Refletindo sobre violência de gênero e mulheres negras: a experiência da Ong Maria Mulher/ Porto Alegre – Brasil

Reflecting about gender violence and african american women: The experience of the NGO Maria Mulher - Brazil

  • Maria Luisa Pereira Oliveira

1 A organização Maria Mulher

Maria Mulher-Organização de Mulheres Negra é uma organização não-governamental estabelecida na cidade de Porto Alegre, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. A organização tem como missão institucional a defesa dos direitos humanos das populações marginalizadas e excluídas, em especial de afro-descendentes, e o combate às discriminações sexista, étnico-racial e social.

A experiência aqui relatada teve início em minha participação como psicóloga em projetos sociais realizados pela instituição. Um desses projetos oferecia atendimento psicológico para mulheres em situação de violência de gênero e vulnerabilidade social. O desenvolvimento desse projeto acontecia em uma região da periferia da cidade caracterizada pela pobreza, violência urbana e exclusão social. A população daquela região caracteriza-se por pertencer à raça/etnia negra, que se constitui numa minoria racial no estado do Rio Grande do Sul, significando 12% da população, segundo o censo do ano 2002.

A imagem veiculada sobre o estado do Rio Grande do Sul o define como um estado de colonização européia, de população branca e herança cultural ocidental, o que justificaria as melhores condições econômicas e os indicadores econômicos e sociais mais favoráveis em relação às regiões norte, nordeste e centro-oeste do país. A reprodução dessa suposição desconsidera a inegável contribuição da população de origem africana que vive na região.

O trabalho executado pela população negra escravizada, desde a época em que o país foi uma colônia de Portugal, até a abolição oficial do regime escravista, em 1888, sustentou todas as atividades produtivas desenvolvidas no Brasil e foi a mola-mestra da produção de riquezas para o país. As relações escravistas, estabelecidas da forma como surgem na Europa, no século XVI, faziam parte do sistema econômico que preconizava a organização de toda a produção da sociedade em função dos lucros a serem acumulados por uma determinada classe social (SMED, 2001). Para justificar a utilização da exploração do trabalho escravo foram utilizadas teorias que surgiram na Europa e afirmavam a superioridade de grupos raciais/étnicos brancos sobre outros, entre eles os negros africanos. Podemos ressaltar que o conceito de raça refere-se a um grupo natural de humanos que possuem caracteres físicos semelhantes, por exemplo, a cor da pele, o desenho dos olhos, o formato do nariz etc. Não existe hierarquia entre as raças, a imposta superioridade de uma sobre outra é uma construção política-ideológica que atende a interesses de dominação de uma determinada época e local. Raça é hoje e sempre foi um conceito eminentemente político cujo sentido estratégico foi exemplarmente sintetizado pelo historiador Anthony Mark em seu livro Making Race and Nation, onde ele afirma que: ´Raça é uma questão central da política... porque o uso que as elites fizeram e fazem da diferença racial foi sempre com o objetivo de provar a superioridade branca e assim manter seus privilégios, à custa da escravidão e exploração. Essa atitude foi sempre compartilhada com os setores populares brancos interessados em se associar às elites. Historicamente, esse comportamento foi comum às elites do Brasil, da África do Sul e dos Estados Unidos` (Carneiro, 2001).

A organização Maria Mulher atua através de cinco linhas de ação: Empoderamento das Mulheres; Construção da Cidadania de Meninas e Adolescentes; Promoção da Igualdade Racial; Intervenção Política; Documentação Pesquisa e Informação. Essas linhas de ação objetivam operacionalizar o enfrentamento ao sexismo e ao racismo preconizados na missão institucional.

