Construindo suportes para o cuidado: produção de discursos de professores sobre a inclusão de crianças e adolescentes com deficiência1

Building scaffolding for care: Teachers’ discourse and the inclusion of children and adolescents with impairments

  • Paulo Franca
  • Silviane Barbato
A construção de conhecimentos se dá por meio de trocas dialógicas e é guiada pelo contexto sócio-histórico. Assim, pretendemos neste trabalho identificar nos discursos dos professores os significados construídos sobre a inclusão de alunos com deficiência. Doze Professores Escolares com mais de cinco anos de magistério participaram de entrevistas semi-estruturadas individuais que abordaram: percepções sobre o processo de escolarização, diagnóstico e tratamento, percepção sobre o trabalho dos professores hospitalares e processo ensino-aprendizagem. Os dados, gravados e transcritos, foram submetidos a análise temática dialógica. Os significados produzidos enfocaram os temas: a) diagnóstico; b) tratamento; c) desenvolvimento-aprendizagem.  Os Professores enunciaram significados denotando o embate entre modelos antigos e novos sobre o desenvolvimento dos alunos com distúrbios neuromotores. Os resultados indicaram que a relação entre os professores escolares e hospitalares contribui para a compreensão do processo de ensino-aprendizagem.
    Palavras chave:
  • Desenvolvimento humano
  • Construção de conhecimento
  • Inclusão
  • Reabilitação
  • Mediação
Knowledge construction is dialogically and socio-historically driven and guided. This article aims at identifying discourses used by school teachers around the inclusion of students with disabilities. Twelve school teachers with more than five years’ worth of experience were interviewed through a semi-structured tape recorded interview that focused on: students’ educational histories, their diagnosis and treatment, their follow-up by hospital teachers, their motor and locomotor abilities, and the teaching-learning processes they were involved in. The transcribed interviews were analyzed from a dialogical perspective. The analysis focused on these topics: a) diagnosis; b) treatment; c) development-learning processes. The classroom teachers built meanings out of a conflict between old and new views of the development of students with neuromotor disorders. As our results show, contact between hospital and school teachers contributed to the understanding of the learning process.
    Keywords:
  • Teachers
  • Impairments
  • School
  • Discourse

1 Introdução2

A perspectiva sócio-histórica da Psicologia tem procurado compreender as formas em que diferentes grupos e indivíduos se apropriam de novos conceitos e atividades, considerando as influências da história e da cultura no desenvolvimento humano e na aprendizagem (Vigotski, 1998; Wertsch, 1993; Lee & Smagorinksly, 2005).

Neste trabalho, enfocamos a construção de significados de professores sobre crianças e adolescentes com distúrbios neuromotores que não apresentam déficit cognitivo, matriculados em escolas inclusivas e acompanhados pelo Hospital Sarah da Unidade de São Luis, Maranhão (Brasil). Pensamos que os professores escolares ao começarem a trabalhar com essas crianças e adolescentes adentram uma diferente zona de desenvolvimento proximal que, possivelmente, contribuirá para a transformação de suas práticas pedagógicas com seus alunos.

Considerando que o conhecimento é construído com base em trocas dialógicas, que por sua vez possibilita a construção de condições de colaboração e a produção de novos significados e posicionamentos (Matusov, Smith, Candela & Lilu, 2007). Entendemos que tal processo acontece por meio da participação conjunta. Por meio das interações mediadas o professor hospitalar colabora com a construção de conhecimentos, visando à resolução de problemas, tendo em vista a aprendizagem que se orienta pela concepção de “scaffolding” (andaimes) (Bruner, 1975), construção de suporte para o trabalho do professor sobre o cuidado do outro, da atenção às necessidades educativas dos seus alunos (Vigotski, 2001; Pontecorvo, Ajello & Zucchermablio, 2005).

O conceito de andaime é entendido como sendo o suporte capaz de ajudar na construção do conhecimento que emerge da troca dialógica entre os pares e, no caso da nossa pesquisa, são os professores que buscam juntos meios e estratégias para atender às necessidades dos seus alunos. Nesse sentido os andaimes e suportes implicam que a aprendizagem se dá pela inclusão da ação dos sujeitos, como práticas sociais, onde está implícita a negociação social dos temas atualizados nos contextos situacionais inclusivas e dos objetivos sócio-educacionais. Assim, cabe a reflexão sobre o que os outros nos permitem fazer a partir do nosso próprio desenvolvimento potencial nas relações que construímos.

Devido às necessidades atuais de rápida democratização do processo de inclusão, tendo a maioria dos professores pouco conhecimento e formação pedagógica para lidar com as diferentes necessidades do ensino-aprendizagem, tornou-se imprescindível a realização de estudos sobre os significados que estão construindo sobre a inclusão de alunos com variadas necessidades especiais, em diferentes etapas da escolarização. Ball (2005) denomina os profissionais que estão em formação continuada como “professores em transição” (p.234), pois estão adicionando novos conhecimentos e práticas pedagógicas para lidar com alunos em contextos de inclusão diferenciados, indicando a apropriação que está ocorrendo com essa nova experiência (Ribeiro, 2006), e o controle diferenciado que está emergindo (Wertsch & Stone, 1985).

