Políticas educacionais integram as políticas públicas que são as ações empreendidas pelo Estado para efetivar as prescrições constitucionais sobre as necessidades da sociedade em termos de distribuição e redistribuição das riquezas, dos bens e serviços sociais no âmbito federal, estadual e municipal. Para Cunha e Cunha, “As políticas públicas têm sido criadas como resposta do Estado às demandas que emergem da sociedade e do seu próprio interior, sendo a expressão do compromisso público de atuação numa determinada área a longo prazo.” (CUNHA e CUNHA, 2002, p.12) Sua construção obedece a um conjunto de prioridades, princípios, objetivos, normas e diretrizes bem definidos.
Entretanto, numa sociedade de conflitos e interesses de classe, elas são o resultado do jogo de poder determinado por leis, normas, métodos e conteúdos que são produzidas pela interação de agentes de pressão que disputam o Estado. Estes agentes são os políticos, os partidos políticos, os empresários, os sindicatos, as organizações sociais e civis. Neste contexto, a educação sofreu grande influência nas últimas décadas, incorporando o ideário neoliberal nas políticas educacionais empreendidas pelos Estados orientados por estas concepções.
A grande depressão na década de 30 atingiu duramente o sistema capitalista1. Na década de 60 e início dos anos 70, após um breve período de reação e crescimento, o sistema voltou a sentir um processo depressivo na economia. Uma das características gerais dessa depressão foi a queda significativa da taxa de crescimento, de renda nacional e de produção. Isto trouxe uma grande onda de desemprego. Era, portanto, o momento de se experimentar novas formas de organização do trabalho, da produção e do gerenciamento de negócios, e um novo modelo de Estado dentro do sistema capitalista mundial.
Surge agora o neoliberalismo antiestatal que corresponde a esta nova visão do sistema mundial. A ideologia imperial das décadas anteriores era mais a de um capitalismo intervencionista, que sustenta toda uma política reformista do Estado burguês. A Aliança para o Progresso é uma das expressões desta orientação política geral. É no final dos anos 60, e especialmente durante os anos 70, que muda profundamente esta orientação. Aparece então um ceticismo profundo em relação ao intervencionismo capitalista e surge a impressão de que o reformismo do Estado burguês tende a subverter o próprio caráter burguês da sociedade. O próprio reformismo burguês parece ter uma lógica que acabará destruindo a sociedade burguesa. (Hinkelammert, 1983, pp.100-101).
As idéias neoliberais no campo acadêmico tiveram sua origem com Friedrich Hayek, que em 1944, lançou o livro intitulado O Caminho da Servidão. Hayek analisou o modelo de Estado soviético e o modelo de Estado nazista e concluiu que nas sociedades onde o Estado avançasse cada vez mais sobre o controle do sistema, necessariamente viria a ter início uma sociedade servil. Sob esta ótica analisou todo o modelo social, político e educacional. Friedrich Hayek e Milton Friedmann atacam o gigantismo do Estado e propõem sua redução ao máximo para dar toda a liberdade ao mercado. O livre mercado deve auto-regular-se, com leis próprias dentro da oferta e procura dos grandes mercados consumidores. Segundo eles, é preciso minimizar o Estado.
São as políticas públicas de um Estado forte, intervencionista, que Hayek passou a criticar. Juntamente com Milton Friedmann e Karl Popper, constituiu uma sociedade de intelectuais para pensar as novas concepções filosóficas com o objetivo de salvar o sistema capitalista do seu próprio declínio.
