Políticas educacionais para uma a democratização do acesso à ciência e tecnologia

Educational policy for the democratization of access to science and technology

  • Alvori Ahlert
No contexto dos ataques privatistas sofridos pela educação, hegemonizadas pelo neoliberalismo durante as décadas de 80 e 90, este texto pergunta pelas possibilidades de contribuição da educação como política pública na construção de uma cidadania participativa e democrática. No contexto da ciência e tecnologia, esta educação precisa estar sustentada em princípios de justiça e igualdade de direitos como uma educação pública, gratuita e universal de qualidade e um acesso para todos aos acúmulos científicos e tecnológicos. Políticas públicas, educação, cidadania, tecnologia.
    Palavras chave:
  • Políticas públicas
  • Educação
  • Cidadania
  • Tecnologia
State educational services suffered a plague of privatisation during the 1980s and 1990s, inspired by the neoliberal hegemony of the time. This article looks into what contribution education can make to the construction of an informed, and participative democracy. The teaching of science and technology needs to be based on principles of justice and equality, and, to ensure that all have equal opportunity to reach the highest levels, should be public, free and of high quality.
    Keywords:
  • Social Policy
  • Education
  • Citizenship
  • Technology

1 Introdução

Políticas educacionais integram as políticas públicas que são as ações empreendidas pelo Estado para efetivar as prescrições constitucionais sobre as necessidades da sociedade em termos de distribuição e redistribuição das riquezas, dos bens e serviços sociais no âmbito federal, estadual e municipal. Para Cunha e Cunha, “As políticas públicas têm sido criadas como resposta do Estado às demandas que emergem da sociedade e do seu próprio interior, sendo a expressão do compromisso público de atuação numa determinada área a longo prazo.” (CUNHA e CUNHA, 2002, p.12) Sua construção obedece a um conjunto de prioridades, princípios, objetivos, normas e diretrizes bem definidos.

Entretanto, numa sociedade de conflitos e interesses de classe, elas são o resultado do jogo de poder determinado por leis, normas, métodos e conteúdos que são produzidas pela interação de agentes de pressão que disputam o Estado. Estes agentes são os políticos, os partidos políticos, os empresários, os sindicatos, as organizações sociais e civis. Neste contexto, a educação sofreu grande influência nas últimas décadas, incorporando o ideário neoliberal nas políticas educacionais empreendidas pelos Estados orientados por estas concepções.

2 As reformas educacionais no bojo dos programas neoliberais

A grande depressão na década de 30 atingiu duramente o sistema capitalista1. Na década de 60 e início dos anos 70, após um breve período de reação e crescimento, o sistema voltou a sentir um processo depressivo na economia. Uma das características gerais dessa depressão foi a queda significativa da taxa de crescimento, de renda nacional e de produção. Isto trouxe uma grande onda de desemprego. Era, portanto, o momento de se experimentar novas formas de organização do trabalho, da produção e do gerenciamento de negócios, e um novo modelo de Estado dentro do sistema capitalista mundial.

Surge agora o neoliberalismo antiestatal que corresponde a esta nova visão do sistema mundial. A ideologia imperial das décadas anteriores era mais a de um capitalismo intervencionista, que sustenta toda uma política reformista do Estado burguês. A Aliança para o Progresso é uma das expressões desta orientação política geral. É no final dos anos 60, e especialmente durante os anos 70, que muda profundamente esta orientação. Aparece então um ceticismo profundo em relação ao intervencionismo capitalista e surge a impressão de que o reformismo do Estado burguês tende a subverter o próprio caráter burguês da sociedade. O próprio reformismo burguês parece ter uma lógica que acabará destruindo a sociedade burguesa. (Hinkelammert, 1983, pp.100-101).