Atualmente, consideramos que os significados são construídos sob o impacto de dois processos que ocorrem no momento da experiência: o da ideologia (Volosinov, 1992) e o das emoções (Barbato, 2006; Valsiner, 2004; Valsiner & Rosa, 2007). Emoção e ideologia marcam os significados e interagem com as crenças e valores individuais pré-existentes, direcionando a apropriação do conhecimento de acordo com as condições do contexto social. Assim, estando a cognição distribuída, as atividades teórico-práticas individuais se relacionam à história cultural e às diferentes formas em que esta se faz presente na vida cotidiana (Lee & Smagorinsky, 2005). O professor está em desenvolvimento e esse processo, que perpassa o fazer diário, o move de posições de internalização cognitiva da teoria e prática para posições transformadoras do comprometimento e geradoras de desenvolvimento. Nesse sentido, a aprendizagem implica processos de embate, de conflitos gerados entre modelos individuais pré-existentes e as novas informações presentes nos contextos interacionais (Ball, 2005). Para que se possa mediar essa transição, é importante conhecer a construção de conhecimento dos professores que ora atendem alunos com diferentes necessidades especiais em escolas inclusivas. Partimos, assim, do pressuposto que verificaríamos, nas enunciações dos professores sobre o processo de inclusão, diferentes dúvidas e embates entre significados históricos relacionados à exclusão e segregação e aqueles relacionados à inclusão, característicos de um processo de construção de um fazer pedagógico diferenciado (Santos, Rosa & Barbato, 2008).

Este estudo se desenvolveu em uma situação de formação continuada em serviço, mediada e negociada pela oralidade e por fazeres pedagógicos, com o apoio dos professores do Hospital Sarah de São Luis-Maranhão, Brasil que fazem visitas periódicas às escolas em que haja alunos em processo de reabilitação. As visitas têm por finalidade construir uma reflexão com os professores de escolas inclusivas sobre os processos de ensino-aprendizagem que desencadeiem ações de apoio e suporte para os alunos com distúrbios neuromotores.

O cotidiano escolar nos oferece elementos para entender que a importância dos projetos de acompanhamento da inclusão de alunos com distúrbios neuromotores está relacionada à construção conjunta de estratégias para a superação dos desafios diários. É neste sentido que o trabalho conjunto hospital-escola se insere, tentando apontar caminhos que possibilitem a continuidade do desenvolvimento dos professores como agentes formadores de pessoas criativas e participativas, visto ser o ambiente escolar pleno de significados simbólicos que guiam o pensamento da criança a uma direção esperada (Valsiner, 1998).

Tradicionalmente a instituição hospitalar foi vista como responsável pelo cuidado de pessoas com doenças, embora nem sempre esta visão esteja associada à promoção da saúde (Santos, 2000). Os pressupostos que orientam a prática médica e o caráter curativo e terapêutico, característico da instituição hospitalar, por exemplo, em relação à prática de visita e observação sistemática dos pacientes, focalizam a saúde apenas como instrumento de cura sem considerar os aspectos preventivos e, portanto educativos (Geist, 1976; Luber, 1979, Dalton & Forman, 1992; Campos, 1995). No entanto, quando consideramos o processo de hospitalização de crianças e adolescentes podemos refletir sobre o espaço escolar como promotor de aproximação dessas duas esferas.

Nesse sentido, o atendimento pedagógico-educacional às crianças e jovens hospitalizados, se apresenta como uma possibilidade de se pensar em um outro caminho, onde sejam reintegradas essas duas importantes áreas no processo de desenvolvimento humano. A criança hospitalizada não tem seu crescimento e seu desenvolvimento entrecortados e o professor hospitalar se apresenta como mediador no processo de ensino-aprendizagem e na relação entre o hospital e a escola, à qual o indivíduo retornará (Fonseca, 1998).

O hospital pode contribuir com a educação no sentido mais amplo, pois promove a troca e a construção coletiva do conhecimento, estando facilitadas pelo atendimento pedagógico baseado nas potencialidades individuais da pessoa enferma. Tais medidas respaldam projetos como os das classes hospitalares e do atendimento educativo hospitalar, como alternativas que contribuem para a continuação do processo de escolarização de crianças e adolescentes hospitalizados ou em reabilitação (Fontes &Weller, 1998; Santos, 2000). Assim, a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação criou um espaço para efetivação dos contatos entre o hospital e a escola, no sentido de contribuir no atendimento às crianças e adolescentes com necessidades especiais por meio do diálogo entre os professores.

Em relação ao atendimento educativo hospitalar da Rede Sarah a atuação de professores hospitalares ocorre na equipe multidisciplinar. Nessa instituição o seu trabalho visa à construção do conhecimento sobre a educação de adultos, crianças e adolescentes em processo de reabilitação em conjunto com os profissionais de saúde. O trabalho dos professores, nas unidades do Hospital Sarah, objetiva avaliar o desenvolvimento e a aprendizagem do paciente; acompanhar a aprendizagem e a vida escolar, ocupacional e profissional do paciente; estimular e favorecer a inserção e/ou reinserção escolar; criar estratégias e recursos alternativos para educação e/ou reeducação; favorecer a reabilitação das habilidades cognitivas; orientar a família e a escola; realizar trabalhos de pesquisa e contribuir, quanto ao enfoque pedagógico, com a equipe interdisciplinar na formulação dos programas de reabilitação (APS, 1998).

A atuação do professor hospitalar na Rede Sarah, se diferencia do trabalho realizado pelos professores das classes hospitalares que objetivam atender aos alunos em situação de hospitalização. Neste caso, os professores hospitalares são profissionais contratados pela própria instituição, sendo membros efetivos da equipe interdisciplinar. O trabalho, além do acompanhamento escolar e psicopedagógico, inclui também a participação em discussão de caso, inter-consultas com a equipe e a formação de profissionais.