Estas políticas públicas foram globalizadas pelo neoliberalismo e levaram grandes contingentes humanos a uma brutal exclusão social. Conforme Escorel, esta exclusão ocorre através de dois eixos principais: o mundo do trabalho e o mundo das relações sociais, e em âmbito político (cidadania) e cultural. Escorel define como exclusão social aquelas “[...] situações e condições nas quais há um processo social ativo de discriminação, estigmatização e expulsão de um conjunto de âmbitos sociais não determinado por decisões individuais.” (Escorel, 1995, p.6) O Desenvolvimento Humano – DH de meados da década de 90 testefica os resultados mais agudos destas políticas de concentração de renda e poder. Segundo dados da ONU, que fazem parte do Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU), coletados em 101 países em desenvolvimento, 21% destas populações está abaixo da linha de pobreza e 37% sofre privação de capacidade, isto é, pessoas que não possuem instrução, condições de saúde e alimentação adequada, submetidas a níveis degradantes de qualidade de vida. São cerca de 1,6 bilhão de miseráveis entre estas populações. (Cf. ONU dimensiona..., Zero Hora, 19/06/1996, p.41).
Mas o neoliberalismo não se refere somente a questões econômicas, comércio internacional e proteção aos blocos econômicos. Ele é um programa global e filosófico que atenta para todas as esferas da vida humana. Uma de suas áreas estratégicas, e que nos interessa aqui, é a educação. Para Azevedo, a política educacional apregoada pelos neoliberais exige novas regras para a educação. “Postula-se que os poderes públicos devem transferir ou dividir suas responsabilidades administrativas com o setor privado, um meio de estimular a competição e o aquecimento do mercado, mantendo-se o padrão de qualidade na oferta dos serviços.” (Azevedo, 2001, p.15)
A educação passou a significar um papel estratégico para o projeto neoliberal. Os governos liberais passaram a intervir sobre o sistema educacional consorciados com as empresas privadas. Buscou-se fazer isto de duas formas: direcionando a formação para atender aos objetivos da produção capitalista preparando pessoas para o local de trabalho, com uma visão meramente tecnológica, e, por outro lado, usa-se também a educação como meio para a difusão do liberalismo como a única forma de organização social por meio da livre iniciativa e do livre mercado.
A concepção neoliberal no contexto das políticas públicas passou a forçar melhores desempenhos educacionais básicos nos países em desenvolvimento para dar condições para a globalização. Organismos internacionais, como o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD, deram prioridade ao financiamento da Educação Básica.
O BIRD no Brasil, concedeu empréstimos para a educação escolar, associado a outros Organismos, a partir de 1971. Dos cinco projetos aprovados de 111971 a 1990, dois foram especificamente para a Educação Básica, compreendida sempre pelo Banco como educação do primeiro ciclo do ensino fundamental ou o ciclo como um todo. E nos anos 90, os seis projetos em andamento foram direcionados para a Educação Básica. (Nogueira, 1999, p.164)
Tudo é mercantilizado. A vida é mercantilizada e como produto é padronizada. Não há nenhum respeito para com as diferenças regionais, a cultura, o saber local. Tudo cabe numa pesquisa e a partir daí se resolvem todos os problemas da educação. Instiga-se a sociedade a exigir qualidade em educação. Os professores são culpados pela sua ausência, mas sua remuneração é miserável. Privatizando, transforma-se a educação em produto comercializável em qualquer esquina, ou, como diz Michael Apple, “A escola virou supermercado. Porque as elites dominantes do mundo têm tratado a educação como tal. Quem tem dinheiro entra e compra. Quem não tem fica do lado de fora, olhando o grupo privilegiado aproveitar o que comprou.”2
O processo privatista é um programa sincronizado que perpassa todos os instrumentos que compõem a força ideológica do neoliberalismo. O planejamento prevê a necessidade de reestruturar as condições produtivas, o que demanda uma mão de obra mais qualificada. Daí que os projetos de financiamento externo para a educação voltam-se todos para a Educação Básica. (NOGUEIRA, 1999, p.143-166) E no melhor estilo positivista, parte-se para quadros comparativos como as apresentadas periodicamente nas revistas da Editora Abril, a principal divulgadora do ideário neoliberal. Na já citada edição da revista Exame, Nely Caixeta, ovacionando o crescimento econômico de países asiáticos, como Cingapura e Coréia do Sul, assevera que,