As idéias neoliberais no campo acadêmico tiveram sua origem com Friedrich Hayek, que em 1944, lançou o livro intitulado O Caminho da Servidão. Hayek analisou o modelo de Estado soviético e o modelo de Estado nazista e concluiu que nas sociedades onde o Estado avançasse cada vez mais sobre o controle do sistema, necessariamente viria a ter início uma sociedade servil. Sob esta ótica analisou todo o modelo social, político e educacional. Friedrich Hayek e Milton Friedmann atacam o gigantismo do Estado e propõem sua redução ao máximo para dar toda a liberdade ao mercado. O livre mercado deve auto-regular-se, com leis próprias dentro da oferta e procura dos grandes mercados consumidores. Segundo eles, é preciso minimizar o Estado.

São as políticas públicas de um Estado forte, intervencionista, que Hayek passou a criticar. Juntamente com Milton Friedmann e Karl Popper, constituiu uma sociedade de intelectuais para pensar as novas concepções filosóficas com o objetivo de salvar o sistema capitalista do seu próprio declínio.

Estas políticas públicas foram globalizadas pelo neoliberalismo e levaram grandes contingentes humanos a uma brutal exclusão social. Conforme Escorel, esta exclusão ocorre através de dois eixos principais: o mundo do trabalho e o mundo das relações sociais, e em âmbito político (cidadania) e cultural. Escorel define como exclusão social aquelas “[...] situações e condições nas quais há um processo social ativo de discriminação, estigmatização e expulsão de um conjunto de âmbitos sociais não determinado por decisões individuais.” (Escorel, 1995, p.6) O Desenvolvimento Humano – DH de meados da década de 90 testefica os resultados mais agudos destas políticas de concentração de renda e poder. Segundo dados da ONU, que fazem parte do Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU), coletados em 101 países em desenvolvimento, 21% destas populações está abaixo da linha de pobreza e 37% sofre privação de capacidade, isto é, pessoas que não possuem instrução, condições de saúde e alimentação adequada, submetidas a níveis degradantes de qualidade de vida. São cerca de 1,6 bilhão de miseráveis entre estas populações. (Cf. ONU dimensiona..., Zero Hora, 19/06/1996, p.41).

Mas o neoliberalismo não se refere somente a questões econômicas, comércio internacional e proteção aos blocos econômicos. Ele é um programa global e filosófico que atenta para todas as esferas da vida humana. Uma de suas áreas estratégicas, e que nos interessa aqui, é a educação. Para Azevedo, a política educacional apregoada pelos neoliberais exige novas regras para a educação. “Postula-se que os poderes públicos devem transferir ou dividir suas responsabilidades administrativas com o setor privado, um meio de estimular a competição e o aquecimento do mercado, mantendo-se o padrão de qualidade na oferta dos serviços.” (Azevedo, 2001, p.15)

A educação passou a significar um papel estratégico para o projeto neoliberal. Os governos liberais passaram a intervir sobre o sistema educacional consorciados com as empresas privadas. Buscou-se fazer isto de duas formas: direcionando a formação para atender aos objetivos da produção capitalista preparando pessoas para o local de trabalho, com uma visão meramente tecnológica, e, por outro lado, usa-se também a educação como meio para a difusão do liberalismo como a única forma de organização social por meio da livre iniciativa e do livre mercado.

A concepção neoliberal no contexto das políticas públicas passou a forçar melhores desempenhos educacionais básicos nos países em desenvolvimento para dar condições para a globalização. Organismos internacionais, como o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD, deram prioridade ao financiamento da Educação Básica.

O BIRD no Brasil, concedeu empréstimos para a educação escolar, associado a outros Organismos, a partir de 1971. Dos cinco projetos aprovados de 111971 a 1990, dois foram especificamente para a Educação Básica, compreendida sempre pelo Banco como educação do primeiro ciclo do ensino fundamental ou o ciclo como um todo. E nos anos 90, os seis projetos em andamento foram direcionados para a Educação Básica. (Nogueira, 1999, p.164)

Tudo é mercantilizado. A vida é mercantilizada e como produto é padronizada. Não há nenhum respeito para com as diferenças regionais, a cultura, o saber local. Tudo cabe numa pesquisa e a partir daí se resolvem todos os problemas da educação. Instiga-se a sociedade a exigir qualidade em educação. Os professores são culpados pela sua ausência, mas sua remuneração é miserável. Privatizando, transforma-se a educação em produto comercializável em qualquer esquina, ou, como diz Michael Apple, “A escola virou supermercado. Porque as elites dominantes do mundo têm tratado a educação como tal. Quem tem dinheiro entra e compra. Quem não tem fica do lado de fora, olhando o grupo privilegiado aproveitar o que comprou.”2