A primeira linha de ação se desenvolve na perspectiva de que as mudanças nas relações socioeconômicas, políticas e culturais ocorridas principalmente na última metade do século XX foram importantes, mas não realizaram transformações em estruturas importantes como o sexismo, o racismo e a exclusão social. No Brasil, essa perversa realidade é responsável pela situação de vulnerabilidade em que se encontra a maioria das mulheres negras brasileiras. No Brasil, as mudanças ocorridas no plano político, por exemplo, onde a democracia, aponta para contínuos exercícios do direito de eleger representantes nos três níveis: federal, estadual e municipal, não significa que vivamos em perfeito estado democrático. A democracia pressupõe o efetivo exercício do ir e vir. Isto não é uma realidade verdadeira para a população afro-brasileira. As mulheres estão em pequeno número nos espaços de representação política não atingindo a cota de 30% estabelecida em lei. No que se refere às mulheres negras o quadro de dificuldades aumenta. Ressalta-se que a situação socioeconômica, política e cultural de mulheres negras, em geral, é ruim e em nossa maioria nos encontramos abaixo da linha da pobreza, possuímos baixa escolaridade e estamos em situação de exclusão social.

Mulheres negras ainda não conseguem acessar e estar contempladas nas políticas públicas de saúde (tratamento e identificação de doenças específicas); de saúde mental; ao tratamento de DST/HIV/Aids; à violência sexual e racial; ao trabalho; à educação e à habitação. Além das violências já citadas, as mulheres negras são agredidas pela violência ideológica que se manifesta na negação da identidade, sofrendo imposição de padrões estéticos de mulheres brancas. As adolescentes negras são vítimas de exploração, servindo para nutrir o turismo sexual e tráfico de mulheres. No mercado de trabalho, as mulheres negras detêm as maiores taxas de desemprego e permanecem mais tempo desocupadas. As negras chegam a receber rendimentos 55% menor que os salários das mulheres brancas e constituem a maioria das trabalhadoras do mercado informal. Além disso, exercem as ocupações consideradas de menor qualificação, como o de trabalhadora doméstica (56% segundo PNAD, 1999).

Na esfera de representação política, as mulheres negras estão longe de atingir os espaços institucionais de poder. A mulher negra, na sua grande maioria, está fora da escola, sem acesso à informação tecnológica. Freqüenta escolas públicas sucateadas e que não têm o menor compromisso com a diversidade cultural e com a promoção da igualdade de direitos.

O atendimento implementado para as mulheres beneficiárias dos projetos da ONG envolvem participação em oficinas e grupos para reflexão sobre a defesa dos direitos das mulheres e da população negra e sobre a compreensão das relações de raça/etnia, gênero e classe social. O atendimento de psicologia busca oportunizar o resgate da auto-estima e valorização pessoal dessas mulheres a fim de que possam efetuar o enfrentamento da violência de gênero e da violência racial, buscando reestruturação para suas vidas.

A Promoção da Igualdade Racial é desenvolvida através de diferentes metodologias: são realizadas atividades de Formação em Direitos Humanos mediante a realização de cursos, oficinas e seminários com o objetivo de formar multiplicadores da luta anti-racismo. As atividades de formação já foram destinadas a operadores do Direito; instituições públicas de defesa de direitos, como o Ministério Público do Trabalho; escolas da rede pública e privada do município de Porto Alegre e região metropolitana dessa capital; empresas privadas que cumprem penalidade por denúncia de discriminação racial.

Outra forma de intervenção ocorre através do programa SOS Racismo que oferece atendimento jurídico e psico-social para vítimas de racismo e discriminação étnico/racial. Desde o ano de 2001 passamos a integrar a equipe desse projeto, que oferece acolhimento para pessoas negras, vítimas de racismo e discriminação racial, práticas consideradas crimes pela legislação brasileira. As demandas levantadas nesse programa suscitaram a necessidade de outras formas de intervenção, para além dos atendimentos prestados que deram origem ao estabelecimento de parcerias institucionais e a elaboração de ações de formação.

O Programa SOS Racismo – Um serviço essencial para a cidadania, desenvolvido desde janeiro de 2001, já contou com financiamento do Ministério da Justiça – Governo Federal do Brasil, durante um período de dois anos. A implementação do programa foi pensada a partir do reconhecimento da baixa procura pela aplicação da legislação anti-racismo no Brasil e as dificuldades para o seu cumprimento. Tem como objetivo buscar, através da visibilização e denúncia dos crimes de violência racial, o desenvolvimento de políticas públicas para que a população negra tenha garantida sua cidadania. Para isso procura: fortalecer a construção da identidade racial/étnica individual e de grupo para que a população negra conheça e exija seus direitos; construir rede de atendimento com outras instituições de defesa de direitos, visando ampliar as intervenções nas situações de racismo e discriminação; produzir conhecimento sobre o tema para reforçar a necessidade de implementação de políticas públicas para a população negra.