Enquanto países como o Brasil e a Índia deram ênfase ao ensino universitário, a Coréia e seus vizinhos preferiram centrar a atenção no ensino fundamental, que é compulsório, mas gratuito só até a quinta série. A partir daí, as famílias arcam com 40% dos custos de manter seus filhos nas escolas até o final da 8a série. Hoje, apenas 10% dos recursos destinados à educação ficam com as universidades. O restante é canalizado para o ensino básico. Aí está a medida que deveria ser copiada integralmente pelos brasileiros. (CAIXETA, 1997, p.14)
Na mesma direção bate o, então diretor do Banco da Bahia e professor de economia da Fundação Getúlio Vargas, Sérgio Ribeiro da Costa Werlang. Defendendo a política de privatização do Ensino Superior, afirma que, “Os recursos públicos que fossem poupados com essa política deveriam ser direcionados para os níveis mais básicos de ensino – especialmente o primário 1 e o secundário. O investimento no primário 1 é, de longe, o mais importante.” (WERLANG, 1997, p.334)
A mesma cantilena é retomada constantemente pela revista Veja, como a edição de 27 de agosto de 2003, onde Mônica Weinberg (2003, p.104-107) desafia ao Brasil repetir a experiência da Coréia do Sul em educação.
Estas posições orquestradas objetivam preparar o caminho para as grandes transformações que os Estados Unidos, com o apoio do Japão, Nova Zelândia e Austrália, estão propondo para o campo educacional, o seja, transformar a educação, historicamente entendia como um direito, em serviço, entenda-se negócio, dentro das normas da Organização Mundial do Comércio – OMC. “A idéia é que os serviços de ensino sejam comercializados livremente, facilitando operações como a atuação de grupos educacionais estrangeiros e a aprovação de cursos a distância.”3 A principal área de interesse é o ensino superior. Segundo Leandro Rodrigues, “A intenção é de que ensino superior entre na roda do comércio mundial como um produto qualquer, riscando o principal do texto da Declaração Mundial sobre a Educação Superior no Século XXI, aprovada durante a Conferência Mundial de Ensino Superior, em 1998, que diz que a educação superior é um serviço público.” (2003, p.15)
Esta ofensiva neoliberal da OMC contra a educação pública foi a principal preocupação no 2o Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, em janeiro de 2003. A seguir reproduzimos partes das entrevistas concedidas pelos principais conferencista do Fórum:
“As estratégias da Organização Mundial do Comércio, ao contrário do que reza a cartilha do discurso único da globalização que se apresenta como abertura de fronteiras, constitui-se num poderoso organismo de mundialização do grande capital para impor ao mundo os seus produtos. Mediante o monopólio de patentes em mãos de um reduzidíssimo número de países e, sobretudo, mega organizações mundiais, instauram uma nova fase de dependência e de colonização. Este é o objetivo fundamental da ALCA: Abrir o mercado especialmente para os negócios das grandes empresas americanas.”4
“O deslocamento de uma definição de educação como um ‘direito’ para a sua conceptualização enquanto ‘serviço’ tem visado, em vários países, fragilizar e reduzir os direitos sociais e de cidadania, retirando do Estado o papel central de garantia do direito à educação, diminuindo ou suspendendo as suas obrigações em termos de provisão e financiamento da educação pública e, por essa via, abrindo caminhos para medidas de liberalização e privatização.”5
No entanto, esta avalanche privatista não pode paralizar a sociedade, sobretudo aos educadores. É necessário reunir forças em toda a sociedade para fazer frente a esta ameaça mais ou menos próxima. Significa, sob a experiência de um governo democrático e popular, ampliar e aprofundar os debates para construir proposições a partir das experiências acumuladas pelos inúmeros fóruns sobre educação realizados nacional, estadual e municipalmente em todo o país que definam políticas públicas em educação que garantam uma escola e uma universidade, democráticas, cidadãs, públicas e univresais de qualidade. Fundamentalmente, isso passa pela radicalização da democracia participativa. E a educação deve ser seu ensaio e experiência fundante.