Apesar das diferenças entre a atuação dos professores hospitalares da Rede Sarah e dos professores das classes hospitalares, podemos afirmar que o trabalho realizado pelos professores dos hospitais da Rede se assemelha ao que é previsto por lei, uma vez que está em consonância, aos princípios que regem o atendimento pedagógico-educacional destinado a crianças e jovens hospitalizados, assegurado pelo Ministério da Educação (MEC/SEEP, 1994). O mesmo é apresentado no Estatuto da Criança e do Adolescente Hospitalizado (Resolução nº. 41, item 09, de outubro de 1995), que “toda criança tem direito de desfrutar de alguma forma de recreação, programas de educação para a saúde, acompanhamento do currículo escolar durante sua permanência hospitalar” (Brasil, 1995).

2 Método

As entrevistas analisadas neste estudo fazem parte de um projeto de pesquisa que objetiva analisar os significados construídos por professores sobre a inclusão de alunos com distúrbio neuromotores e outras necessidades especiais (Melo, 2003; Ribeiro, 2006). Optamos pela metodologia qualitativa que compreende a construção conjunta entre pesquisador e fenômeno, por entendermos que esse processo acontece por meio de relações dialógicas (Linell, 1998, 2003; Markova & Foppa, 1990). Esta escolha metodológica fundamenta-se no argumento de que a pesquisa qualitativa é um processo complexo de construção do conhecimento que atenta para os aspectos importantes na exploração de um problema humano ou social. Na Psicologia do desenvolvimento a pesquisa qualitativa prioriza a construção dos dados por meio de entrevistas e da observação ativa (Creswell, 1997; Mey, 2000).

Participaram do estudo 12 professores de escolas de São Luis, no Estado do Maranhão, Brasil, sendo 11 regentes e uma gestora, com mais de cinco anos de magistério, que acompanhavam quatro alunos de 8-9 anos e três de 15 a 17 anos com distúrbios neuromotores, (um aluno com tremor essencial, três com paralisia cerebral, um com encefalopatia não progressiva e dois com mielomeningocele. Nenhum apresentava distúrbios sensoriais, todos sem deficiência mental), matriculados em classes regulares de 1a. série do Ensino Fundamental ao 2o. ano do Ensino Médio. O projeto foi submetido ao Conselho de Ética da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação com sede em Brasília-DF. A pesquisa foi realizada mediante consentimento dos pais e responsáveis pelas crianças.

Quanto à formação, cinco professores tinham curso superior: duas pedagogas; um licenciado em letras; um licenciado em história, um bacharel em filosofia; cinco tinham cursos de magistério nível médio; um curso superior incompleto e um ensino médio incompleto. Além desses cursos, uma professora relatou ter curso técnico em enfermagem, um professor ter iniciado curso de teologia e uma professora, ter feito especialização em ensino especial. Os referidos professores eram de 07 escolas localizadas no centro e na periferia da cidade de São Luís, sendo 04 públicas estaduais e todos participaram do programa de acompanhamento da Rede Sarah, 02 comunitárias e uma cooperativa educacional. Para manter seus nomes preservados identificamos os professores utilizando a letra “P”.

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, conduzidas pelo primeiro autor que trabalhava à época como professor hospitalar na Unidade São Luís, com os professores do ensino regular. As entrevistas tinham como eixos temáticos suas percepções sobre o processo de inclusão escolar e seus alunos com distúrbios neuromotores: história de escolarização, diagnóstico e tratamento, acompanhamento do professor hospitalar, aspecto motor/locomotor e o processo de ensino-aprendizagem. As entrevistas foram gravadas em fita cassete tendo duração média de 30 minutos cada, totalizando seis horas de gravação. Foram transcritas em sua integridade e submetidas a uma análise dialógica temática, que nos auxilia no entendimento da problemática sobre as significações construídas, a partir dos textos produzidos em entrevistas ou outras formas de conversação. Uma vez organizada em temas relevantes, parte para a interpretação do conhecimento construído. Desse modo as enunciações foram lidas intensivamente como um único texto, a fim de se analisar a construção dos significados ao longo da entrevista de cada entrevistado. Tendo em vista a disponibilidade e a freqüência de significações, procedeu-se à construção de paráfrases que foram, então, agrupadas em temas gerais (Linell, 1998; Bauer & Gaskell, 2000; Barbato, 2004).

A fim de obtermos parâmetros de diagnóstico, tratamento e histórico de acompanhamento da situação escolar dos pacientes das salas de inclusão, assim como sobre o acompanhamento das visitas escolares efetuados pelos professores hospitalares da Unidade de São Luis, foram consultados os prontuários médicos de cada aluno em atendimento no Hospital. Essa consulta foi autorizada pelos pais e responsáveis pelos alunos.

3 Resultados e discussão

A partir da análise dos dados observamos que a construção de significados dos professores sobre a inclusão de crianças e adolescentes com distúrbios neuromotores se organizava a partir de três temas gerais em que foram observadas contradições entre posições em enunciações de um mesmo professor. Recorrentemente foi estabelecida relação entre os distúrbios neuromotores e características da deficiência mental (como a lentidão no aprender, expressões faciais diferenciadas, como a manutenção da boca aberta). Por outro lado, foram enunciados significados referentes às potencialidades de aprendizagem, assim como experiências positivas direcionadas para a construção da inclusão, com a superação de preconceitos.