O processo privatista é um programa sincronizado que perpassa todos os instrumentos que compõem a força ideológica do neoliberalismo. O planejamento prevê a necessidade de reestruturar as condições produtivas, o que demanda uma mão de obra mais qualificada. Daí que os projetos de financiamento externo para a educação voltam-se todos para a Educação Básica. (NOGUEIRA, 1999, p.143-166) E no melhor estilo positivista, parte-se para quadros comparativos como as apresentadas periodicamente nas revistas da Editora Abril, a principal divulgadora do ideário neoliberal. Na já citada edição da revista Exame, Nely Caixeta, ovacionando o crescimento econômico de países asiáticos, como Cingapura e Coréia do Sul, assevera que,

Enquanto países como o Brasil e a Índia deram ênfase ao ensino universitário, a Coréia e seus vizinhos preferiram centrar a atenção no ensino fundamental, que é compulsório, mas gratuito só até a quinta série. A partir daí, as famílias arcam com 40% dos custos de manter seus filhos nas escolas até o final da 8a série. Hoje, apenas 10% dos recursos destinados à educação ficam com as universidades. O restante é canalizado para o ensino básico. Aí está a medida que deveria ser copiada integralmente pelos brasileiros. (CAIXETA, 1997, p.14)

Na mesma direção bate o, então diretor do Banco da Bahia e professor de economia da Fundação Getúlio Vargas, Sérgio Ribeiro da Costa Werlang. Defendendo a política de privatização do Ensino Superior, afirma que, “Os recursos públicos que fossem poupados com essa política deveriam ser direcionados para os níveis mais básicos de ensino – especialmente o primário 1 e o secundário. O investimento no primário 1 é, de longe, o mais importante.” (WERLANG, 1997, p.334)

A mesma cantilena é retomada constantemente pela revista Veja, como a edição de 27 de agosto de 2003, onde Mônica Weinberg (2003, p.104-107) desafia ao Brasil repetir a experiência da Coréia do Sul em educação.

Estas posições orquestradas objetivam preparar o caminho para as grandes transformações que os Estados Unidos, com o apoio do Japão, Nova Zelândia e Austrália, estão propondo para o campo educacional, o seja, transformar a educação, historicamente entendia como um direito, em serviço, entenda-se negócio, dentro das normas da Organização Mundial do Comércio – OMC. “A idéia é que os serviços de ensino sejam comercializados livremente, facilitando operações como a atuação de grupos educacionais estrangeiros e a aprovação de cursos a distância.”3 A principal área de interesse é o ensino superior. Segundo Leandro Rodrigues, “A intenção é de que ensino superior entre na roda do comércio mundial como um produto qualquer, riscando o principal do texto da Declaração Mundial sobre a Educação Superior no Século XXI, aprovada durante a Conferência Mundial de Ensino Superior, em 1998, que diz que a educação superior é um serviço público.” (2003, p.15)

Esta ofensiva neoliberal da OMC contra a educação pública foi a principal preocupação no 2o Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, em janeiro de 2003. A seguir reproduzimos partes das entrevistas concedidas pelos principais conferencista do Fórum:

“As estratégias da Organização Mundial do Comércio, ao contrário do que reza a cartilha do discurso único da globalização que se apresenta como abertura de fronteiras, constitui-se num poderoso organismo de mundialização do grande capital para impor ao mundo os seus produtos. Mediante o monopólio de patentes em mãos de um reduzidíssimo número de países e, sobretudo, mega organizações mundiais, instauram uma nova fase de dependência e de colonização. Este é o objetivo fundamental da ALCA: Abrir o mercado especialmente para os negócios das grandes empresas americanas.”4