No início do desenvolvimento do programa, Maria Mulher publicou a cartilha “SOS Racismo – Um Serviço Essencial para a Cidadania” que apresenta a legislação anti-discriminatória e indica os passos a serem seguidos em caso de discriminação étnico-racial. O programa intervém a partir da articulação de diferentes saberes - Direito, Psicologia, Serviço Social, Educação - visando operar uma nova prática social que tem como princípio fundamental a busca e a garantia dos direitos para assegurar a dignidade da vida humana. Também fazem parte da metodologia de intervenção atividades denominadas “Oficinas de Desconstrução do Racismo” em que são utilizados recursos das áreas da educação, teatro e música, para trabalhar as relações raciais e desconstruir estereótipos já arraigados e reproduzidos acriticamente pela sociedade.

Com o desenrolar das atividades, observamos um crescimento da demanda de atendimentos de casos que não continham elementos suficientes para a instauração de processo judicial, reafirmando a necessidade de ampliação e aperfeiçoamento da legislação anti-racismo, a fim de que se torne eficaz no combate a todas as formas de racismo e discriminação étnico-racial. Diante da constatação, foi percebida a necessidade de relacionamento com entidades que trabalham com a defesa de direitos para encontrar alternativas de atendimento dessa demanda. Durante o ano de 2002, foram realizadas parcerias com o Ministério do Trabalho e Emprego/Delegacia Regional do Trabalho/Núcleo de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Combate à Discriminação no Trabalho/RS e com o PROCON – Programa Estadual de Defesa do Consumidor da Secretaria do Trabalho Cidadania e Assistência Social do Estado do Rio Grande do Sul, que passaram a receber a demanda encaminhada pelo SOS Racismo, de situações de discriminação ocorridas nas relações de trabalho e de consumo, respectivamente, bem como, encaminhar para esse programa a demanda recebida em que foram detectados racismo e discriminação étnico-racial. Em março de 2005, Maria Mulher firmou com o Ministério Público do Trabalho - Procuradoria Geral do Trabalho da 4ª Região, um Protocolo de Intenções em que as duas instituições se comprometem, na medida de suas competências, combater a discriminação racial nas relações de trabalho.

A denúncia dos crimes de violência racial, num primeiro momento, constitui-se numa significativa reação contra a agressão sofrida. Os atos de violência denunciados passam da esfera das relações privadas para a esfera das relações públicas. Nesse contexto, considera-se a denúncia e os assessoramentos jurídico e psicossocial, um instrumento que organiza e potencializa a denúncia como forma de resistência da população negra.

A partir do relato das pessoas atendidas foi possível constatar o processo de compreensão do que significa ser negro/negra do ponto de vista da organização social e da construção da identidade racial. Reconhecer-se gera fortalecimento para a busca de estratégias de enfrentamento das mais diversas manifestações do racismo.

O relato das mulheres negras, em particular, traz à tona a vulnerabilidade a que estão expostas, em função do entrelaçamento entre violência racial, violência de gênero e violência sexual. Essas dimensões da violência são relatadas pelas beneficiárias do programa SOS Racismo e deixam explícita a forma mais ou menos incisiva como operam as discriminações, de acordo com os espaços em que circulam: trabalho; espaços de consumo, relações familiares e de vizinhança, espaços de lazer e instituições públicas. As falas das mulheres manifestam, também, diferentes modos de resistência engendrados para enfrentar as discriminações cotidianas.

