia ainda ter acrescentado que nós não temos outro critério para a verdade além da justificação, e que a justificação e o melhor-para-acreditar vão depender do público (e da série de candidatos à verdade) tanto quanto a bondade depende dos propósitos e a justiça, das situações. Tendo admitido que “verdadeiro” é um termo absoluto, suas condições de aplicação serão sempre relativas. Pois não existe tal coisa como uma crença sendo justificada sans phrase – justificada de uma vez por todas – pela mesma razão que não existe uma crença que possa ser considerada indubitável agora e sempre (p. VIII-IX).

Não obstante as semelhanças no âmbito epistemológico, o Construcionismo diferencia-se da Teoria das Representações Sociais na medida em que rompe radicalmente com qualquer perspectiva representacional e cognitivista, isto é, rompe com a idéia do conhecimento composto por representações internas, mesmo que sejam estas construídas intersubjetivamente como é o caso das representações sociais. Seu campo de investigação é o discurso, pois, como diz Potter (1998):

A realidade se introduz nas práticas humanas por meio das categorias e das descrições que formam parte dessas práticas. O mundo não está categorizado de antemão por Deus ou pela Natureza de uma maneira que todos nos vemos obrigados a aceitar. Se constitui de uma ou outra maneira na medida em que as pessoas falam, escrevem e discutem sobre ele. (p. 130).

Tal conclusão exige uma concepção de discurso que o entenda não como representação ou tradução de algo (objeto, realidade, fato etc), mas como ação social. Decorre daí que separações entre ações sociais e palavras, entre real (concreto) e significação do real (palavras que o representam) são descartadas, pois discurso é ação, ação que produz sentidos, verdades, dizibilidades, visibilidades, materialidades ao mundo, às coisas, aos eventos e a cada um de nós em meio a tudo isso.

Tal definição, por sua vez, segue a perspectiva de Bakhtin, autor particularmente importante para apoiar a compreensão do discurso como ação social. Para ele, o processo discursivo é sempre dialógico. Sobre isso, afirma:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se de uma orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa (1988: 88).

O autor ensina, então, que toda palavra, todo discurso é sempre perpassado pela(s) palavra, pelo discurso de outrem; ou seja, toda pessoa, mesmo quando em momentos de solidão reflexiva, “pensando com seus botões”, ou escrevendo em seu diário íntimo mensagens para si mesma, considera, conscientemente ou não, o discurso de outrem para confeccionar o seu. Ela é, assim, sempre respondente. Como diria Bakhtin (1988):

Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que dela pode se afastar (p. 88).

Todo discurso configura-se, então, como uma trama polidiscursiva e intertextual, acentuando historicidades, na medida em que constitui acréscimos (ou decréscimos) às cadeias de comunicação existentes. Ele se processa nas contínuas interanimações dialógicas (e, logo, sociais e intersubjetivas), mediante relações face a face e ou mediadas pelos substratos das mídias (Thompson, 1995, 1999), como um fluxo permanente de atos de fala ora em conflitos, ora em negociações, ora em solidariedades, ora em contradições, no qual sentidos e materialidades vão se configurando e reconfigurando em cada tempo e lugar (Lima, 2007).

Contemplar o discurso como entidade performática, ou seja, como um tipo de prática social requer ainda, segundo Fairclough (2003), enveredar por questões que dizem respeito às relações de poder, as quais o levam para o terreno das lutas hegemônicas, pois “buscar hegemonia”, diz ele, “é um modo de buscar universalizar sentidos particulares a serviço do alcance e manutenção da dominação” (p. 58).

Conceito originalmente desenvolvido pelo pensador italiano Antonio Gramsci, a hegemonia caracteriza-se por um equilíbrio instável e assimétrico entre uma classe ou categoria social sobre outra(s), mas que é sempre parcial e temporariamente alcançado, nunca definitivo. Para mantê-lo (o equilíbrio), a categoria dominante articula-se em alianças e integra, mediante algumas concessões, as subalternas para o seu campo de domínio (Gruppi, 1991). Tal processo deve ser continuamente alimentado e realimentado para não se romper, visto serem as relações de dominação/subordinação foco constante de lutas envolvendo um amplo conjunto de agências sociais, com seus variados interesses – econômicos, políticos, jurídicos, culturais, entre outros (Thompson, 1995; Semeraro, 1999).

A referência ao conceito de hegemonia tenciona romper com visões estruturalistas que concebem as agências de poder como capazes de interpelar pessoas e coletividades de modo a permanecerem integralmente sob seu jugo. Se não há como duvidar das evidências dos constrangimentos que as agências de poder impõem às pessoas (em geral de modo bastante sutil e incorpóreo, como diria Foucault), desenhando limites normativos e condições de possibilidades na vida social, tampouco pode-se afirmar que as ações e práticas das pessoas nos seus cotidianos são completamente determinadas.