“O deslocamento de uma definição de educação como um ‘direito’ para a sua conceptualização enquanto ‘serviço’ tem visado, em vários países, fragilizar e reduzir os direitos sociais e de cidadania, retirando do Estado o papel central de garantia do direito à educação, diminuindo ou suspendendo as suas obrigações em termos de provisão e financiamento da educação pública e, por essa via, abrindo caminhos para medidas de liberalização e privatização.”5

No entanto, esta avalanche privatista não pode paralizar a sociedade, sobretudo aos educadores. É necessário reunir forças em toda a sociedade para fazer frente a esta ameaça mais ou menos próxima. Significa, sob a experiência de um governo democrático e popular, ampliar e aprofundar os debates para construir proposições a partir das experiências acumuladas pelos inúmeros fóruns sobre educação realizados nacional, estadual e municipalmente em todo o país que definam políticas públicas em educação que garantam uma escola e uma universidade, democráticas, cidadãs, públicas e univresais de qualidade. Fundamentalmente, isso passa pela radicalização da democracia participativa. E a educação deve ser seu ensaio e experiência fundante.

3 A cidadania participativa como caminho para a construção de políticas públicas educacionais

A cidadania é hoje um termo popularizado. As três últimas décadas permitiram o crescimento do debate das grandes questões sociais voltadas para a construção de mais cidadania. Entretanto, proporcionalmente a velocidade com que se popularizou, o termo cidadania tornou-se refém do discurso das elites, que têm mantido o poder com toda a astúcia que lhes é própria. Elas incorporaram o termo aos seus discursos de promessa para enganar o povo e o manter sob o domínio de seus interesses. O melhor viés que seus teóricos encontraram para “camuflar” seus interesses foi através da educação, transformando-a na terapia para a cura dos males da exclusão.

Por outro lado, a cidadania é uma das grandes questões da educação, mas esta concepção traz justamente o perigo de uma abstração deste conceito. (FERREIRA, 1993, p.6) Daí a necessidade de construir uma definição para um consenso mínimo sobre seu significado no contexto educacional, para que esse conceito permita significar os valores e objetivos necessários para a sua vivência.

As raízes da cidadania estão na sociedade grega, mais especificamente na cidade grega.6 Cidadania significava viver e participar da vida da cidade; viver e participar da associação de pequenos núcleos de vida: a família, a fratria, a tribo. Na sociedade grega a democracia era direta, não havia representantes do povo, cada cidadão tinha acesso às assembléias onde podia argumentar suas posições. Mas, o conceito de cidadania ampliou-se para além da questão de viver a cidade. O cidadão passou a se ligar ao Estado; com essa ligação ampliaram-se os direitos e os deveres para o cidadão. Foram os romanos que deram uma definição, um significado jurídico ao termo. Moura Ramos, citado por Libâneo (1995, p.18), afirma que, “A cidadania (o status civitatis dos romanos) é o vínculo jurídico-político que, traduzindo a pertença de um indivíduo ao Estado, o constitui perante este num particular conjunto de direitos e obrigações [...] A cidadania exprime assim um vínculo de caráter jurídico entre um indivíduo e uma entidade política: o Estado.”

A modernidade, inaugurando a nova sociedade da democracia burguesa, vinculou a cidadania com os direitos de liberdade, de pensamento, de religião, de comércio, de produção, de propriedade privada. Individualizando o indivíduo, alienando-o dos outros pares, a burguesia pôde limitar o alcance da cidadania. Marx, nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, tratando da Questão Judaica mostra que a Declaração dos Direitos do Homem, de 1793, reduz a questão da cidadania a questões políticas. “O assunto torna-se ainda mais incompreensível ao observarmos que os libertadores políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples meio para preservar os chamados direitos do homem.” (MARX, 1989, p.58)

Leia-se, portanto, direitos do homem burguês. Para o autor, o homem egoísta da sociedade civil burguesa é o homem natural. A revolução política, a mera defesa da questão política apenas dissolve a sociedade civil sem revolucionar o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados. Para o liberalismo e o neoliberalismo, a cidadania está centrada no princípio individualista onde cada qual cuida dos próprios interesses.