Podemos concluir que a visibilidade dos crimes de violência racial através da denúncia, suscita formas de intervenção do poder público que tem o dever de dar resposta a essa demanda na perspectiva de defender um direito que está sendo violado. Assim, exige o desenvolvimento e o estabelecimento de políticas públicas que promovam a transformação das relações raciais/étnicas e, por conseguinte, a transformação da sociedade para que negras e negros tenham garantido o exercício pleno de cidadania.

O desenvolvimento das ações do programa se estrutura em duas vertentes, uma delas constitui atendimento jurídico, através da assessoria de advogados, e a segunda perspectiva oferece atendimento psicossocial, mediante entrevistas individuais com psicóloga e assistente social para as pessoas que buscam o serviço porque vivenciaram episódios de racismo e discriminação racial que se constituem em violências que causam prejuízos subjetivos e nas relações sociais.

A atividade de acolhimento psicossocial logo mostrou sua relevância no programa, pois a maioria das denúncias, não eram passíveis de ações na justiça e precisávamos trabalhar com os sentimentos de frustração de denunciantes, que chegavam com a expectativa de lograr ações judiciais. Paradoxalmente, durante as entrevistas percebíamos que a escuta oferecida era muito valorizada e as beneficiárias e beneficiários demonstravam satisfação pelo simples fato de serem ouvidos e acolhidos. Essa observação ajudou-nos a dimensionar o quão dolorosa era essa fala que muitas vezes, era manifestada somente naquele espaço, não sendo compartilhada nem mesmo com familiares e amigos, pois o sentimento era de solidão e de se tratar de uma experiência única.

Os diálogos com as mulheres que chegavam ao programa revelavam particularidades que nos chamavam a atenção. Uma das manifestações recorrentes era a de que os maridos, companheiros ou namorados, em geral, não apoiavam a denúncia e nem as acompanhavam no trajeto institucional e legal (procura pela polícia, justiça e outras instituições de defesa de direitos), o que contribuía para aumentar os sentimentos de solidão e de que se encontravam ainda mais vulneráveis ou ameaçadas.

Nosso sentido de responsabilidade e comprometimento com as pessoas que procuram o programa, revelando sentimentos e sofrimentos silenciados, foi fortalecendo a convicção de que tínhamos a obrigação de ir além do acolhimento realizado.

2 A realização do estudo

A escuta privilegiada que nos foi proporcionada por meio dessa ação, foi a origem do estudo nomeado Construção das Identidades e Modos de Subjetivação de Mulheres Negras: Efeitos da Discriminação Racial. A pesquisa desenvolvida nesse serviço foi uma das formas pensadas para avançar nas intervenções e ir além da necessária escuta que realizamos. O estudo foi desenvolvido a partir das construções teóricas da Saúde Coletiva e da Psicologia Social. A saúde, entendida na sua integralidade, pareceu-nos uma área que poderia contemplar o desejo de entender e planejar ações que pudessem acionar alguma transformação para a vida das pessoas que buscavam atendimento na ONG. Também sentíamos a forte convicção de que passaríamos por transformações em nossa própria vida, já que partilhávamos do pertencimento racial e de gênero das informantes desse estudo.

A pesquisa se caracterizou por ser um estudo de abordagem qualitativa com a metodologia de formação de grupos de mulheres. Assim, a formação do grupo foi pensada para ser mais uma ferramenta a ser utilizada como intervenção do programa após o término da pesquisa. Minayo (1997) aponta algumas peculiaridades da metodologia da pesquisa social: uma delas é a identidade entre sujeitos e objeto de investigação. A pesquisa social investiga seres humanos que têm um substrato comum, possibilitando o envolvimento destes sujeitos. Outra característica, dessa metodologia, é seu caráter político, à medida que se assume que toda ciência é comprometida. Nossa condição de mulher negra, certamente, contribuiu para um melhor posicionamento como pesquisadora, possibilitando empatia e compreensão dos sentimentos e repercussões provocadas pelas condutas discriminatórias relatadas pelas mulheres que realizam as denúncias no programa e participaram dos grupos.