Os resultados indicaram os seguintes temas: a) diagnóstico: a maioria dos entrevistados afirmou não conhecer os diagnósticos apresentados por seus alunos e ao discorrerem sobre o assunto faziam colocações descritivas sobre a criança; descrições essas relacionadas às alterações físicas e muitas vezes, demonstravam dúvidas quanto aos aspectos cognitivos, relacionando-os a comportamentos atípicos observados, utilizavam rótulos na tentativa de explicar os comportamentos e estilos de aprendizagem de seus alunos com distúrbios neuromotores. Houve uma tendência a associar os distúrbios neuromotores com a deficiência mental e os estereótipos de comportamentos atribuídos a crianças e adolescentes seriamente comprometidos intelectualmente; b) tratamento: apesar de estarem sendo acompanhados periodicamente por professores hospitalares, os professores escolares afirmaram desconhecer o tipo de tratamento realizado por seus alunos e mesmo quando afirmavam conhecer, observou-se a recorrência de mitos e crenças sobre o processo de reabilitação e de cura; os significados produzidos pelos professores sobre a reabilitação incluíam a preocupação com a intervenção e prognóstico com expectativa de melhoras, mesmo tendo sido esclarecido recorrentemente que as lesões sofridas pelos alunos que acompanhavam eram permanentes, porém não progressivas; c) desenvolvimento-aprendizagem: neste tema, as enunciações incluíram a prática pedagógica e o desenvolvimento típico e atípico; planejamento e recursos pedagógicos como a condução e avaliação em relação ao desenvolvimento atípico; comparações entre desenvolvimento infantil típico e atípico.

Apesar de alguns entrevistados ressaltarem questões referentes à metodologia que utilizavam em sala de aula, procurando descrever as rotinas que desenvolviam, não esclareceram qual o referencial teórico que orientava suas práticas pedagógicas; os professores não conseguiram diferenciar as dificuldades motoras das cognitivas; a maioria enunciou suas dificuldades para lidar com a criança ou o adolescente em sala de aula, relacionando-as, também, a problemas de formação docente.

4 Discussão

4.1 A - Diagnóstico

Ao consideramos os significados enunciados pelos professores a respeito do tema diagnóstico de deficiências ou patologias, são suscitadas questões relacionadas aos rótulos que são atribuídos às pessoas com necessidades especiais. Deve-se considerar também a discussão sobre a importância ou não de conhecimento de diagnóstico por parte dos professores das escolas que atuam no processo de inclusão.

Durante muito tempo a Psicologia persistiu em avaliar pessoas valorizando os resultados meramente quantitativos, onde o indivíduo era enquadrado numa nomenclatura que incluía a variação do QI, implicando na atribuição de uma classificação a partir, por exemplo, da gravidade do retardo mental dividido em leve, moderado, severo e profundo (APA, 1995). Essas práticas historicamente estabelecidas são associadas a crenças e valores sobre a educabilidade de pessoas com necessidades especiais contribuem para certas interpretações que os professores fazem sobre o comportamento de seus alunos com distúrbios neuromotores, com descrições como, por exemplo, sobre terem visto a criança “babar” diversas vezes, mesmo que o paciente não apresentasse quadro de sialorréia. Já na medicina observamos que ao definir o diagnóstico de um paciente, muitas vezes os profissionais tendiam a apresentar um determinado quadro clínico como se o paciente “portador de alguma patologia” representasse ou fosse a própria doença, reforçando o estereótipo. Por exemplo, ainda hoje é comum ouvir nos corredores dos hospitais os médicos dizendo: “Como vai o lesado medular, ou o PC (paralisia cerebral), do leito tal” (Santos, 2000).

Conhecer os diagnósticos de pessoas com distúrbios neuromotores visa não somente a compreensão de diferentes patologias, mas principalmente a melhora do atendimento a elas prestado, contribuindo para a promoção da qualidade de vida das mesmas. Os discursos dos professores escolares trazem várias questões relacionadas ao diagnóstico, que nos permitem fazer reflexões sobre sua atuação pedagógica em sala de aula. Quando se desconhece algo, recorre-se a conhecimentos arraigados em crenças histórico-culturalmente transmitidas, aos cânones da cultura (Bruner, 1997), a partir de conhecimentos intuitivos constrói-se narrativas para explicar o novo, ou buscam-se recursos na fala do outro. Ao ser perguntado sobre o diagnóstico de sua aluna, uma professora respondeu:

P6: Olha a mãe dela já me explicou um pouquinho, que é um problema na medula, parece que é na medula, e que por isso ela não conseguia andar, mas se fizer uma terapia, uma coisa assim... ela não me explicou direito.

Ao se referir a um aluno com Paralisia Cerebral, outro professor enunciou:

P3: Eu não sei o que ele tem. Eu até desconfiava da maneira dele olhar, o semblante dele... Fica todo tempo de boca aberta, eu já tinha desconfiado dessa deficiência dele.

O referido professor desconhece ainda as características da patologia da criança e não formula informações associadas ao diagnóstico a partir da convivência diária com seu aluno, mencionando a deficiência num sentido genérico e descontextualizado, provavelmente associada ao estereótipo de pessoa com deficiência mental, reproduzida, por exemplo, inúmeras vezes no cotidiano da cultura em imagens diferenciadas, muitas vezes com cunho grotesco. Para os profissionais do Hospital é desejável o conhecimento do diagnóstico por causa das especificidades de cada patologia, que podem ser, sobretudo, limitantes e influenciam também no processo de aprendizagem.