Já para a crítica marxista, a cidadania requer a responsabilidade de uns pelos outros. Comparato, no prefácio do livro de Pinsky, caracteriza a diferença entre a perspectiva capitalista e a socialista.

Para o socialismo, muito ao contrário, constitui rematado absurdo imaginar que a harmonia social pode resultar de uma concorrência de egoísmos. Sem o respeito ao princípio de solidariedade (solidum, em latim, significa a totalidade), isto é, sem que cada cidadão seja, efetivamente, responsável pelo bem-estar de todos, jamais se chegará a construir uma sociedade livre e igualitária. (COMPARATO, 1999, p.12)

As idéias acima expostas evidenciam que a cidadania não se dá por decreto. A cidadania não pode ser visualizada como algo dado, pois seus pressupostos são a história e a filosofia. Ela se permite ver, notar, conceituar, quando é vivida, exercida pelo cidadão. (FERREIRA, 1993, p. 19) Cidadania implica em uma luta ferrenha dos seres humanos para serem mais seres humanos; significa a luta pela busca da liberdade, da construção diária da liberdade no encontro com o outro, no embate pelos espaços que permitam a vivência plena da dignidade humana. A cidadania compõe-se de um conjunto de direitos fundamentais para a existência plena da vida humana: direitos civis, que significam o domínio sobre o próprio corpo, a livre locomoção, a segurança; direitos sociais que garantam atendimento às necessidades humanas básicas, como: alimentação, habitação, saúde, educação, trabalho e salário dignos; direitos políticos para que a pessoa possa deliberar sobre sua própria vida, expressar-se com liberdade no campo da cultura, da religião, da política, da sexualidade e, participar livremente de sindicatos, partidos, associações, movimentos sociais, conselhos populares, etc. (MAZINI-COVRE, 1998, p.11-15) Braga, discutindo a qualidade de vida urbana e cidadania, resume bem um conceito atual de cidadania necessária.

O sociólogo britânico T. H. Marshall, em seu conhecido ensaio ‘Classe Social e Cidadania’, definiu a cidadania como um conjunto de direitos que podem ser agrupados em três elementos: o civil, o político e o social, os quais não surgiram simultaneamente, mas sucessivamente, desde o século XVIII, até o século XX.

O elemento civil é composto daqueles direitos relativos à liberdade individual: o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa e pensamento, o discutido direito à propriedade, em suma, o direito à justiça (que deve ser igual para todos). O elemento político compreende o direito de exercer o poder político, seja indiretamente como eleitor. O elemento social compreende tanto o direito a um padrão mínimo de bem-estar econômico e segurança, quanto o direito de acesso aos bens culturais e à chamada ‘vida civilizada’, ou seja, é o direito não só ao bem estar material, mas ao cultural. (BRAGA, 2002, p.2)

Na mesma medida, a cidadania exige o exercício de deveres para que os próprios direitos se efetivem. Isto significa que cada indivíduo deve fomentar a busca e a construção coletiva dos direitos; o exercício da responsabilidade com a coletividade; o cumprimento de regras e de normas de convivência, produção, gestão e consumo estabelecidos pela coletividade; a busca efetiva de participação na política para controlar seus governos eleitos dentro de princípios democráticos.

Teixeira e Vale (2000, p.24-27) dão uma definição de cidadania que não permite uma abstração teórica. Entendem que a cidadania não pode estar desvinculada das reais condições sociais, políticas e econômicas que constituem a sociedade. Para uma cidadania efetiva reúnem algumas categorias indispensáveis para o exercício da cidadania que implica, em primeiro lugar, na participação organizada para que as pessoas não sejam objetos da ação, mas, sujeitos da prática política da comunidade até a do Governo Federal. Por isso, ela é conquista e, como tal, torna-se o próprio processo emancipatório. A emancipação do ser humano é um processo contínuo de transformação da sociedade de exclusão. Segundo Adorno,

[...] uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipada. Numa democracia, quem defende ideais contrários à emancipação e, portanto, contrários à decisão consciente independente de cada pessoa em particular, é um antidemocrata, até mesmo se as idéias que correspondem a seus desígnios são difundidas no plano formal da democracia. (Adorno, 1995, pp. 141-142)