Essas relações tensas e processuais entre pessoa/agência social estão presentes na concepção bakhtiniana de dialogia, na qual o autor desenha o campo das ações e interações humanas como extremamente dinâmico, e orientado pelas presenças simultâneas da singularidade das consciências falantes – e ouvintes, compreensivas e compreensíveis – e das normatizações e regulamentações – formal e informalmente – estabelecidas nos cotidianos de uso. A relação pessoa-agência, assim, materializa-se em função de que, embora use dos repertórios de normatização existentes – estruturados-estruturantes – para se inserir e dialogar no dia a dia da vida corrente, cada pessoa utiliza-se destes repertórios segundo o lugar no qual sócio-historicamente está posicionado, e em cada um desses lugares vê e lida com suas (con)vivências através de lentes específicas (Lima, 2007). Gramsci apontava esses lugares como compostos pelo que denominava complexos ideológicos (Fairclough, 2001). Explicando melhor, para esse autor o mundo subjetivo das pessoas vai sendo constituído segundo a posição social que ocupa em cada momento, posição que é delineada por correntes ideológicas que lhe apresentam os instrumentos e as lentes a partir das quais dá forma e sentido às experiências que (con)vive. Tais correntes ideológicas povoam mais intensamente os campos que atraem lutas hegemônicas mais acirradas e neles organizam-se conflitante ou complementarmente, cruzam-se ou orientam-se em linhas paralelas, formando como que um caleidoscópio no qual se mesclam discursos oriundos dos mais diversos tempos e lugares, configurando sempre novos conjuntos discursivos a cada novo movimento definido sócio-historicamente em meio às tensões, negociações, conflitos, lutas hegemônicas ocorridas no dia-a-dia da vida sendo vivida (Lima, 2007).

A dinâmica destas lutas hegemônicas presentifica temporalidades distintas nos discursos que se interanimam. Para Mary Jane Spink (1999, 2003), há três temporalidades que os abarcam, as quais se materializam de forma indissociada nas práticas discursivas: o tempo longo, o tempo vivido e o tempo curto. O primeiro, o tempo longo, diz respeito à “construção social dos conteúdos culturais que formam os discursos de uma dada época” (2003: 15). Eles se referem aos discursos instituídos das instituições, aos discursos morais, religiosos, às grandes narrativas enfim, cujo processo de transformação é lento, embora ocorra. O tempo vivido “é o tempo de ressignificação desses conteúdos históricos a partir dos processos de socialização. É o tempo da vida de cada um de nós, sendo, portanto, o filtro que nós utilizamos para pensar, usar e falar sobre os repertórios do tempo longo” (idem: 15). E o tempo curto é o tempo do aqui e agora, das interanimações dialógicas do dia a dia no qual se presentificam e se ressignificam os repertórios dos tempos longo e vivido. É também o tempo em que repertórios novos e inéditos são continuamente criados, particularmente num período histórico no qual impera a alta velocidade com que inovações tecnológicas são lançadas no mercado e comunicadas, através dos meios de comunicação midiática, às populações localizadas nas mais diversas partes do mundo.

No biênio 1993/1994, uma experiência de trabalho da qual tive oportunidade de participar exemplifica de modo ilustrativo as considerações que vem sendo desenhadas neste artigo até o momento. Neste período, participei, com Fábio de Oliveira, do Programa de Saúde dos Trabalhadores da Zona Norte (PST-ZN), na cidade de São Paulo, no qual coordenávamos grupos compostos por portadores(as) de lesões por esforços repetitivos (LER), oriundos(as) de ramos de atividades variados (bancos, metalurgias, comércio, entre outros), cujo objetivo era proporcionar discussões em torno das relações LER e processos de trabalho, e as implicações desta afecção na vida cotidiana de cada um(a). Os grupos ocorriam em 5 ou 6 encontros, uma vez a cada semana, com duas horas de duração. Com isso, tivemos oportunidade de desfiar a historicidade do processo de construção de sentidos, mediante os(as) lesionados(as), sobre a enfermidade e a convivência com ela, a qual foi dividida em três períodos distintos, mas interligados na história de cada um(a): Percepção dos sintomas da doença; Descoberta do diagnóstico e os discursos de desconfirmação; Discursos confirmadores, ressiginificação e repotencialização da vida cotidiana. O primeiro período foi marcado pelas sensações iniciais dos sintomas da LER sem que os(as) lesionados(as) soubessem ainda do diagnóstico. Nesse momento, os(as) lesionados(as) depoentes ancoravam os sintomas da afecção em repertórios interpretativos relativos a suas histórias de vida até então, ou seja, aos seus processos de socialização, como se pode ver nos seguintes depoimentos:

Eu achava que tinha problema no coração por causa do meu pai que tinha também, e a LER dá uma sensação de dor e formigamento né, que nem doença do coração. Mas eu tirava a pressão e não dava nada. Então eu achei que tinha câncer por causa da dor né, e eu ia no médico e ele falava que eu não tinha nada, que era mau jeito, e eu às vezes pensava que tava ficando louca, ou que ele (o médico) tava me escondendo alguma coisa séria.

Eu achava que ia morrer, que era câncer já avançado porque doía muito meu braço. Eu tive duas pessoas na família que morreram de câncer e eu achava que tinha também, porque quando alguém tem na família você tem mais chance de ter. Então eu fiquei desesperada, não conseguia dormir, chorava todo dia.

O segundo período foi marcado, inicialmente, pela descoberta do diagnóstico e, em seguida, pelo contato com discursos de desconfirmação. Se o diagnóstico foi responsável pelo alívio por descobrir enfim um nome para o fenômeno que o(a) acometia, distinto das graves patologias anteriormente suspeitadas, como exposto no depoimento a seguir:

Quando eu descobri que o que eu tinha era LER e não câncer, eu tive um alívio incrível, só faltava beijar o médico. Falei pra minha família e eles ficaram super felizes e aliviados também. Eu não sabia direito o que era LER, mas não matava né... e o médico falou que se eu seguisse o tratamento direitinho eu ia me curar.

Com o tempo, na medida em que perduravam os sintomas, e a regressão se mostrava lenta, numa velocidade bastante diferente da temporalidade dos processos de produção, o alívio da descoberta do diagnóstico foi sendo substituído pela agonia da exposição a discursos desconfirmadores da intensidade e gravidade do quadro patológico, bem como de sua relação com o trabalho realizado, como se pode ver nos depoimentos abaixo:

Tanto me disseram que as dores que eu sentia não podia ser da LER, que era coisa da minha cabeça, que eu achava que tava louca mesmo, que eu tava delirando. E eu fiquei com medo de ficar internada num hospício, então eu não falava quase do que eu sentia, das dores, com ninguém.

Eu achava que era algum problema do meu corpo (referindo-se aos sintomas da doença), uma fraqueza minha. Porque eles (médico da empresa e chefes do setor onde trabalhava) falavam que no meu setor não tinha ninguém doente, só eu, e que eu devia ser propensa a isso. Então eu me sentia culpada, que a culpa era minha, que trabalhar não era para mim.

O terceiro período foi marcado pelo encontro com discursos confirmadores da gravidade do quadro da doença e de sua relação com o trabalho realizado. Tal encontro se deu quando da chegada ao ambulatório do PST-ZN, em busca de atendimento médico; uma vez lá, eram encaminhados(as) às diversas atividades interdisciplinares voltadas para os casos de LER, entre elas, os grupos que coordenávamos. Em tais grupos, incitávamos à construção de ambientes de discussão e elaboração dos sentimentos dos(as) lesionados(as), de modo a superar uma vivência culpabilizante e individualizante do processo de adoecimento e cronificação do quadro da LER. Isto porque, inserido no grupo, cada lesionado(a) pôde ter acesso às experiências e vivências particulares dos(as) outros(as) e, ao mesmo tempo, ser ouvido e compreendido ao contar sua própria história com a afecção, facilitando, assim, a construção de um ambiente propício e instigador para a confecção conjunta de uma narrativa coletiva que materializasse e ressignificasse a doença – e o viver com ela – em seus diversos aspectos. Tal narrativa, por sua vez, por ser coletivamente construída pelos próprios(as) portadores(as), atuou como um referencial autônomo, respaldando-os(as) e os(as) fortalecendo para melhor arrostar as agressões cotidianas que vinham sofrendo.

O que é legal nos grupos é que todo mundo conta da sua vida com a doença e você vê que tem muita coisa parecida. Todo mundo tem problema de ser desmentido, de não acreditarem que você ta doente e te chamarem de vagabunda, ou que você ta com problema psicológico. E aí você vai no grupo e conta essas coisas e desabafa com todo mundo que tem o mesmo problema, e você fica mais forte, o grupo dá uma reforçada na sua idéia.