A professora 12, ao se referir à aluna com tremor essencial, caracterizado basicamente por alteração na coordenação dos movimentos, comentou:

P12: Eu não sabia do problema mental dela quando veio aqui, a gente ficou sabendo apenas por acaso. Uma professora me falou que nós temos que ver e estudar o caso dessa aluna, pois ela está com um problema de coordenação motora. (...) Olha, em relação aos movimentos, é como se ela fosse realmente uma pessoa defeituosa fisicamente. Porque com a continuação do tratamento, ela vai melhorando, ele vai adquirindo a coordenação motora. Na verdade eu não sei dizer exatamente o que [ela] está fazendo para recuperar essa coordenação.

O desconhecimento sobre as características do quadro apresentado pelos alunos é motivo de confusão, tanto para compreensão do caso, como para a intervenção. P12 revela desconhecimento a ponto de não conseguir relacionar um sintoma com outro. De fato, a dificuldade na coordenação motora não está diretamente associada ao retardo mental, no entanto, recorrentemente os professores entrevistados associaram os problemas motores com o retardo mental. Indicando o quanto o olhar do professor muitas vezes volta-se ainda apenas para um aspecto do diagnóstico baseado no senso comum, no que é mais freqüentemente veiculado no cotidiano, construído por processos intuitivos a partir de crenças e valores historicamente presentes na cultura. O sentido que o uso de termos como “deficiência” e “defeituosa” adquirem nas enunciações, considerando-se a seqüência de construção de significados pelas entrevistadas, está direcionado para aspectos historicamente relacionados à segregação. No entanto, ao mencionar a necessidade de uma maior compreensão do diagnóstico, P12 demonstra um movimento em direção a uma nova concepção que desemboca, porém, numa possível expectativa de cura ou melhora substancial a partir de um tratamento para recuperar a coordenação motora.

A análise temática das enunciações dos professores citados anteriormente indica o desconhecimento revelam desconhecimento em relação ao diagnóstico dos seus alunos. Observamos, também, que existem aqueles que mesmo afirmando conhecer aspectos do diagnóstico, não conseguem explicar ou, então, tentam construir explicações a partir do que experienciam no seu cotidiano, quando observam os avanços e retrocessos dos seus alunos. Vejamos na fala de P1, um exemplo onde as crenças sobre o desenvolvimento confundem-se com o diagnóstico, dificultando assim uma intervenção coerente sobre o caso:

P1: Quando ela fazia o terceiro período, eu sempre ia na sala da professora, ela contava que [a aluna] teve um problema; ela nasceu boazinha, então ingeriu soda cáustica e isso afetou sua coordenação motora e não o cérebro; mas ela conseguia fazer as atividades dela em dia e nisso, ela foi aprovada para a primeira. Eu sempre vou na sala de todas as crianças e adolescentes aqui. A professora continuava contando o mesmo problema dela, querendo saber se ela tinha condições de ir para a segunda série, porque o problema dela é só coordenação motora, nisso ela chegou à segunda série, justamente esse ano que ela está comigo.

Vale ressaltar que, segundo informações obtidas nos registros dos atendimentos realizados no Hospital, a criança em questão foi reprovada uma vez na primeira série, por ter dificuldades motoras, mesmo depois de ser alfabetizada. Com a lesão no cérebro a criança começou a apresentar uma incoordenação motora nos membros superiores como seqüela, dificultando a legibilidade de sua escrita. Esse fato, provavelmente, foi relacionado por P1 às crenças e práticas tradicionais de alfabetização que acreditam que a coordenação motora é condição básica para a aprendizagem da escrita, influenciando a tomada de decisão que resultou na reprovação da aluna. Podemos notar também que, na narrativa, a professora demonstra um conflito claro entre o que se apresenta para ela como “o problema dela é só coordenação motora” e o fato de que a aluna concretamente acompanha a turma, visto que recorre repetidamente à narrativa da colega em relação à “soda cáustica que afetou a coordenação motora e não o cérebro”. De acordo com a seqüência dos significados produzidos em sua entrevista, pode-se supor que a professora procurava explicações a fim de poder entender uma aluna com incoordenação motora, conseguia realizar as tarefas escolares e freqüentar a segunda série do Ensino Fundamental.

Vemos então que além das crenças sobre a aprendizagem, surgem também outros elementos nos discursos dos professores que indicam as dificuldades encontradas pelos mesmos em conhecer os diagnósticos de seus alunos e assim encontrar meios viáveis de superação e resolução de problemas. Por isso, pensamos que não nos basta apenas esclarecer o diagnóstico teoricamente sem integrar a sua práxis, parecendo não assumir posicionamentos de co-construtores de uma relação onde os alunos sejam participantes ativos e não sejam vistos sob o prisma de crenças e valores característicos dos processos segregatórios.

4.2 B - Tratamento

A maioria dos professores escolares relatou desconhecer o tipo de tratamento realizado por seus alunos e mesmo quando afirmavam saber, eram concretizados nos seus discursos os mitos e crenças sobre o processo de reabilitação e de cura.

Observamos a dificuldade dos professores em admitir o caráter definitivo dos distúrbios neuromotores de seus alunos e entender que as seqüelas apresentadas são provenientes das patologias de base. Percebemos assim, uma confusão entre o que são patologias (doenças) e as seqüelas (manifestações dos processos patológicos).

A construção de novos conhecimentos se faz necessária para que se compreenda que, por exemplo, uma criança que sofreu uma lesão cerebral pode estudar numa classe regular, mesmo que para isso necessite de adaptações curriculares. Nesse sentido destacamos a importância do trabalho conjunto escola-hospital, para a construção de instrumentos necessários para desenvolver uma atuação junto aos alunos, a partir do esclarecimento do diagnóstico, do tratamento e mesmo das intervenções indicadas para cada caso.