A vivência da democracia exige uma crescente organização da sociedade civil para possibilitar e aprofundar a participação de todas as pessoas. A democracia vai além da democracia representativa que tem mantido no poder as elites dominantes. A história da democracia brasileira, pautada na democracia representativa, tem permitido o controle do Estado sobre a população, quando a verdadeira democracia é a democracia direta na qual o Estado está sob o controle da população. O exercício mais efetivo deste processo democrático tem sido o orçamento participativo que vem sendo praticado em várias cidades e estados do País; trata-se de decisões políticas para a aplicação de recursos e distribuição de renda, conforme as necessidades das comunidades organizadas através de conselhos populares.

O que se trata é de democratizar radicalmente a democracia, de criar mecanismos para que ela corresponda aos interesses da ampla maioria da população e de criar instituições novas, pela reforma ou pela ruptura, que permitam que as decisões sobre o futuro sejam decisões sempre compartilhadas. (Genro, 2001,p.18)

Tal proposta permite uma nova relação com as questões tradicionais referentes às outras duas categorias fundamentais da cidadania: os direitos e deveres, já anteriormente tratados. Levando a um crescendo, entra em cena uma nova categoria que é a questão do saber. Dominar os conteúdos da cultura e construir novos conhecimentos a partir deles, para dentro do contexto das necessidades das populações, significa ter na educação seu principal instrumento, e no resgate dos valores humanitários como a solidariedade, a consciência do compromisso para com o bem-estar de todos, a fraternidade e a reciprocidade, a urgência mais fundamental.

4 A modo de conclusão alguns princípios para a construção de políticas públicas democráticas e cidadãs para a educação no contexto da ciência e tecnologia

Para garantir uma educação libertadora e emancipacionista, e não apenas de adaptação do indivíduo à sociedade constituída, não podemos cair no erro histórico de educar apenas para o trabalho, pois isto significaria que a cidadania se reduziria ao trabalho. Por isso a Educação Básica não pode ser carregada com a marca meramente da formação para o trabalho no contexto da ciência e tecnologia. Daí a necessidade de construir políticas públicas em educação que possibilitem formações em educação básica envolvendo ciência, tecnologias encharcadas de uma ética universal do ser humano, pois a situação na qual os seres humanos e seu entorno ambiental se encontram constitui-se em urgente campo para reflexão e questionamentos éticos. Trata-se de uma realidade que reclama uma postura. O ser humano necessita urgentemente de critérios para sua ação no mundo mediatizado pela ciência e pela tecnologia, que cada vez mais adentra o desconhecido. Andreola, fundamentado em Boff, Mounier e Ricouer, denomina-a de “ética das grandes urgências”, e questiona o avanço da ciência desconectada da ética.

“É possível pensar uma ciência neutra com relação à ética?” Ou numa dimensão mais decisiva ainda: ‘Pode-se pensar em autonomia da ciência com relação à ética?’ Reconhecendo, embora, que o assunto é polêmico, eu responderia decididamente à segunda questão – ficando, por isso, respondida também a primeira – não é possível uma ciência autônoma. Ou ela é uma ciência comprometida com a vida, em todas as suas formas e dimensões, ou então não se justifica como ciência, (...) O progresso científico, fruto das magníficas descobertas e criações da inteligência humana, em si mesmo está destinado a melhorar as condições de vida dos seres humanos, individualmente, e da humanidade no seu conjunto. Mas isso não acontece automaticamente. Os avanços da ciência levantam numerosas e graves questões éticas. Como tais questões serão respondidas, no nível da reflexão teórica e no nível da ação, é uma pergunta cuja resposta não pode ser dada pela própria ciência. (ANDREOLA, 2001, p. 33)

Educar com interesse para o trabalho nos moldes da sociedade pós-industrial seria assumir uma postura cínica e farisaica, pois a sociedade capitalista, calcada sobre uma ciência tecnologizada e instrumentalizada, tem sido a principal responsável pelo desemprego estrutural cada vez mais crescente no mundo. É um desemprego decorrente da globalização da economia e dos avanços tecnológicos. Por isso, Paulo Freire reivindica a dimensão da ética universal do ser humano para a ciência e a tecnologia.