As intervenções realizadas através da metodologia de grupos de mulheres já vêm sendo utilizadas no trabalho das questões de gênero e da violência contra as mulheres. Essa ferramenta, introduzida pelo movimento feminista, vem tomando lugar na pesquisa e na construção de conhecimento. Os grupos de mulheres oportunizam a reflexão sobre saúde e direitos humanos, reforçam o poder de negociação nas relações conjugais e a participação comunitária. Visam, assim, o fortalecimento das mulheres e o exercício da plena cidadania.

O referencial teórico-metodológico desse estudo abrange o referencial do grupo dispositivo, baseado em Benevides Barros (1994; 1997); e, em segundo lugar, o referencial da análise das práticas discursivas, baseado em Spink (1999), Iñiguez (2004), e Bernardes (2004).

Os primeiros formuladores do grupo dispositivo partiram dos referenciais da Análise Institucional Socioanalítica, que desde a metade do século XX, começou a contribuir para a abordagem dos fenômenos sociais que colocasse em cheque o jogo de interesses e de poder encontrados no campo da pesquisa. Estava se formando o projeto político da pesquisa-intervenção, que se propõe ao reequacionamento da relação sujeito-objeto e o redirecionamento da relação teoria-prática (Paulon, 2002). O projeto desse estudo foi alinhado à proposta de pesquisa-intervenção quando busca construir uma ação grupal estimuladora de estratégias de enfrentamento à discriminação racial.

Acreditamos que o referencial do grupo dispositivo oportunizou a produção de sentidos sobre as violências raciais sofridas e os efeitos produzidos a partir daí. O grupo também possibilitou a produção de narrativas de resistência e estratégias de enfrentamento das discriminações. Benevides Barros (1997) coloca que o que caracteriza um dispositivo é sua capacidade de irrupção naquilo que se encontra bloqueado de criar, é o seu teor de liberdade em se desfazer dos códigos que procuram explicar dando a tudo o mesmo sentido.

Os grupos representam um caminho para a construção de estratégias coletivas de resistência para as mulheres. O grupo é uma estrutura básica de trabalho e investigação, assim como uma instância de ancoragem do cotidiano. As forças interacionais internas dos grupos implicam em sustentação e apoio sócio-emocional, no fortalecimento das interações emocionais, na comunicação aberta, no compromisso e responsabilidade, na participação efetiva e na construção de uma individualidade crítica (Meneghel e cols. 2000).

Portanto, o grupo dispositivo, não se reduz a uma técnica de pesquisa, ao contrário, vai além do exercício de produção de uma dissertação, apresentando, a todo o momento, o posicionamento da pesquisadora. Maraschin (2004), argumenta que a pesquisa-intervenção deve se constituir como inovação, ao propor perspectivas metodológicas capazes de sustentar ações de intervenção para além da pesquisa propriamente dita.

A análise dos diálogos produzido nos grupos foi fundamentada pelo referencial teórico-metodológico da análise das práticas discursivas. Segundo Bernardes (2004) as práticas discursivas são compreendidas como a linguagem em uso, isto é, a forma pela qual as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas relações sociais cotidianas.

Iñiguez (2004) coloca que a linguagem assumiu um protagonismo nas ciências sociais nos últimos anos. Um dos eixos que fundamenta essa perspectiva é o giro lingüístico, porque fez surgir a possibilidade de a ação científica ser considerada como uma prática social equivalente a qualquer outro tipo de ação social. O autor considera relevante que, além de ser uma alternativa teórico-metodológica, a reflexão teórica que deu origem à Análise de Discurso é uma perspectiva a partir da qual se analisam os processos sociais.

Para a realização do estudo e constituição do grupo da pesquisa, foram convidadas oito mulheres que haviam realizado denúncia de discriminação racial no programa SOS Racismo. Foi utilizado o critério de convidar quatro mulheres que estavam vinculadas ao atendimento psicossocial no momento da realização dos grupos e outras quatro que haviam realizado a denúncia há mais de seis meses e já se encontravam afastadas. O convite para as primeiras foi realizado durante as entrevistas de acolhimento e acompanhamento; as segundas foram procuradas por telefone e duas precisaram ser substituídas porque não foram encontradas. Realizamos os convites, explicamos os objetivos da pesquisa e a liberdade das participantes se retirarem do estudo a qualquer momento, se assim julgassem conveniente. Em geral, elas manifestaram satisfação pelo convite para participar e algumas verbalizaram agradecimento por terem sido lembradas e contar com mais essa oportunidade de participar de uma atividade do programa.