P6: Eu não sei que tipo de tratamento ela faz, talvez seja fisioterapia, eu acho que é isto. Eu acho que ela pode até, talvez, caminhar de muletas, pode até ser, né? Se fizer uma fisioterapia, porque a mãe disse que ela anda um pouquinho, parece, eu não sei se é de muleta, uma coisa assim. “É porque ela nunca conversou muito comigo em relação ao problema de [aluna]”.

P6 continua construindo suposições sobre o tratamento baseadas em conversas que teve com a mãe da aluna e também obtidas possivelmente nas conversas com o professor hospitalar. Além disso, a convivência diária com a criança na escola poderia ajudá-la a compreender melhor sua aluna, porém, P6 não menciona suas observações sobre a criança como fonte para suas enunciações. Pensamos que o processo de construção conjunta e contínua de conhecimento possa ser um caminho para superação das dificuldades (Vigostki, 1995, 1998). É na zona de desenvolvimento proximal, onde se efetivam as trocas de saberes, os esclarecimentos das dúvidas, os novos fazeres que cada um dá sua contribuição, entende e supera obstáculos, porém, nota-se, a partir desses resultados, que devem ser criadas novas estratégias para proporcionar uma reflexão dos professores sobre as crenças que efetivamente intervêm em seus processos de aprendizagem.

Temos observado em diferentes estudos de acompanhamento da formação continuada do professor, que se ele não tem oportunidades adequadas para a discussão, que respeitem sua experiência acumulada dando oportunidade de transformá-la, volta a repetir com seus alunos, os caminhos que pensa terem percorrido em sua experiência na cultura e no ambiente escolar. Não desenvolvendo as técnicas a partir de um referencial teórico, passa a depender somente de suas habilidades de acolhimento dos alunos em sua sala de aula.

A necessidade de acompanhamentos sistemáticos e de cursos de formação continuada é premente, pois observamos o interesse dos professores em buscar outros recursos e meios para obtenção de informações e assim encontrar as respostas que necessitam. Em alguns casos o professor recorre a contribuições deixadas pelos seus pares, ou seja, outros professores da própria escola, P6, por exemplo, usa recorrentemente a expressão “coordenação motora”, o que pode denotar que não entende o diagnóstico nem o tratamento, visto que possivelmente não observou as melhoras que esperava, indicando, portanto, que ainda precisa de mais informações para poder construir uma explicação sobre sua aluna:

P6: A professora do ano passado me contou que [a aluna] fazia um tratamento lá no Sarah. Eu acredito ser assim uma terapia quanto à coordenação motora e também informações sobre a série que ela está cursando.

Ao longo das entrevistas pode-se perceber que o professor escolar teve dificuldades para relembrar os conhecimentos com os professores hospitalares. Esquecimentos e contradições ocorreram e esse jogo de contrastes demonstra as dificuldades encontradas na construção do conhecimento, uma vez que indicam o embate entre os modelos pré-existentes e as novas informações (Ball, 2005). As enunciações denotam um forte embate entre o novo e o conhecimento adquirido anteriormente numa dinâmica dialética entre as forças centrípetas (de permanência) e as forças centrífugas (de inovação) (Volosinov, 1992). O embate entre o novo e o conhecido anteriormente, com o tempo e o direcionamento efetivo da negociação de significados, resulta na transformação do conhecimento (Vigotski, 1998).

4.3 C – Desenvolvimento e aprendizagem

A partir da definição desse tema, observamos neste tópico como os demais temas se integram para formar um painel geral das diferentes perspectivas sobre o aluno com distúrbios neuromotores no contexto escolar. Algumas enunciações, por exemplo, apontam para a questão da metodologia utilizada em sala de aula, apesar de nem sempre explicitar qual linha teórica orienta o fazer pedagógico do professor.

P12: Aqui na nossa escola cada professor tem a sua metodologia. Não temos nenhum tipo de treinamento para os professores. No planejamento mensal, falamos sobre a sistemática de trabalho, discutimos como a gente vai funcionar cada mês, o que vai acontecer...

Observamos a falta de definição metodológica, alguns professores procuram criar rotinas a fim de alcançarem os objetivos definidos pelo programa pedagógico da escola. Observa-se por meio dos contatos com os professores, que as escolas não dispõem de um programa pedagógico, sendo esse muitas vezes definidos a partir da prática, a medida que surgem as dificuldades e problemas. As escolas nem sempre contam com o apoio de uma equipe que os auxiliem em suas intervenções. Por não terem um programa pedagógico estabelecido e supervisionado por equipe, cabe ao professor procurar os recursos em sua prática escolar.

P7: Eu converso demais com os meus alunos, eu falo sobre a violência, sobre meninos de rua, eu dou muitos exemplos para eles. Às vezes, na minha aula, fazemos exercícios, dou leitura, faço ditado de palavras e também tomo tabuada, porque cada dia trabalhamos uma matéria, uma disciplina. Quando temos um horário vago, eu converso com eles, peço a opinião deles, mas [aluno incluído], quase não conversa comigo, às vezes ele só sacode a cabeça. (...) Normalmente trabalhamos mais com a participação deles no quadro, o que eles gostam muito. Às vezes a gente faz muito trabalho em equipe para ver o desempenho da criança, às vezes utilizo aqueles livros de história, eu gosto de ler para eles e eles também gostam muito. Eu faço muitas perguntas também a respeito da aula, eu quero saber quem participa das aulas. Faço ditado de palavras, porque eles são muito atrasados nisso. É isso que eu sempre faço, não uso outros métodos não.