A cidadania é hoje um termo popularizado. As três últimas décadas permitiram o crescimento do debate das grandes questões sociais voltadas para a construção de mais cidadania. Entretanto, proporcionalmente a velocidade com que se popularizou, o termo cidadania tornou-se refém do discurso das elites, que têm mantido o poder com toda a astúcia que lhes é própria. Elas incorporaram o termo aos seus discursos de promessa para enganar o povo e o manter sob o domínio de seus interesses. O melhor viés que seus teóricos encontraram para “camuflar” seus interesses foi através da educação, transformando-a na terapia para a cura dos males da exclusão.
Por outro lado, a cidadania é uma das grandes questões da educação, mas esta concepção traz justamente o perigo de uma abstração deste conceito. (FERREIRA, 1993, p.6) Daí a necessidade de construir uma definição para um consenso mínimo sobre seu significado no contexto educacional, para que esse conceito permita significar os valores e objetivos necessários para a sua vivência.
As raízes da cidadania estão na sociedade grega, mais especificamente na cidade grega.6 Cidadania significava viver e participar da vida da cidade; viver e participar da associação de pequenos núcleos de vida: a família, a fratria, a tribo. Na sociedade grega a democracia era direta, não havia representantes do povo, cada cidadão tinha acesso às assembléias onde podia argumentar suas posições. Mas, o conceito de cidadania ampliou-se para além da questão de viver a cidade. O cidadão passou a se ligar ao Estado; com essa ligação ampliaram-se os direitos e os deveres para o cidadão. Foram os romanos que deram uma definição, um significado jurídico ao termo. Moura Ramos, citado por Libâneo (1995, p.18), afirma que, “A cidadania (o status civitatis dos romanos) é o vínculo jurídico-político que, traduzindo a pertença de um indivíduo ao Estado, o constitui perante este num particular conjunto de direitos e obrigações [...] A cidadania exprime assim um vínculo de caráter jurídico entre um indivíduo e uma entidade política: o Estado.”
A modernidade, inaugurando a nova sociedade da democracia burguesa, vinculou a cidadania com os direitos de liberdade, de pensamento, de religião, de comércio, de produção, de propriedade privada. Individualizando o indivíduo, alienando-o dos outros pares, a burguesia pôde limitar o alcance da cidadania. Marx, nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, tratando da Questão Judaica mostra que a Declaração dos Direitos do Homem, de 1793, reduz a questão da cidadania a questões políticas. “O assunto torna-se ainda mais incompreensível ao observarmos que os libertadores políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples meio para preservar os chamados direitos do homem.” (MARX, 1989, p.58)
Leia-se, portanto, direitos do homem burguês. Para o autor, o homem egoísta da sociedade civil burguesa é o homem natural. A revolução política, a mera defesa da questão política apenas dissolve a sociedade civil sem revolucionar o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados. Para o liberalismo e o neoliberalismo, a cidadania está centrada no princípio individualista onde cada qual cuida dos próprios interesses.
Já para a crítica marxista, a cidadania requer a responsabilidade de uns pelos outros. Comparato, no prefácio do livro de Pinsky, caracteriza a diferença entre a perspectiva capitalista e a socialista.