No processo de elaboração de dita narrativa sobre a LER, vale dizer ainda, os(as) lesionados(as), ao mesmo tempo em que ressignificavam a doença, ressignificavam a si próprios(as) nela, produzindo um estranhamento e passando a entender o texto no qual vinham vivendo não mais apenas como penoso e natural, mas injusto e passível de transformação.

Eu parei de me sentir culpada de ta doente, de não conseguir fazer as coisas, porque não era culpa minha, e eu nunca inventei dor nenhuma.

Eu fui na perícia (do INSS) e o médico me disse que ia me dar alta, que eu não tinha mais nada, tinha que voltar a trabalhar. Só que ele não sabia que eu tinha levado um gravador na minha bolsa. Aí eu disse: ‘Eu queria saber o nome do senhor e número do CRM’. Aí ele se assustou, aí eu mostrei o gravador pra ele e disse: ‘O senhor confirma minha alta?’ Ah, ele mudou na hora, começou a dizer que não era assim e tal e me deu mais tempo (de afastamento).

A possibilidade que se viabilizava de interagir e conversar com outros(as) lesionados(as) acerca de suas histórias com a LER, instigou o processo de confecção de uma narrativa comum de referência coletiva que fizesse ressonância e significasse, materializando de outra forma, o que vinham vivendo até então, ou seja, as dores e enfraquecimento no(s) membro(s) acometido(s), e a inserção num universo discursivo que as(os) culpabilizava pela aquisição da doença, bem como pela sua cronificação e permanência ao longo do tempo. O conjunto de discursos que tinham acesso no PST-ZN sobre a LER, localizava-a como doença relacionada ao trabalho, e sua cronificação devido à gravidade do quadro que se apresentava, desculpabilizando, então, o sujeito lesionado por viver tal situação. Somado a isto, todo um conjunto de informações relativas aos direitos cidadãos, era trazido em discussão, tornando possível a ressigificação da doença e de si mesmos com ela, bem como a reconstrução de novas formas de agir no dia a dia.

Depois que comecei a participar dos grupos e das atividades aqui no PST-ZN, e conhecer outras pessoas com LER com uma história parecida com a minha, eu fiquei mais forte. Porque eu já sabia o que eu tinha direitinho, sabia dos meus direitos. E isso foi bom porque eu pude dizer pra mim mesma e pros outros que eu tava doente de uma doença do trabalho, que tinha a ver com o trabalho que eu fazia, com a organização de trabalho. E aí eu não ficava mais me culpando, querendo me esconder de todo mundo porque eu tava doente.

4 Considerações Finais

O exemplo sobre os(as) lesionados(as) apresentado acima, é uma ilustração da importância de se atentar aos processos de produção de sentidos, como expressão das interanimações dialógicas correntes. Na dinâmica destas interanimações pode-se desfiar uma historicidade de sentidos que vai dando novas materialidades a LER e ao viver com ela, bem como a todo o conjunto de relações travadas no cotidiano da vida sendo vivida de cada um (trabalho, colegas de trabalho e patrões, médicos, amigos, familiares, entre outros), os quais abrem e fecham condições de possibilidades para perspectivas de ação no mundo. Nos diversos relatos e diálogos ocorridos ao longo dos encontros nos grupos com os(as) lesionados(as), visualizava-se, tal qual um caleidoscópio, conjuntos discursivos oriundos dos mais diversos tempos e lugares ora combatendo-se, ora negociando, ora acomodando sentidos distintos, promovendo, assim, novas formas discursivas em tempo e novas materialidades, portanto; promotoras, por sua vez, de novas perspectivas e condições de possibilidades para ação na vida sendo vivida.

Se o processo de culpabilização individualizante vivido pelos(as) trabalhadores(as) com LER, compõe, em verdade, um quadro ideológico já antigo de exploração do trabalho pelo capital (denominado, por Lima e Oliveira (1995), ideologia da culpabilização), presente, inclusive, na literatura científica de base positivista, ainda de bastante influência nos ambientes de trabalho, o Construcionismo Social mostra-se como um instrumento relevante metodológica e politicamente no sentido de empoderar trabalhadores e trabalhadoras em ações coletivas de transformação das penosas e indignas condições laborais nas quais se encontram, responsáveis pelo desencadeamento de inúmeros e graves casos de doenças e acidentes de trabalho neste país. Sobre isso, vale acrescentar que boa parte dos(as) lesionados(as) que participaram das atividades ambulatoriais do PST-ZN criaram e se filiaram à Associação de Portadores de LER, cujo mote era lutar coletivamente pela melhoria das condições de trabalho nas empresas, bem como pelos direitos trabalhistas e previdenciários dos portadores de LER.

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