Os professores sinalizam a relação entre deficiência e aprendizagem. Porém mantendo a idéia de que o aluno é lento e tem dificuldade para aprender. Os professores enfatizam frequentemente esses pontos e relacionam a interpretação que construíram até o momento sobre o diagnóstico com as dificuldades de seus alunos incluídos. Os professores deixam transparecer a idéia que um aluno com distúrbios neuromotores lento parece apresentar também retardo mental, não conseguindo estabelecer a diferença entre o déficit motor e déficit cognitivo.

P3: Quando ele aprende, quando ele assimila, ele rende. Eu percebo que de problema, é apenas o fato dele ser lento para aprender, não que ele não aprenda, mas é que ele é lento em relação aos outros alunos. Essa é a única diferença que ele tem. “Fora isso eu não percebo nenhuma outra.”

Alguns enunciados revelam que os professores reconhecem que, em certos momentos “quando ele aprende”, há um aprendizado em andamento, porém, enfatizam a lentidão comparando o aluno com distúrbios neuromotores, colocando-o “em relação aos outros alunos”, tentando normalizá-la por meio do seu discurso: “fora isso não percebo nenhuma outra [diferença]”. Porém, nota-se que seu esforço, ainda, está em contraste com a crença de que ser lento não é o mais adequado e que a lentidão em nossas escolas está, geralmente, associada a estilos de aprendizagem de crianças rotuladas como deficientes mentais.

Encontramo-nos, novamente, diante de evidências de que há um embate entre as novas informações e as anteriores, baseadas numa crença de fundo que parece estar relacionando os problemas motores, denominados como neuromotores, com problemas de deficiência mental (é lento, não acompanha as tarefas, fica com a boca aberta). No entanto, percebem-se formulações sobre a diferença estar somente na forma de aprender, convivendo com as enunciações que denotam uma relação distúrbio neuromotor e deficiência mental. Havendo considerações sobre a ocorrência de aprendizagem contínua, “de aproveitamento regular” mesmo se o professor não construa explicações sobre isso. Nem sempre o professor considera as potencialidades dos alunos na prática em sala de aula. Enfocam suas observações apenas as limitações dos alunos.

P5: Para mim não tem diferença ter um aluno deficiente em sala de aula, mas no começo do ano eu percebi que ele era um pouco estranho, o jeito dele sorrir, de falar, era engraçado para os outros alunos, mas ele superava. Hoje não tem mais essa coisa de discriminar. A questão é que ele é lento, mas ele no momento assimila tudo. Ele é um aluno de aproveitamento regular. Você olha para ele e percebe a diferença, ele é diferente para aprender, fora isso aí, eu não percebo nenhuma diferença dele em relação aos outros alunos.

P5, por sua vez, recorre à discussão corrente sobre ética para demonstrar o embate atual, próprio do momento de transição (Ball, 2005; Ribeiro, 2006), entre duas posições “esse não vamos aceitar” e “ele é igual a qualquer outro”.

P5: É uma experiência que a gente precisa ter né? É diferente, porque a gente vai conhecer como é aquele aluno, o desempenho dele. Não vejo problema nenhum ter uma criança deficiente na sala, para mim é uma satisfação poder ajudar. Acho necessário que o professor tenha consciência de que, quando uma pessoa existe, ela tem que ter carinho. Nós enquanto professores, vamos nos deparar com qualquer tipo de situação, então nós estamos preparados, nós temos a ética profissional, nós temos que ter ética de professor, de chegar e encarar o aluno, encarar eu digo, é aceitar o aluno, não podemos dizer esse eu não vou aceitar, vou discriminar. Ele é igual a qualquer outro.

E complementa sua fala apresentando idéias sobre o que pensa em fazer em relação às dificuldades dela e das crianças e adolescentes. Ela acrescenta ainda a pobreza como mais um elemento que compõe essa operação, pois além de ser deficiente física, a criança tem dificuldades sociais e econômicas. Há uma associação, em sua fala, entre a condição de os pais serem analfabetos e o não apoio ao processo de escolarização dos filhos. Esta associação nos remete ao posicionamento também muito discutido entre professores em relação às atribuições do fracasso escolar à família. Neste caso, o compromisso profissional é apresentado prenhe de sentimentos solidários, frutos de seus esforços e lutas pessoais, que são igualmente legítimos e importantes:

P5: Eu estou preocupada com os alunos daqui, porque eu acho que não vão passar de ano. Eu fico preocupada porque eu sei que eles vão se atrasar. Eles não sabem o quanto é importante estudar hoje em dia, pois quem está estudando não está conseguindo nada, imagina aquele que não tem estudo, e primeiro que eles não têm aquele apoio em casa, aquela força, que mãe e nem pai às vezes não sabem ler, ou às vezes não têm tempo, trabalha. Então, o que eu puder fazer por eles eu farei. Por [aluno] ou por qualquer outro eu faço. Enquanto eu puder.

A participação de um aluno com necessidades especiais em sala de aula evidencia vários conflitos, pois não se trata de comparar alunos ou normalizá-los. A inserção da criança deficiente no ambiente escolar coloca o professor e os alunos no processo de inclusão, pois uma vez necessitando lidar com essa nova informação, cabe ao professor mediar a inclusão da criança na turma e a turma à criança. Para Vigotski (1995), o desenvolvimento de cada criança é único. Para atingir o mesmo nível de desenvolvimento de uma criança com desenvolvimento típico, a criança com necessidades especiais percorre um caminho diferente, utilizando as ferramentas mediacionais de forma diferenciada, sendo importante que os profissionais da educação estejam cientes: das possibilidades singulares de cada uma, o que já conhece e pode fazer sozinha e seu nível de desenvolvimento real. Pois é o educador que vai construir com ela as estratégias de compensação. Não se supera um problema sem tomar consciência dele, isso pode ser aplicado tanto para o aluno, como para o professor.