Para o socialismo, muito ao contrário, constitui rematado absurdo imaginar que a harmonia social pode resultar de uma concorrência de egoísmos. Sem o respeito ao princípio de solidariedade (solidum, em latim, significa a totalidade), isto é, sem que cada cidadão seja, efetivamente, responsável pelo bem-estar de todos, jamais se chegará a construir uma sociedade livre e igualitária. (COMPARATO, 1999, p.12)
As idéias acima expostas evidenciam que a cidadania não se dá por decreto. A cidadania não pode ser visualizada como algo dado, pois seus pressupostos são a história e a filosofia. Ela se permite ver, notar, conceituar, quando é vivida, exercida pelo cidadão. (FERREIRA, 1993, p. 19) Cidadania implica em uma luta ferrenha dos seres humanos para serem mais seres humanos; significa a luta pela busca da liberdade, da construção diária da liberdade no encontro com o outro, no embate pelos espaços que permitam a vivência plena da dignidade humana. A cidadania compõe-se de um conjunto de direitos fundamentais para a existência plena da vida humana: direitos civis, que significam o domínio sobre o próprio corpo, a livre locomoção, a segurança; direitos sociais que garantam atendimento às necessidades humanas básicas, como: alimentação, habitação, saúde, educação, trabalho e salário dignos; direitos políticos para que a pessoa possa deliberar sobre sua própria vida, expressar-se com liberdade no campo da cultura, da religião, da política, da sexualidade e, participar livremente de sindicatos, partidos, associações, movimentos sociais, conselhos populares, etc. (MAZINI-COVRE, 1998, p.11-15) Braga, discutindo a qualidade de vida urbana e cidadania, resume bem um conceito atual de cidadania necessária.
O sociólogo britânico T. H. Marshall, em seu conhecido ensaio ‘Classe Social e Cidadania’, definiu a cidadania como um conjunto de direitos que podem ser agrupados em três elementos: o civil, o político e o social, os quais não surgiram simultaneamente, mas sucessivamente, desde o século XVIII, até o século XX.
O elemento civil é composto daqueles direitos relativos à liberdade individual: o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa e pensamento, o discutido direito à propriedade, em suma, o direito à justiça (que deve ser igual para todos). O elemento político compreende o direito de exercer o poder político, seja indiretamente como eleitor. O elemento social compreende tanto o direito a um padrão mínimo de bem-estar econômico e segurança, quanto o direito de acesso aos bens culturais e à chamada ‘vida civilizada’, ou seja, é o direito não só ao bem estar material, mas ao cultural. (BRAGA, 2002, p.2)
Na mesma medida, a cidadania exige o exercício de deveres para que os próprios direitos se efetivem. Isto significa que cada indivíduo deve fomentar a busca e a construção coletiva dos direitos; o exercício da responsabilidade com a coletividade; o cumprimento de regras e de normas de convivência, produção, gestão e consumo estabelecidos pela coletividade; a busca efetiva de participação na política para controlar seus governos eleitos dentro de princípios democráticos.
Teixeira e Vale (2000, p.24-27) dão uma definição de cidadania que não permite uma abstração teórica. Entendem que a cidadania não pode estar desvinculada das reais condições sociais, políticas e econômicas que constituem a sociedade. Para uma cidadania efetiva reúnem algumas categorias indispensáveis para o exercício da cidadania que implica, em primeiro lugar, na participação organizada para que as pessoas não sejam objetos da ação, mas, sujeitos da prática política da comunidade até a do Governo Federal. Por isso, ela é conquista e, como tal, torna-se o próprio processo emancipatório. A emancipação do ser humano é um processo contínuo de transformação da sociedade de exclusão. Segundo Adorno,
[...] uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipada. Numa democracia, quem defende ideais contrários à emancipação e, portanto, contrários à decisão consciente independente de cada pessoa em particular, é um antidemocrata, até mesmo se as idéias que correspondem a seus desígnios são difundidas no plano formal da democracia. (Adorno, 1995, pp. 141-142)
A vivência da democracia exige uma crescente organização da sociedade civil para possibilitar e aprofundar a participação de todas as pessoas. A democracia vai além da democracia representativa que tem mantido no poder as elites dominantes. A história da democracia brasileira, pautada na democracia representativa, tem permitido o controle do Estado sobre a população, quando a verdadeira democracia é a democracia direta na qual o Estado está sob o controle da população. O exercício mais efetivo deste processo democrático tem sido o orçamento participativo que vem sendo praticado em várias cidades e estados do País; trata-se de decisões políticas para a aplicação de recursos e distribuição de renda, conforme as necessidades das comunidades organizadas através de conselhos populares.