As mulheres convidadas poderiam ser consideradas de classe média baixa. Todas vivendo em condições adequadas de habitação, saúde e com acesso a atividades sociais e de lazer. Duas delas residem em municípios da região metropolitana de Porto Alegre, outras em bairros mais afastados do centro e uma com residência em bairro considerado de classe média. A maioria delas se autodeclararam negras na ficha de identificação inicial e uma se considerou parda.

O grupo foi estimulado a falar sobre os efeitos causados em suas vidas pelos episódios de racismo e discriminação racial sofridos. Foram realizados com freqüência semanal e duração em torno de 5 sessões. Os diálogos dos grupos foram gravados e transcritos.

3 O percurso do grupo

Feitos os convites e acertada a data do primeiro encontro, iniciamos os grupos no mês de janeiro de 2006. Sabíamos que havíamos assumido o risco de ausência das participantes ao escolhermos trabalhar com um número reduzido de mulheres e consideramos a opção adequada para priorizar a qualidade do trabalho. Na hora combinada, chegaram duas mulheres; uma afastada do programa há mais de um ano e outra que retornava de tempos em tempos ao longo de seis meses. Iniciamos o grupo com a sugestão de nos apresentarmos e falarmos sobre a pesquisa no sentido de explicitar dúvidas que elas pudessem ter. No transcorrer das atividades do grupo foram chegando, sucessivamente, outras três mulheres e, a cada entrada, repetimos a apresentação, o que fez com que repetissem, também, o motivo que as trouxe ao programa, ainda que isso não tenha sido solicitado. Nesse primeiro grupo foram verbalizados sentimentos de tristeza, raiva pelo acontecimento da discriminação racial, sensação de vergonha e humilhação, receio de que a violência pudesse acontecer novamente. Ouvimos também a narrativa de comportamentos de evitar os locais onde os episódios aconteceram, caracterizando o repertório lingüístico da discriminação racial.

O segundo encontro foi analisado à luz das práticas discursivas e nele começara, a ser enunciadas estratégias de enfrentamento e resistência. A apresentação de cada participante foi retomada, agora com uma técnica de grupo e registrou-se a presença de duas outras mulheres que não estavam no primeiro encontro e a ausência de outras duas que não retornaram. Entendendo os diálogos sob a perspectiva das práticas discursivas, consideramos que as falas da pesquisadora, assim como as das demais participantes, estiveram atravessadas, ora pelas referências identitárias autônomas e ora pelo assujeitamento que caracterizou algumas situações verbalizadas pelas participantes.

O terceiro encontro caracterizou-se pela reflexão sobre como lidar com as condutas discriminatórias a partir da discussão pautada em jargões que representam estereótipos acerca da população negra e das mulheres negras em particular. Neste momento os repertórios usados diziam sobre modos de subjetivação e das estratégias de resistência. A reflexão estimulada pelas frases que repetiam estereótipos a respeito de raça e discriminação trouxe à tona a discussão sobre as formas de reação possíveis para realizar o enfrentamento dessas violências. Além disso, as participantes reconheceram e avaliaram o conjunto de estratégias de resistência criado pelas mulheres negras.

4 Refletindo sobre a análise e avaliando o processo

Nesse trabalho utilizamos os mapas dialógicos como ferramenta para a análise das práticas discursivas que são instrumentos de visualização do processo de interanimação que permitem entender as múltiplas modalidades de diálogos e constituem uma ferramenta para evidenciar as categorias ou temas principais do estudo. Os mapas foram utilizados como o manancial a partir do qual identificamos os repertórios lingüísticos ou unidades analíticas básicas do discurso, utilizadas nas falas cotidianas das pessoas com as quais se trabalha, e compreendem vocábulos, expressões, figuras de linguagem tais como metáforas, metonímias e termos utilizados pelos falantes. Nos diálogos produzidos durante a intervenção identificamos três repertórios: o da discriminação racial, o dos modos de subjetivação e identidades e o das estratégias de enfrentamento e resistência.