Essa proposta de mudança de perspectiva nos aproxima das idéias de Sacks (1997) sobre o potencial “criativo” (p.16) das deficiências, dos distúrbios e das doenças que, por sua vez, são paradoxais, pois possibilitam a revelação de poderes latentes, desenvolvimentos diferenciados, evoluções, formas de vida que talvez nunca fossem vistas, ou mesmo imaginadas. À medida que os professores têm oportunidades de refletir sobre esse fato, podem transformar suas práticas, pelo conhecimento e compreensão da teoria, modificar efetivamente sua prática pedagógica sem simplificar suas atitudes diante dos problemas encontrados (Collares, 1992).

Podemos observar que a percepção dos professores sobre as crianças e adolescentes com distúrbios neuromotores está relacionada de certa forma com seu processo de formação, inclusive de formação continuada. Tais elementos nos ajudam a compreender como os professores constroem não somente suas representações sobre seus alunos, mas também sua atuação diante das situações vivenciadas no contexto escolar e educacional a partir de valores e crenças historicamente constituídos.

Assim, é evidente a importância da relação entre os professores e os alunos mediada pelo trabalho conjunto entre hospital e escola. Os professores escolares são unânimes de que o contato com o professor hospitalar contribui para a construção de conhecimentos, pois, de acordo com suas enunciações. Por outro lado por meio dessa colaboração entre escola e hospital ambos profissionais sistematizam sua compreensão sobre o processo de ensino-aprendizagem.

5 Conclusões

O contato com a escola ajuda-nos a construir uma relação de troca, onde ambos, professores escolares e professores hospitalares complementam e transformam seus conhecimentos acerca da criança e da forma de atuação com elas, percebendo-se a assimetria no discurso, a escola solicita mais informações ao hospital, o que é compreensível, pois nem sempre o corpo docente encontra-se devidamente preparado para lidar com as diferenças. Mas ao mesmo tempo devemos relativizar essas considerações, pois também os professores hospitalares têm muitos pontos a serem observados e revistos, mesmo que possam dar as contribuições necessárias e atender às demandas da escola. Ao contrário, o conhecimento construído conjuntamente deve ser compartilhado.

Como pudemos observar as enunciações apresentadas anteriormente são ricas em informações e depoimentos que fortalecem o processo dialógico, sendo esse provocado pela materialização da expressão na enunciação que, pelo simples fato de ter sido exposta a um outro exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental do locutor (Volosinov, 1992; Barbato, 1997). As dúvidas e os questionamentos dos professores sobre a maneira de lidar com a criança são evidenciados a partir da colocação de cada professor, que provoca o embate de vozes e consequentemente configura-se um modelo de enfrentamento.

A análise dos três grupos temáticos (diagnóstico, tratamento e desenvolvimento-aprendizagem), indicou que em relação ao diagnóstico os entrevistados demonstraram não conhecê-lo, supervalorizando, por exemplo, a coordenação motora, como sendo uma das maiores dificuldades para aceitação do aluno. Os professores utilizaram o indicador físico-motor para avaliar como deficiente mental os alunos que apresentavam dificuldades motoras.

Quanto ao tratamento geral que os alunos recebiam, observou-se a recorrência de dúvidas sobre o processo de reabilitação e de cura. O desconhecimento dos professores sobre o caráter irreversível das patologias apresentadas pelos seus alunos, mesmo tendo sido esclarecidos em seguidas ocasiões, confirma a necessidade de uma formação continuada específica e sistemática que provoque a discussão sobre esses temas a fim de que possam construir novas significações que possibilitem a transformação de seus trabalhos. Por exemplo, em relação à escrita, respondendo às alterações primárias desses pacientes, pois são afetados os diferentes componentes da motricidade fina (controle, tônus, coordenação, dominância lateral, orientação espaço-temporal, etc.), além da construção de outros aspectos fundamentais dos processos intelectuais e emocionais.

Os problemas referentes à formação dos professores são incrementados com a falta de recursos das escolas, pois muitas vezes os professores têm claros os objetivos, mas falta uma integração desses com os demais aspectos que envolvem o processo de ensino-aprendizagem, que vão desde a existência de materiais didático-pedagógicos e meios mediacionais adequados até a definição de projetos educacionais capazes de atender as necessidades dos educadores e dos alunos. A criação de novos procedimentos passa, também, pela compreensão do processo de inclusão como política pública.

Por fim, concluímos que a construção de conhecimento sobre a inclusão de crianças e adolescentes com distúrbios neuromotores não acontece de forma linear, mas a partir do embate de saberes e de conflitos entre os novos conhecimentos e os antigos (Vigotski, 1998; Luria, 1990; Werstch, 1993).

As conclusões do estudo realizado com base na reflexão crítica suscitaram recomendações importantes para continuidade do trabalho como “andaimes” e suporte atual e para o futuro. Vislumbra-se, por exemplo, o investimento na formação de professores, o trabalho conjunto hospital – escola, a integração dos professores e a participação efetiva das famílias no processo educacional das crianças e adolescentes. Além da continuação e o desenvolvimento de estudos nesta área com objetivo de definir, caracterizar e classificar as dificuldades de aprendizagem em crianças e adolescentes com deficiência, de maneira a contribuir com outras pesquisas.

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