O que se trata é de democratizar radicalmente a democracia, de criar mecanismos para que ela corresponda aos interesses da ampla maioria da população e de criar instituições novas, pela reforma ou pela ruptura, que permitam que as decisões sobre o futuro sejam decisões sempre compartilhadas. (Genro, 2001,p.18)
Tal proposta permite uma nova relação com as questões tradicionais referentes às outras duas categorias fundamentais da cidadania: os direitos e deveres, já anteriormente tratados. Levando a um crescendo, entra em cena uma nova categoria que é a questão do saber. Dominar os conteúdos da cultura e construir novos conhecimentos a partir deles, para dentro do contexto das necessidades das populações, significa ter na educação seu principal instrumento, e no resgate dos valores humanitários como a solidariedade, a consciência do compromisso para com o bem-estar de todos, a fraternidade e a reciprocidade, a urgência mais fundamental.
Para garantir uma educação libertadora e emancipacionista, e não apenas de adaptação do indivíduo à sociedade constituída, não podemos cair no erro histórico de educar apenas para o trabalho, pois isto significaria que a cidadania se reduziria ao trabalho. Por isso a Educação Básica não pode ser carregada com a marca meramente da formação para o trabalho no contexto da ciência e tecnologia. Daí a necessidade de construir políticas públicas em educação que possibilitem formações em educação básica envolvendo ciência, tecnologias encharcadas de uma ética universal do ser humano, pois a situação na qual os seres humanos e seu entorno ambiental se encontram constitui-se em urgente campo para reflexão e questionamentos éticos. Trata-se de uma realidade que reclama uma postura. O ser humano necessita urgentemente de critérios para sua ação no mundo mediatizado pela ciência e pela tecnologia, que cada vez mais adentra o desconhecido. Andreola, fundamentado em Boff, Mounier e Ricouer, denomina-a de “ética das grandes urgências”, e questiona o avanço da ciência desconectada da ética.
“É possível pensar uma ciência neutra com relação à ética?” Ou numa dimensão mais decisiva ainda: ‘Pode-se pensar em autonomia da ciência com relação à ética?’ Reconhecendo, embora, que o assunto é polêmico, eu responderia decididamente à segunda questão – ficando, por isso, respondida também a primeira – não é possível uma ciência autônoma. Ou ela é uma ciência comprometida com a vida, em todas as suas formas e dimensões, ou então não se justifica como ciência, (...) O progresso científico, fruto das magníficas descobertas e criações da inteligência humana, em si mesmo está destinado a melhorar as condições de vida dos seres humanos, individualmente, e da humanidade no seu conjunto. Mas isso não acontece automaticamente. Os avanços da ciência levantam numerosas e graves questões éticas. Como tais questões serão respondidas, no nível da reflexão teórica e no nível da ação, é uma pergunta cuja resposta não pode ser dada pela própria ciência. (ANDREOLA, 2001, p. 33)
Educar com interesse para o trabalho nos moldes da sociedade pós-industrial seria assumir uma postura cínica e farisaica, pois a sociedade capitalista, calcada sobre uma ciência tecnologizada e instrumentalizada, tem sido a principal responsável pelo desemprego estrutural cada vez mais crescente no mundo. É um desemprego decorrente da globalização da economia e dos avanços tecnológicos. Por isso, Paulo Freire reivindica a dimensão da ética universal do ser humano para a ciência e a tecnologia.