Em diversos momentos nos grupos, as mulheres disseram que gostariam de participar de outros possíveis grupos, atuando como multiplicadoras que poderiam acolher pessoas recém-chegadas ao programa, pois saberiam entender e lidar com a situação da discriminação.

O grupo dispositivo foi pensado, para além da pesquisa, como mais uma forma de intervenção do programa SOS Racismo, pois avaliamos que a vivência da discriminação racial é sentida como algo único e solitário. Assim, consideramos que a escuta da narrativa de experiências semelhantes, facilitaria a capacidade das participantes compartilharem sentimentos comuns. O grupo potencializou as estratégias de enfrentamento à violência racial ao oportunizar a troca das vivências, fazendo com que a queixa privada passasse para a dimensão pública e constituindo um espaço de construção de referências identitárias autônomas e de outros modos de subjetivação. O que parece efetivamente ter acontecido, confirmando o significado das intervenções grupais que representa um aporte qualitativo e um avanço nas ações da ONG no que se refere ao atendimento de denúncias de racismo e discriminação racial.

A construção de um saber que inclua a violência racial como uma forma de violência contra as mulheres, produzido à luz dos pressupostos teóricos da Saúde Coletiva, precisa ser incorporada ao cotidiano da assistência e à implementação de políticas públicas para o combate à violência contra as mulheres. Os saberes e conhecimentos produzidos têm-se mostrados importantes para fundamentar as, tão necessárias, ações em saúde para o segmento das mulheres negras.

As intervenções de grupo, a partir desse estudo, foram reforçadas como metodologias adequadas aos atendimentos realizados nas diferentes ações desenvolvidas pela ONG. Estamos desenvolvendo o atendimento no programa SOS Racismo também através da realização de grupos. Ainda não conseguimos operacionalizar a participação de usuárias/os antigas do programa na acolhida de usuárias/os novas/vos, nos moldes apontados pelas próprias informantes, mas acreditamos que essa participação venha a contribuir para mais um aspecto de qualificação de nossas ações.

5 Referencias

Barros, Regina Benevides (1997). Dispositivos em ação: o grupo. In Silva, A. E. (Ed.) Saúde Loucura: subjetividade – questões contemporâneas. São Paulo: HUCITEC.

Bernardes, Jefferson S. (2004). O debate atual sobre a formação em psicologia no Brasil – permanências, rupturas e cooptações nas políticas educacionais. Tese de Doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social. PUCSP, São Paulo, Brasil.

Carneiro, Sueli (2003). Mulheres negras, violência e pobreza. In AA.VV. Programa de prevenção, assistência e combate à violência contra a mulher – Plano nacional diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas para as mulheres. Brasília: A Secretaria.

Costa, A. da S. e Oliveira, Maria Luisa P. de. (2003). SOS Racismo– Desconstruindo o Racismo na Sociedade Brasileira. Acessado em 21.11.2004 em: http://www.rizoma.ufsc.br/semint/trabalho.

Íñiguez, Lupicinio (2004). Os fundamentos da Análise do Discurso. In Lupicinio Iñiguez, (Ed.) Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais. Petrópolis:Vozes.

Meneghel, Stela N.; Armani Teresa; Severino, Rosa. (2000). Cotidiano Violento – oficinas de promoção em saúde mental em Porto Alegre. Ciência e Saúde Coletiva, 5 (1):193-200.

Minayo, Maria Cecília (1997). Pesquisa social – teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes.

Paulon, Simone Mainiere (2002). A análise de implicação como ferramenta na pesquisa-intervenção. Porto Alegre: manuscrito no publicado.

SMED (2001). Cultura e Trabalho: histórias sobre o negro no Brasil. Prefeitura Municipal de Porto Alegre: Porto Alegre.

Spink, Mary Jane; Lima H. (2004). Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação. In Spink, Mary Jane (Ed.) Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. São Paulo: Cortez.