O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. (FREIRE, 2003, p.130)

Neste sentido, a escola pública tem a tarefa de propiciar aos seus alunos o encontro com a ciência e a tecnologia, para proporcionar aos educadores e educandos a construção de conhecimentos contra-hegemônicos, a exercitarem de forma ativa e reflexiva as novas formas de interação com o meio na intencionalidade de desenvolver habilidades e competências capazes de emancipação. Isso deveria nos levar a definir no Plano Estadual de Educação políticas públicas que defendam o acesso às tecnologias para toda a rede pública estadual para possibilitar a qualificação e a inclusão social. Significa colocar as escolas e as universidades em rede em toda a nossa região com equipamentos de última geração, e não sucatas doadas ou vendidas por empresas que já as consideram obsoletas. Significa construir uma relação de cooperação científica e técnica entre as universidades e as escolas para que o conhecimento seja uma construção dialética, profundamente imbricada com a realidade regional.

Por tudo isso, está colocado ao conjunto de educadores, educandos e demais envolvidos no processo de educacional, a tarefa fundamental de resistência contra o neoliberalismo e seus ataques à educação pública, e a efetiva tarefa de construir alternativas para uma educação pública e universal de qualidade mediante políticas educacionais democraticamente decididas e elaboradas. Políticas que tenham a educação como um direito de todos os cidadãos, a participação popular como seu método de gestão, o diálogo como princípio ético-existencial, a radicalização da democracia através de gestões públicas participativas e a utopia de que Um Outro Mundo é Possível, como tem sido o sonho da resistência social organizada desde o II Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, em 2002. E o ponto de partida para essa construção deveriam ser constituintes municipais e estadual de educação, que precisam ser reivindicadas pela comunidade escolar e universitária.

O princípio fundamental a ser assumido é o da democracia participativa, que reafirme a educação como um direito de todos os cidadãos; que tenha uma concepção de educação emancipadora e libertadora, formadora de sujeitos livres e críticos e para transformar a realidade na construção de uma sociedade humanista, democrática e justa; uma educação que se torne a base para um desenvolvimento social socialmente justo, ambientalmente sustentável, economicamente justo, solidária, humanista e igualitária.

Outro princípio fundamental é a construção social do conhecimento a partir do acesso aos novos avanços da ciência e do desenvolvimento tecnológico acumulado, que são patrimônio da humanidade, mas que estão concentrados e monopolizados pelos países dominadores do planeta e pelas corporações empresariais espalhadas nos países em desenvolvimento. Isso significa a construção de um conhecimento que tenha a transformação social injusta como referência principal; que desenvolva práticas educativas democráticas, participativas, dialógicas e de formação permanente dos educadores.

Estes princípios requerem, por sua vez, políticas públicas em educação a serem construídas sobre princípios que garantam uma educação de qualidade social, direito de todos e dever do Estado, com a participação da comunidade escolar, articuladas com um projeto de desenvolvimento social do Estado e dos municípios, com capacidade de qualificar e incluir socialmente.

Daí que a informática educativa, por exemplo, não é apenas uma disciplina nos currículos escolares, mas uma tecnologia que interage em todo o processo educativo, requerendo uma relação recíproca entre o aprendente, o professor e a didática que os orienta. Isto, por sua vez, exige da sociedade e do Estado a construção de políticas de tecnologia educacional que instrumentalize as escolas e capacite de forma continuada os recursos humanos das escolas, para que se incorpore no contexto diário da sala de aula as informações instantâneas, criando condições para que professores e alunos possam vivenciar a construção de projetos inter e transdisciplinares que possibilitem a construção de uma cidadania cooperativa.

Portanto, políticas publicas em educação que democratizem a ciência e a tecnologia requerem a garantia nas escolas ao acesso ás tecnologias da informação e do conhecimento e a formação continuada dos profissionais em educação alavancada por uma gestão democrática que também garanta as transformações necessárias na matriz curriculares que orienta o processo do ensino e aprendizagem nas escolas.

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