O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. (FREIRE, 2003, p.130)
Neste sentido, a escola pública tem a tarefa de propiciar aos seus alunos o encontro com a ciência e a tecnologia, para proporcionar aos educadores e educandos a construção de conhecimentos contra-hegemônicos, a exercitarem de forma ativa e reflexiva as novas formas de interação com o meio na intencionalidade de desenvolver habilidades e competências capazes de emancipação. Isso deveria nos levar a definir no Plano Estadual de Educação políticas públicas que defendam o acesso às tecnologias para toda a rede pública estadual para possibilitar a qualificação e a inclusão social. Significa colocar as escolas e as universidades em rede em toda a nossa região com equipamentos de última geração, e não sucatas doadas ou vendidas por empresas que já as consideram obsoletas. Significa construir uma relação de cooperação científica e técnica entre as universidades e as escolas para que o conhecimento seja uma construção dialética, profundamente imbricada com a realidade regional.
Por tudo isso, está colocado ao conjunto de educadores, educandos e demais envolvidos no processo de educacional, a tarefa fundamental de resistência contra o neoliberalismo e seus ataques à educação pública, e a efetiva tarefa de construir alternativas para uma educação pública e universal de qualidade mediante políticas educacionais democraticamente decididas e elaboradas. Políticas que tenham a educação como um direito de todos os cidadãos, a participação popular como seu método de gestão, o diálogo como princípio ético-existencial, a radicalização da democracia através de gestões públicas participativas e a utopia de que Um Outro Mundo é Possível, como tem sido o sonho da resistência social organizada desde o II Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, em 2002. E o ponto de partida para essa construção deveriam ser constituintes municipais e estadual de educação, que precisam ser reivindicadas pela comunidade escolar e universitária.
O princípio fundamental a ser assumido é o da democracia participativa, que reafirme a educação como um direito de todos os cidadãos; que tenha uma concepção de educação emancipadora e libertadora, formadora de sujeitos livres e críticos e para transformar a realidade na construção de uma sociedade humanista, democrática e justa; uma educação que se torne a base para um desenvolvimento social socialmente justo, ambientalmente sustentável, economicamente justo, solidária, humanista e igualitária.
Outro princípio fundamental é a construção social do conhecimento a partir do acesso aos novos avanços da ciência e do desenvolvimento tecnológico acumulado, que são patrimônio da humanidade, mas que estão concentrados e monopolizados pelos países dominadores do planeta e pelas corporações empresariais espalhadas nos países em desenvolvimento. Isso significa a construção de um conhecimento que tenha a transformação social injusta como referência principal; que desenvolva práticas educativas democráticas, participativas, dialógicas e de formação permanente dos educadores.
Estes princípios requerem, por sua vez, políticas públicas em educação a serem construídas sobre princípios que garantam uma educação de qualidade social, direito de todos e dever do Estado, com a participação da comunidade escolar, articuladas com um projeto de desenvolvimento social do Estado e dos municípios, com capacidade de qualificar e incluir socialmente.
Daí que a informática educativa, por exemplo, não é apenas uma disciplina nos currículos escolares, mas uma tecnologia que interage em todo o processo educativo, requerendo uma relação recíproca entre o aprendente, o professor e a didática que os orienta. Isto, por sua vez, exige da sociedade e do Estado a construção de políticas de tecnologia educacional que instrumentalize as escolas e capacite de forma continuada os recursos humanos das escolas, para que se incorpore no contexto diário da sala de aula as informações instantâneas, criando condições para que professores e alunos possam vivenciar a construção de projetos inter e transdisciplinares que possibilitem a construção de uma cidadania cooperativa.
Portanto, políticas publicas em educação que democratizem a ciência e a tecnologia requerem a garantia nas escolas ao acesso ás tecnologias da informação e do conhecimento e a formação continuada dos profissionais em educação alavancada por uma gestão democrática que também garanta as transformações necessárias na matriz curriculares que orienta o processo do ensino e aprendizagem nas escolas.
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